“E agora, José?” – Niilismo e fim de análise

Prólogo

No início do post “Como você lida com o seu passado? (parte 1)” eu havia prometido um segundo texto desenvolvendo, tal como naquele, algumas idéias que me vieram à mente no decorrer da leitura do texto “O niilismo e o problema da temporalidade” de Gianni Vattimo, que se encontra na coletânea de ensaios do autor intitulada Diálogo com Nietzsche. Tais idéias estabelecem alguns vínculos entre a Psicanálise e o pensamento de Nietzsche a respeito da história.

Naquele post fiz uma analogia entre os dois modos de encarar o passado postulados por Nietzsche (de acordo com a leitura de Vattimo), a saber: o que ele chama de “doença histórica” e o que seria a maneira autêntica de se lidar com o passado e dois momentos históricos da técnica psicanalítica, os quais acabaram por se converter em dois posicionamentos metodológicos antagônicos, de modo que ambos ainda se fazem presentes no contexto atual da técnica psicanalítica.

Hoje meu interesse é trabalhar o conceito central do ensaio de Vattimo, o niilismo, que, em Nietzsche, aparece como uma postura filosófica não-original, mas reativa, decorrente de um processo anterior caracterizado por certa desilusão. É precisamente nesse modo nietzschiano de encarar a postura niilista que enxergo uma associação com o tratamento psicanalítico.

De Hegel ao Eclesiastes

Na segunda parte de seu ensaio, Vattimo dedica-se a demonstrar por que Nietzsche concebe o niilismo como consequência da doença histórica. Essa, como vimos naquele outro post, consiste na adesão a uma das seguintes pressuposições: (1) de que a história contém em si um sentido, um fim, um propósito previamente definidos ou (2) de que a história é um imenso oceano de eventos transitórios no qual toda ação é pouco relevante ou significativa já que se constitui apenas como mais uma gota d’água dentre milhões de outras.

Por sua vez, o niilismo significa a postura filosófica e/ou existencial que nega a presença de qualquer fundamento ou valor na realidade. Em outras palavras, para o niilista não há nada (nihil) capaz de assegurar que um determinado ato é preferível a outro; todos os atos, todos os eventos, todos os acontecimentos se equivalem. O caro leitor provavelmente já experimentou momentos em que tal argumento se lhe apresentou à mente ou conheceu pessoas que já passaram pela experiência do niilismo. O que Nietzsche fará é uma espécie de análise psicológica das razões pelas quais esse tipo de posicionamento vem à tona na consciência humana. E o que ele conclui é que se trata do ranço de uma desilusão prévia.

Como Vattimo explica, Nietzsche percebe que todo modo de encarar a história baseado na idéia de que há um sentido por detrás dos acontecimentos que se processam ao longo da existência está fadado ao fracasso, pois a própria vida se encarrega de desmenti-lo. Hegel, por exemplo, construiu todo um sistema filosófico baseado na tese de que a história caminha inevitavelmente rumo ao saber absoluto, ou seja, ao momento em que nossa razão seria capaz de conhecer absolutamente toda a realidade. Diga-me, caro leitor, se você tem alguma dúvida de que Hegel deveria ser internado no hospício mais próximo?

Outro exemplo de concepção que admite a existência de uma ordem pré-definida ao mundo é a providencialista, presente na alma de muitos cristãos que entenderam equivocadamente a mensagem de Jesus de Nazaré. Crêem tais homens que Deus guia a história tal como um escritor de um romance. Nessa “obra” aqueles que seriam “de Deus” (os mocinhos) teriam uma vida agradável, cercada de benesses ao passo que os demais (os vilões) sofreriam as agruras da infelicidade. Evidentemente, o que pode resultar disso é apenas desilusão (vide, por exemplo, os lamentos de Salomão no “Eclesiastes”) e em seguida aquele célebre brado do homem de pouca fé: “De que vale ser bom?” – eis o niilismo.

Assim, a crença na providência ou numa ordem de sentido que guia a história, ao ser posta em xeque pela própria existência, gera outra crença: a de que não há nada capaz de funcionar como critério para nossas ações visto que, descortinada a ausência de ordem no mundo, nada há que possa fundamentar o agir humano. Ora, não é precisamente esse sentimento que acomete nossos analisandos já nas etapas finais de um processo analítico?

Da fé à liberdade

Se há um aspecto presente em todo aquele que busca a ajuda de um psicanalista, esse aspecto é a fé. Todo o nosso trabalho como analistas é o de colocar em questão essa fé. Fé em quem? No Outro. Sim, Outro com O maiúsculo, não o pequeno outro, representante de todos esses seres humanos com os quais o sujeito compartilha sua existência. O Outro em questão é esse precipitado maciço de falas do pai, da mãe, do irmão, do avô, da avó, da cultura. Enfim, é essa amálgama de saberes que vão se depositando ao longo da vida num imenso compartimento da alma etiquetado com a pergunta: “Quem sou eu?”. O analisando chega ao divã com a firme certeza de que aquele amontoado de entulho verbal que fora ali depositado responde efetivamente à pergunta que dá nome ao compartimento. Inevitavelmente, esse entulho não permanece imóvel, mas é organizado como uma historinha, de modo que cada fragmento vai se encaixando num romance trágico que passa a constituir o que o analisando irá chamar de “minha história de vida”. É por isso que se o analista não for competente, ele é facilmente enredado nesse romance, pois ele faz todo o sentido. Afinal, é construído justamente com essa finalidade: dar sentido.

