Objeto a, neurose e perversão

Muitos daqueles que se dedicam ao estudo da teoria psicanalítica tendem a pensar que o objeto a, ao qual Lacan atribui a função de causa do desejo, tem sua (in) existência atrelada à incidência da Lei (Nome-do-Pai). Na verdade, a Lei promove a assunção do falo como objeto alvo do desejo, justamente por deslocar o sujeito do lugar de tal posição (lugar originário da criança no desejo materno) e consagrá-lo ao patamar daquele que, “em nome do pai” poderá se dedicar à busca o falo.

A função lógica do objeto a é, por assim dizer, constitucional, uma vez que o gozo absoluto e inextinguível não pertence à categoria do possível. Lacan ilustra essa postulação com os fenômenos de separação dos objetos auto-eróticos: seio, fezes, olhar, voz e a própria flacidez do pênis após a ejaculação que acaba por adquirir uma conotação semelhante a uma “separação do próprio pênis” por parte dos homens. Todas essas separações são como signos da impossibilidade do gozo absoluto e o atestado de que a origem do desejo não está articulada à Lei, mas a um furo humano original.

Até o Seminário 10, sobre a angústia, no qual formaliza a função do objeto a, Lacan concebia a existência do desejo como sendo tributária da existência da Lei. Nesse esquema, edipiano até o último fio do cabelo, o desejo nasceria justamente do fato de um objeto ser interditado. A mãe, no princípio continuação do corpo infantil, constituir-se-ia em objeto de desejo a partir do momento em que o acesso ao corpo materno sofre a interdição por parte do pai. Nessa fórmula, a existência do desejo está atada ao objeto que é alvo do desejo.

Acontece que essa é apenas a reprodução da fantasia neurótica por excelência! Somos nós, neuróticos, que desejamos aquilo que se encontra sob o interdito da Lei. É o neurótico quem acha a grama do vizinho sempre mais verdinha e a mulher do próximo a última bolacha do pacote; que vive a sonhar com o dia em que a poligamia se converterá em norma social e, aí sim, ele será feliz para sempre com o número de mulheres que quiser (Ledo engano, mal sabe ele que são poucas as que de fato quer).

Portanto, a idéia de que aquilo que eu não posso ter – não por uma impossibilidade intrínseca – mas porque está interditado, é o que de fato provoca o desejo, é uma maneira sofisticada de fazer da neurose norma do psiquismo. O que Lacan demonstra é que há outras maneiras de pensar o desejo que revelam efetivamente o que o causa.

O exemplo que ele dá é o do fetichismo. O fetichista não se interessa pelo objeto interditado nem vive a se queixar da interdição. Isso porque ele sabe, tem consciência, daquilo que elicia, provoca, faz surgir seu desejo, que é o objeto fetiche. Temos o sapato como o exemplo mais banal, mas podemos tomar outros, como a cor dos olhos ou dos cabelos. Há sujeitos que só conseguem sentir excitação sexual por mulheres de cabelos ruivos. A cor avermelhada não é o que o fetichista deseja. Ele deseja aquilo que todos desejam: o falo, isto é, o pedaço que falta para o Outro (a mãe, Deus, a realidade, a vida) ficar completo. Mas o que o excita e que o faz crer que ali, naquela mulher de cabelos ruivos, está o falo é justamente a cor ruiva dos cabelos que faz, nesse caso, função (semblante) de objeto a, causa do desejo.

Para compreender ainda melhor essa argumentação, é só se lembrar da fábula freudiana sobre o nascimento de um fetiche: está lá a criança a remexer embaixo da saia da mãe à procura de um pênis que ela supõe existir. Suponhamos que a mãe esteja sem calcinha mas de meia calça. A criança, embaixo da saia, após visualizar a meia-calça, vai se aproximando em direção à vagina materna ainda acreditando que em seu lugar encontrará um membro. Ao se deparar com sua desilusão, isto é, a visão estarrecedora de que no lugar do pênis suposto há um vazio, a criança se sente profundamente angustiada e nega aquela visão, guardando na lembrança não a vagina, mas o que viu no instante anterior, a meia-calça. Temos aí o nascimento de um fetiche por mulheres com meia-calça. É óbvio que essa narrativa constitui uma historieta mitológica que apenas ilustra o que se poderia chamar de estrutura da dinâmica fetichista. Em termos lógicos, teríamos a seguinte equivalência:

Meia calça: objeto a

Visão da vagina da mãe (ausência de pênis): (-φ), o significante da castração, ou falo-apenas-suposto.

