Um dos critérios que definem um bom texto é a preocupação do autor em fornecer ao leitor todos os pressupostos e postulados que fundamentam a argumentação que será desenvolvida ao longo de seu escrito. É exatamente isso o que vou procurar fazer nesses primeiros parágrafos para que você, caro leitor deste blog, possa saber o ponto de partida de minhas demonstrações.
Por exemplo, falarei aqui de aspectos essenciais do pensamento essenciais do pensamento de D. W. Winnicott. Todavia, para que eles sejam apreciados em toda a sua amplitude e você possa compreender as analogias que farei com o cristianismo, é preciso explicitar o que os postulados de Winnicott significaram para o todo da teoria psicanalítica.
Winnicott, em seu humilde respeito ao pioneirismo de Freud, inicialmente pretendia apenas preencher algumas lacunas do saber psicanalítico com alguns dos conhecimentos que ele extraiu da sua experiência de pediatra com bebês. De fato, nem Freud nem a maior parte dos analistas daquela época possuía tal experiência. Assim, Winnicott dizia que o cerne da teoria de Freud estava na idéia de conflitos intrapsíquicos derivados do relacionamento do sujeito com seus objetos (pessoas), sendo o complexo de Édipo a matriz desse relacionamento. No entanto, para Winnicott, Freud já tomava como dado que o sujeito existia. Nas suas análises de neuroses infantis a partir de neuroses adultas, como no caso do Homem dos Lobos, Freud já dava como pressuposto que a criança se reconhecia como pessoa, sabia diferenciar seu mundo interno do mundo externo e se relacionar com pessoas vistas como pessoas inteiras (não-fragmentadas).
A tarefa da qual Winnicott vai se encarregar é justamente a de mostrar que até chegar a esse estágio (que Freud já dava como estabelecido) houve todo um processo; e que esse processo, para ser bem sucedido, dependia de condições externas, mais especificamente de um ambiente que fosse bom o bastante para facilitá-lo. Assim, Winnicott vai desenvolver suas teses no sentido de evidenciar a trajetória trilhada pelo bebê (com sua mãe) até reconhecer-se como uma pessoa. É aí que a teoria de Winnicott perderá o mero estatuto de complemento da teoria psicanalítica e passará a constituir uma verdadeira revolução paradigmática no interior da Psicanálise. É que Winnicott dirá que a maior tarefa da mãe/ambiente durante os momentos iniciais da vida da criança, é auxiliá-la a manter o sentimento de continuidade do ser. É difícil para nós, adultos, compreendermos tal sentimento, porque nós não nos lembramos mais da extrema confusão em que estávamos imersos no início de nossa vida. Hoje não temos dúvida, ao acordarmos, de que somos a mesma pessoa que dormiu. O bebê não. Ele ainda não conta com esse eixo que agrupa e organiza as sensações. É aí que entra o ambiente. Se o ambiente for bom o suficiente, ele permitirá ao bebê reconhecer-se como uma única pessoa, embora experimente diferentes sensações e aja diferencialmente. Além disso, o sentimento de continuidade do ser tem um aspecto mais profundo que foi justamente o ponto de partida da mudança paradigmática de Winnicott: é o problema da identidade. Quando o ambiente não auxilia o bebê a sentir-se como existindo em meio ao fluxo da vida, isto é, quando o ambiente permite que o fluxo da vida, isto é, a fome, as idas e vindas da mãe, etc. sejam tão fortes ao ponto de fazer com que o bebê se sinta a ponto de ser aniquilado, esse, não vendo saída, passa a se identificar com o próprio fluxo da vida com vistas a permanecer existindo (“Se não pode com eles, junte-se a eles”). Assim, ele tenta manter o sentimento de continuidade do ser à custa de seu próprio ser, na medida em que deixa de ser si próprio para se identificar com o fluxo da vida.
Por que isso significou uma mudança paradigmática na psicanálise? Porque até então, os analistas trabalhavam tendo como paradigma interpretativo do sujeito o modelo freudiano de aparelho psíquico. Ora, Freud considerava que a principal função do psiquismo era o tratamento das excitações vindas do mundo externo e interno. Tal tratamento era feito através dos mecanismos de defesa: recalque, projeção, formação reativa, sublimação, etc. Ou seja, para Freud, a tarefa humana par excellence era lidar com as excitações, mais especificamente com a pulsão, visto que há meios não-psicológicos de combater as excitações externas. É evidente que há uma herança judia nessa formulação freudiana. Afinal, não são os judeus que, não querendo contar com a graça de Cristo, ainda vivem sob a Lei, a qual não faz nada mais que detectar, prevenir e expiar os pecados? O mesmo que faz o aparelho psíquico com a pulsão?
Para Winnicott, no entanto, a principal tarefa do ser humano é conseguir manter o sentimento de continuidade da existência. E é só com a elaboração desse sentimento em um ambiente suficientemente bom que o sujeito poderá vivenciar de forma saudável os conflitos interpessoais e lidar com a pulsão não como algo perigoso, ameaçador, pecaminoso, mas como uma fonte de vida, como algo que o impulsiona.
Será que não é algo análogo o que a graça de Cristo opera no cristão? Pois, ao experimentar o perdão dos pecados, o crente passa a não mais temer o pecado, como o judeu, pois o pecado, em Cristo, perdeu o seu poder destrutivo, qual seja, o poder de envenenar a alma e fazer com que o sujeito não mais se reconheça como alguém criado à imagem e semelhança de Deus. Ou seja, tal como a pulsão não é vista como algo potencialmente aniquilador para quem elaborou seu sentimento de continuidade do ser num ambiente suficientemente bom, assim também o pecado não é mais visto pelo cristão como um monstro, pois o seu ser foi resgatado por Cristo. O grande dilema de quem não aceita a graça de Cristo é que ele não conta com um Redentor. Assim, todo pecado permanece fonte de morte, pois, como diz o apóstolo Paulo, “o salário do pecado é a morte”. O cristão, pelo contrário, caminha seguro, pois sabe que se cair terá Quem o levante. Em outras palavras, se pecar terá Quem o perdoe. Não que ele queira pecar ou tenha deleite nisso. Mas ele pode pecar, pois não se desesperará por isso. Afinal, esperança é o que não lhe falta…
Assim, a energia do pecado que escravizava o homem, passa a servir como força propulsora de amor a Deus. Na carta aos Romanos, Paulo diz: “Nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de iniqüidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça.”
Compreendemos, portanto, que, assim como para Winnicott, para o cristão a questão primordial da vida é o ser. E é só quando o meu ser foi roubado de mim, pelo ambiente insuficiente ou pelo diabo, é que eu encaro a pulsão ou o pecado como potencialmente aniquiladores. No entanto, quando há um Redentor que resgata meu ser e me faz sentir seguro tal como a mãe suficientemente boa com seu bebê, eu posso lidar com o pecado sem medo, convertendo a força que outrora me prendia a ele, em energia que me leva a viver plenamente (cf. “Eu lhes darei vida, e vida em abundância”).
Agora vem a pergunta: como é que posso ter a certeza de que meu ser foi resgatado? Ou: o que faz com que esse sentimento de continuidade do ser não seja abalado pelas vicissitudes da vida? No próximo post veremos finalmente as analogias entre a fé e a confiança no ambiente.