Portanto, o analisando, tal como a consciência humana pré-niilista, adentra o dispositivo analítico crente numa pré-ordenação de sua história. Em decorrência, a tarefa do analista é fazer o papel que em Nietzsche é realizado pela própria vida, ou seja, o de demonstrar a falta de sustentação dessa história, deixando claro que não há nenhuma pré-ordenação, que o romance existencial com o qual o sujeito presenteia o analista não existiu desde o início, mas foi paulatinamente sendo construído.

Quando uma análise é levada até o fim, o que geralmente acontece é que depois de muitas idas e vindas, o analisando consegue ter abalada sua crença no Outro, reconhecendo que ele na verdade não existe como disse Lacan no final de seu ensino. Por outro lado, se o Outro não existe, se aquela pré-ordenação da história com a qual o paciente entrou em análise se mostrou construída, artificial, o que fazer? O que a partir de agora servirá como guia das ações do sujeito? Antes era o Outro; agora o sujeito conta com uma apavorante liberdade de movimentos, mas não sabe por onde começar e com base em quê agir.

Da queda do Outro ao imperativo da vida

Nietzsche dá a resposta: não há critérios transcendentais para a ação a não ser que os criemos como reação ao desespero da liberdade. O único critério é imanente, é a própria vida e aquilo que fortalece e aumenta a própria potência vital. O que a psicanálise faz é auxiliar o sujeito a demolir essa massa alienígena (alien=estranho, outro) que se impunha a ele como norteador de ações no lugar da própria vida. Assim, livre dessa história produzida como defesa, o sujeito se torna capaz de optar e de escolher aquilo que mais convém à sua potência vital, mesmo que seja um traço que outrora estava presente na amálgama do Outro. Desacreditado em sua função de eixo absoluto e pré-ordenador, o Outro passa a ser um mero referencial que pode ser descartado ou utilizado. A história agora é outra.

28 comentários sobre ““E agora, José?” – Niilismo e fim de análise

  1. sandra

    Lucas, perfeito e bem elaborado!
    O trabalho q faço na psi-politico social deparo com sujeitos Cr/Adolescentes principalmente, que estão prezos em um Outro e muito das vezes esse Outro é seu agressor, violência domestica de todos os tipo. A dificuldade do Psi-social é a de que este agressor é tbm o cuidador, portanto delicado. Ja faço uma análise profi de como posso trabalhar questões sobre este ponto de vista, bastante pertinente, pq qdo o psi percebe o processo de desconstrução, o sujeito evade. Hoje não me frustro mais, aprendi a lidar com as limitações e correr atraz das possibilidades q são válidas devido à tamanha proporção!
    Gostei muito das colocações! abraços.

    Curtir

  2. Lucas Nápoli

    Olá Sandra!
    De fato, no contexto em que você trabalha, o Outro apresenta uma dimensão que, por vezes, não passa pelo campo da linguagem e se inscreve no registro traumático, de modo que a desconstrução do “romance” talvez deva ser precedido de uma elaboração inicial.
    Por outro lado, o problema da evasão nos convoca ao reconhecimento das limitações da ação do psicanalista. Tem gente que não dá conta do processo de derrubada de ídolos. Convém respeitarmos essa decisão. Afinal, como diz Lacan, não existe só a análise no mundo. A própria vida às vezes é capaz de fazer um trabalho muito mais eficaz do que o nosso.
    Continue fazendo os comentários e enriquecendo as postagens!
    Grande abraço!

    Curtir

  3. sandra

    Q bom, fico mais tranquila, menos inquieta pois Lacan reforça bem o q ocorre no trabalho psi-social. Porem me fale um pouco mais sobre essa elaboração inicial precedia por favor.
    bjssss

    Curtir

  4. Lucas Nápoli

    Olá Sandra!
    Então, trauma é tudo aquilo que excede a nossa capacidade de elaboração ou de “tratamento” pela via da linguagem. Nesse sentido, sujeitos que experimentaram traumas como abuso sexual muitas vezes têm dificuldade de encaixar o episódio no conjunto de sua história, ficando o acontecimento como uma espécie de câncer no psiquismo da pessoa.
    A elaboração inicial consistia num trabalho de tentativa de encaixe desse elemento na história. Isso demanda uma percepção aguda por parte do analista que deve fornecer a interpretação no momento em que o analisando está pronto para formulá-la ele mesmo mas carece dos elementos simbólicos necessários.
    Isso é só uma introdução. Essa “elaboração inicial” é bem mais complexa, mas acho que essa introdução já dá pra você ter uma idéia.
    Abração!!

