Esta é a primeira parte de um dos dois posts em que pretendo desenvolver algumas idéias que me vieram à mente no decorrer da leitura do texto “O niilismo e o problema da temporalidade” de Gianni Vattimo que figura na excelente coletânea de ensaios do autor intitulada “Diálogo com Nietzsche”. Pra variar, são idéias que buscam estabelecer algumas relações entre o que se encontra no texto e a Psicanálise.
Nietzsche e os dois modos de encarar a história
No início do ensaio, Vattimo aborda o conceito nietzschiano de “eterno retorno” (ewige wiederkehr, em alemão), seu caráter conceitualmente problemático e as diversas interpretações do termo pelos comentadores de Nietzsche. Antes de esboçar a sua própria interpretação, Vattimo faz um breve percurso pelo modo como Nietzsche encara o problema da temporalidade. É essa seção do texto que me serve de inspiração aqui.
Segundo Vattimo, desde seus primeiros escritos Nietzsche tece duras críticas ao modo como a tradição ocidental se acostumou a lidar com sua própria história, a saber: buscando fazer uma remontagem completa dos fatos ocorridos, como se fosse necessário desvendar o que aconteceu no passado em sua totalidade. A maior ilustração dessa tendência de “querer tudo saber”, cujo ponto de origem o filósofo localiza na figura de Sócrates, é o próprio surgimento de uma disciplina científica denominada precisamente “História” que se dedicará justamente a desenvolver métodos e teorias para o conhecimento o mais fiel possível do passado.
Para Nietzsche, esse desejo de produzir um retrato completo do que se passou constitui o que ele chama de “doença histórica”. Sim, doença, pois torna o homem menos capaz daquilo que ele pode fazer ao aniquilar sua criatividade. A investigação minuciosa do passado faz com que se perca a visão do possível na medida em que tudo o que poderia ser criado como novo passa a ser visto como mera reprodução daquilo que já ocorreu. Frente à grande massa do que já aconteceu, a ação que se processa no hoje em vista de um futuro perde em potência e em sentido, pois é encarada como mais um grão de areia na praia do tempo.
Por outro lado, a tendência de querer tudo saber pode levar também à suposição bastante comum de que tudo o que aconteceu, aconteceu em função de uma determinada finalidade: é a idéia de que a história possui um sentido e que, portanto, nossa ação não tem potencial algum de criar algo novo, pois o curso das coisas já se encontra pré-determinado.
Qual alternativa Nietzsche contrapõe à doença histórica? Qual seria o modo correto de lidar com a história na visão do filósofo?
Para Nietzsche a origem da resposta está justamente naquilo que não tem história, ou seja, no elemento que não muda apesar de todo o resto se transformar. Esse elemento é a vida. Nietzsche inverte os termos que foram conjugados na doença histórica. Para o filósofo, o Ocidente colocou a vida a serviço da história. Para Nietzsche o correto é que a história esteja a serviço da vida. E com o termo “vida” o filósofo quer expressar justamente o caráter daquilo que é vivo, isto é, a possibilidade de criação, de invenção e de reinvenção. A relação correta com o passado, portanto, é aquela que vê a história como um manancial de eventos cuja apropriação pode ou não fortalecer, expandir e facilitar a nossa capacidade de criar, de agir. Nem tudo o que aconteceu deve ser apropriado por nós, pois há eventos que limitam e reduzem a nossa capacidade de agir. Ou seja, o crivo para o que deve ou não ser apropriado é sempre a própria vida.
No entanto, para que se possa saber discernir o joio do trigo é preciso estar consciente da própria força da vida, que não muda e que ultrapassa a história. Quem não está consciente da vida não percebe que há algo não-histórico e é, assim, facilmente levado a desenvolver a doença histórica, ou seja, a pensar que é presa de um destino ou que sua ação não vale nada em vista de tudo o que já aconteceu.
O que tudo isso tem a ver com a Psicanálise? É o que veremos no próximo post.
CONTINUA…
Como eu adoro Nietzsche. Fiz uma vez um trabalho para a faculdade sobre o sofrimento humano com base numa perspectiva nietzscheana. «Assim falava Zaratrusta» devia ser leitura obrigatória 🙂
Aguardo com ansiedade curiosa o próximo post sobre a psicanálise e o paralelismo com esse grande filósofo!
Abraços!
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Olá Cláudio! Que bom ter sua presença aqui novamente!
Nietzsche é daqueles filósofos que não te deixam com sono ao ler seus livros – algo que acontece frequentemente com os pensadores sistemáticos como Kant, Descartes, Aristóteles. Todos eles são importantes, mas Nietzsche te faz pensar não apenas com o cérebro mas com as vísceras. Ainda não li o Zaratustra (pretendo-o em breve). Meu predileto é a autobiografia dele, “Ecce Homo” que é infinitamente mais útil que qualquer livro de auto-ajuda.
Um grande abraço!
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Discussões acerca da vida (e morte) enquanto aquilo que insiste são temas que também me interessam. Inaugurei um blog sobre estes temas e aguardo a segunda parte deste seu post para o exercício do pensamento. Abraços
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Olá Alexandre! Já fui visitar seu blog! Gostei muito do seu estilo de escrita. De fato, nossos blogs compartilham muitas temáticas.
Provavelmente amanhã a segunda parte do post será publicada.
E vamos conversando!
Grande abraço!
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Valeu!!!
Realmente compartilham!
Me interesso pela força do pensamento de Nietzsche e espero para poder ler a segunda parte.
Abraços
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Oi Lucas,
Recomendo que leia “Genealogia da Moral” e “Além do Bem e do Mal”, as obras mais psicanalíticas de Nietzsche. Em “Genealogia”, da Companhia das Letras, há um interessante posfácio do Paulo César de Souza, também tradutor de Freud, sobre a semelhança entre esta obra de “O mal-estar na civilização”, comentando as ideias precursoras de Nietzsche semelhantes aos instintos/impulsos eróticos e de morte freudianos.
Um abraço.
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Olá Vladimir!
Obrigado pelas indicações! Ambos eu comecei a ler mas não cheguei a terminar. A edição que tenho d’A Genealogia é essa mesma, com tradução e comentários do Paulo César.
Penso que Nietzsche e Freud, assim como Bergson, compartilham de um mesmo “zeitgeist” cuja idéia central é a crítica à razão tradicional.
Outra curiosidade envolvendo Nietzsche e a Psicanálise envolve a segunda tópica freudiana. O conceito de “das Es” que a Standard Edition traduziu por “Id” na verdade Freud o tomou de Grooddeck que o utilizava há algum tempo e numa acepção um tanto quanto distinta. Groddeck, por sua vez, foi buscar o termo precisamente em Nietzsche!
Grande abraço!
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