Assim, o objeto a acaba por ocupar o lugar daquilo que impedirá o fetichista de se lembrar da castração. É por isso que a presença seja na realidade ou na imaginação do objeto fetiche é a condição necessária para a emergência do desejo no fetichista. É por isso também que ele não sonha com o esfacelamento da Lei porque, para ele, a lei neurótica não faz a mínima diferença visto que a lei a que seu desejo está sujeito é de uma ordem completamente diferente. É por isso que Lacan brinca com a homofonia no francês dos termos perversion e pére-version (versão do pai): o perverso inventa a sua própria lei, sua própria versão do pai.

E como é que o objeto a se manifesta no neurótico? Da mesma forma que no fetichista, só que no eixo inconsciente. Todos nós neuróticos também temos um determinado matiz ocular ou um “brilho no nariz” como diz Freud que nos faz ficar encantados por determinadas pessoas. A diferença é que não nos damos conta dessa “condição de amar”.

E é exatamente por isso que a transferência funciona tão bem pro neurótico, pois o enquadramento analítico propicia uma situação em que o analista acaba fazendo as vezes desses pequenos “detalhes tão pequenos de nós dois” que estão na raiz tanto de nossas alegrias quanto de nossas infelicidades e desarranjos subjetivos. Os nossos “a” justamente por estarem na esfera inconsciente acabam agindo de modo com que “façamos o que não queremos” como diz São Paulo, ou seja, desconhecendo onde gozamos.

As agruras dos fetichistas não são dessa ordem, pois eles sabem muito bem o que precisam para gozar.

Ai de mim, grita um neurótico à surdina.

14 comentários sobre “Objeto a, neurose e perversão

  1. olá Lucas,
    Você faz um trabalho muito interessante com seu blog.
    Parabéns.
    Gostaria de pedir sua autorização para reprodução de suas postagens que eu achar conveniente. claro que devidamente creditado a vc e a seu blog.

    Att.
    Rafael Sallet

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  2. lucasnapoli

    Olá Rafael, está autorizado, fique à vontade. Muito obrigado pela cordialidade. Em deferência, vou colocar o link do Práxis Freudiana aqui no blog.

    Grande abraço!

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  3. Pingback: Lucas-Napoli-Psicologia-Psicanalise-Literatura-Objeto-a-neurose-e-perversao. : Sysmaya

  4. Adilson

    Parabéns
    Gostei dessa sua abordagem .
    Muito didática ,
    Continue nos presenteando , com o seu saber.
    Forte abraço

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  5. Lucas Nápoli

    Olá Adílson! Muito obrigado pela visita. Fico feliz que tenha lhe agradado. Apareça sempre!

    Um abraço!

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  6. Paula

    Muito boa a sua explicação sobre o tema. Estava com bastante dificuldade de enteder e após várias leituras, a sua foi a mais esclarecedora!

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  7. Isabela Couto

    Ei Lucas. Que delícia de texto!
    Estou muito interessada nal Psicanálise e começo a me enveredar em seu discurso.
    Navegando pela web há muitos textos, mas o seu diferencia-se pela forma clara e, como bem mencionou uma leitora desse blog, didática.
    Enfim. Vai pros FAVORITOS! rs!
    Bom trabalho…. Isabela.

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  8. Lucas Nápoli

    Olá Isabela! Fico muito feliz de você ter gostado! De fato, a intenção é essa mesmo: traduzir alguns conceitos para o que eu chamo de “humanês”, isto é, uma linguagem clara, que permita ao leitor entender do que se trata. Para quem está familiarizado com a psicanálise, já basta o fato de sofrermos exatamente por nosso sofrimento estar cifrado na trama dos significantes de nossa história. Se a teoria também estiver cifrada, é um sofrimento em dose dupla.

    Abraço!

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  9. Lucas Nápoli

    Olá Marco! Sinto-me honrado pela republicação do post em seu blog! Já coloquei seu endereço na minha lista de links!

    Apareça sempre por aqui!

    Grande abraço!

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  10. Pingback: Questionando o “óbvio”: a falta é a causa do desejo? (parte 1) | Lucas Nápoli

  11. Lucas Nápoli

    Olá Cláudio, muito obrigado pelo comentário. Infelizmente ficarei devendo a resposta, pois tal diferenciação é por demais complexa para ser respondida aqui.

    Um forte abraço e continue acessando o blog!

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