A inocência e a responsabilidade

200px-breuer_1877Antes de elaborar o método de tratamento das neuroses que viria a chamar de Psicanálise, Freud, juntamente com seu então amigo Josef Breuer, fazia uso da hipnose como forma de curar suas pacientes histéricas. Podemos, pois, dizer que os dois médicos encontravam-se naquele momento em pé de igualdade quanto aos meios de acesso ao mistério chamado histeria.

Apesar disso, logo surge um desnível entre os dois homens em virtude das respostas dadas por cada um deles à pergunta: “Por que a histérica não consegue se lembrar da ocasião em que surgiram seus sintomas ou por que ela só o faz em hipnose?”.

Breuer, como respeitado médico que era, não conseguiu se desvencilhar da hipótese mais óbvia para os médicos, a orgânica. Então disse: “A histérica não consegue se lembrar da ocasião em que surgiram seus sintomas porque nessa ocasião ela não se encontrava completamente consciente, ela estava com sono ou muito cansada. Assim, a lembrança dessa situação ficou separada do resto das suas repesentações mentais – por isso ela não consegue lembrar. E só pode lembrar em hipnose porque o estado hipnótico é parecido como o estado em que ela estava na ocasião em que surgiram os sintomas.” A esses estados de sono e cansaço que se assemelham à hipnose, Breuer chamou de “estados hipnóides”.

Já Freud, como jovem médico que era e não tão ingênuo quanto Breuer, preferiu prestar menos atenção no preconceito organicista do que na fala das pacientes. E é então que ele formula a hipótese que se tornaria a pedra angular da Psicanálise, a hipótese já tão falada aqui chamada “recalque”. Sua resposta à pergunta inicial então é: “A histérica não consegue se lembrar da ocasião em que surgiram seus sintomas porque ela definitivamente não quer se lembrar delas. E por que não quer? Porque elas lhe trazem sofrimento. E por que trazem sofrimento? Porque essas lembranças mostram os mais íntimos desejos da histérica e dos quais ela nada quer saber porque eles manchariam a imagem perfeita que ela nutre de si mesma. Essas lembranças, então, foram reprimidas por ela, instalando uma divisão na sua vida mental entre uma parte consciente e outra inconsciente.”

Com essa resposta, Freud ao mesmo tempo em que mostra que o ser humano é fundamentalmente dividido, evidencia também a presença do sujeito no organismo. Mais: Freud mostra que por trás do sofrimento do qual a paciente se queixa há um desejo, ou seja, a doença neurótica não é só algo que a pessoa sofre, mas que a própria pessoa produz – o paciente é responsável por seu sofrimento.

Apesar de há mais 150 anos Freud ter dito tudo isso, a Psiquiatria de hoje ainda insiste em sustentar posições caducas semelhantes às de Breuer, ao dizer por exemplo, que a depressão é apenas um funcionamento desregular do circuito serotoninérgico. Com isso, todo o tratamento passa a ser apenas questão de entupir a boca do paciente com os Prozacs da vida, para que ele não fale e, por conseguinte, não pense sobre o que aconteceu em sua vida que o fez ficar melancólico, ou melhor, o que ele fez para ficar melancólico.

Paradoxalmente, são posturas como essa que fazem a Psicanálise sobreviver, como sempre marginalmente. Por que por mais que a fluoxetina regule os níveis de serotonina no organismo, ela jamais reorganizará os significantes que determinam a vida de uma pessoa. Para esse tipo de desordem, senhoras e senhores, até hoje há apenas um remédio – e foi Freud quem o inventou…

5 comentários sobre “A inocência e a responsabilidade

  1. Angela

    Caro senhor,
    O que dizer, então, de um psicanalista que trata de sua paciente com uma batelada de remédios (Prozac inclusive), reduzindo-os conforme sua melhora em um ou outro ponto, mas sempre mantendo-a medicada, por mais de 10 anos sem que qualquer mudança ‘real’ ocorra na vida desta paciente? Diga-se de passagem, ao deixar o tratamento com este psicanalista e procurando ajuda com outro, que não fez uso algum de medicação e que, inclusive a ajudou a se livrar do que seria uma dependencia psicológica com relação a medicação, não demorou tanto para que as mudanças começassem a ser efetuadas pela paciente, em sua vida. O fato do primeiro analista ser também um psiquiatra teria alguma influência na sua prática, ainda que esse fato possa não justificar, à princípio, o emprego de medicamentos? E se o emprego destes se justificam de alguma forma, em quê casos ele seria justificado? A esse propósito, inclusive, me lembro de uma professora de Psicologia (não terminei o curso) que afirmou que quando há emprego de medicação, o tratamento não é mais o psicanalítico. Seria que para resolver este ‘impasse’, os psicanalistas se unam aos psiquiatras para ‘melhor tratarem’ seus pacientes? De que forma, enfim, os psicanalistas podem, ou devem, lidar com o que julgam ser a necessidade de medicação? E, de qualquer modo, por que uma paciente passaria mais de 12 anos sendo medicada por seu psicanalista,sem apresentar problemas de ordem física (neurológica, por exemplo)? O problema da psicanálise e da medicação me parece bem confuso e complicado. A esse respeito, também, gostaria de sugerir um texto sobre “a incapacidade do paciente de simbolizar a culpa” e da colocação de Lacan sobre “a resistência ser sempre do analista”.
    obrigada

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  2. Marcelo

    Angela,

    É um erro, um equívoco, seu dizer que um psicanalista trata de sua paciente com uma batelada de remédios, pois psicanalistas, assim como psicólogos, não podem receitar remédios, só psiquiatras podem receitar remédios por eles serem médicos, no caso, com especialização em psiquiatria.

    Se caso seja realmente um psicanalista receitando remédios, acredito que é engano seu, pode ser um psiquiatra com formação psicanalítica ou é um psicanalista fora da ética profissional.

    Então não vem ao caso. Falamos de profissionais sérios.

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  3. Ádila

    Bem lembrada a intervenção do Marcelo, mas pelo q entendi o q a Angela está questionando não é se psicanalista pode ou nao receitar medicamento, mas sim qto a necessidade do uso de medicação em Psicanálise. Qto a esta, há uma entrevista bastante esclarecedora, pelo menos pra mim, de Éric Laurent publicada no Caderno “mais” da Folha de São Paulo em novembro de 2008.

    Vale a pena ler!

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  4. Tomás

    Mais do que permitir, incentivar ou proibir o uso de medicação, o psicanalista deve disponibizar-se para pensar e sentir com o paciente a forma como ele percepciona e encara o uso da medicação…os medos, os fantasmas, os mitos…no início da minha clínica, sentia uma grande clivagem entre psiquiatria e psicanálise, agora tenho uma perspectiva diferente…o uso de alguma medicação pode ajudar o paciente a sentir-se mais seguro para olhar para dentro de si na presença do analista…ou seja, o uso de medicação não está sempre ao serviço de uma resistência.

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  5. Lucas Nápoli

    Estou de acordo Tomás!

    Muito obrigado pelo pertinente comentário.

    Um forte abraço e apareça sempre!

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