    Curtir

  5. Pingback: “E agora, José?” – Niilismo e fim de análise | Acho Aki

  6. Luiz Fernando Coelho

    ‎”Assim, livre dessa história produzida como defesa, o sujeito se torna capaz de optar e de escolher aquilo que mais convém à sua potência vital, mesmo que seja um traço que outrora estava presente na amálgama do Outro.” L. NÁPOLI. não comp…arando, mas apenas utilizando um outro referencial…isso na fenomenologia existencial seria o ser humano “ser-no-mundo” (Dasein) passar a ser autêntico em seu modo de estar no mundo com sigo próprio e com o outro…compreendendo a sua história e encontrando novas possibilidades de escolha(existir)…

    Curtir

  7. Alexandre Brito

    Interessante o convide a leitura do post por meio de um nome próprio, apropriado: José. Em bom português, Zé. Termo popular e religioso, se bem que no brasil, o papa é pop. A religião do Zé tem uma orientação vertical de relação entre os homens e em torno da culpa. O culpado vai pra fogueira, mas ele é capaz de se defender nos dias de hoje contando sua historia, como ensinou Foucault. E dos niilismos, três: ‘negativo’, reativo e passivo. Acho que voce se refere ao primeiro niilismos Nietzschiano. E em Nietzsche, em Humano Demasiado Humano, fé e religião não se confundem de maneira alguma. Quanto ao Outro, é sempre Outro, nunca o mesmo, se é que ele, assim como as mulheres, existe.

    Curtir

  8. Lucas Nápoli

    Olá Alexandre! Precisas observações!!
    Não sou muito versado na filosofia de Nietzsche, mas de fato se trata do niilismo negativo, mas também reativo na medida em que destitui qualquer fundamento da existência não pela via do reconhecimento da vontade, mas sim como reação à desilusão face à esperança de encontrar sentido no mundo.
    Fico honrado de receber comentários desse “naipe”!
    Forte abraço!

    Curtir

  9. Alexandre Brito

    Já passei seu blog para alguns alunos. Tenho feito divulgação na medida do possível. Passar por aqui é garantia de aprender ou ver algum assunto que conhecemos de outra maneira, com palavras de alguém ‘de fora’.
    Espero que um dia possamos levar esses blogs a níveis não apenas de princpipio de prazer. hehe
    Abraços

    Curtir

  10. Lucas Nápoli

    Olá Alexandre! Agradeço-lhe imensamente pela divulgação do blog.

    Também espero que a gente consiga levá-los além do princípio do prazer (rsrs) mas sem sofrimento! rs

    Penso que blogs como os nossos são os sucedâneos das noites de quarta-feira em que Freud se encontrava com seus adeptos, encontro que depois foi gradualmente se esterilizando em congressos em que o mais importante era o semblante e não a verdadeira troca de pensamentos; são também os sucedâneos das cartas que Freud e seus amigos trocavam, falando livremente, sem a censura do suposto saber, sobre Psicanálise. Penso sinceramente que o pensamento vivo existe aqui, nos blogs e não nas revistas científicas que, como eu sempre digo, jamais aceitariam um artigo do Freud ou de qualquer outro psicanalista “das antigas”. Até que isso seja reconhecido vai levar algum tempo, mas tenho esperança de que algum dia o seja.

    Um grande abraço, parceiro!

    Curtir

  11. Alexandre Brito

    Continuamos marginais. Surge a importância da solidão, tão cercada de medos toscos pela nossa sociedade. É a queda do campo da expectativa do outro. O “pensamento vivo” não pode ser regulado por APA ou ABNT. Semblantes já basta na clínica. A transmissão é uma pedra no caminho, já que a psicanalise é impossível.
    Na noite de quarta-feira, a maioria abandonou Freud (Reich até detalha isso). Mas precisaram da luz dele, deste homem genial, pra depois seguirem caminho, mesmo que ficassem sem luz, cegos ou ofuscados. Foram feitas grandes contribuições e grandes lixos.

    Abração!

    Curtir

  12. carla nascimento

    Oi, Lucas, vim pra cá porque a síntese do twitter é impossível.
    Você já leu “Pulsão de morte? Por uma clínica psicanalítica da potência?”, do André Martins? Três coisas aconteceram num timing perfeito nesse momento de crise: encontrei o Anti-Édipo num sebo do metrô da Carioca, encontrei seu blog e o livro do André. É muito bem escrito, muito consistente e muito corajoso, pelo menos até onde eu li, e aborda muitas daquelas questões que nós estávamos discutindo.
    Mudando… você conhece algum esquizoanalista que atende aqui no Rio?
    Abç!
    Carl

    Curtir

  13. Lucas Nápoli

    Olá Carla!!! Jung teria orgasmos vendo tamanha sincronicidade! rsrs Com efeito, sou orientando de mestrado do André! Ele me deu um exemplar do livro alguns dias antes do lançamento! Ainda não tive tempo deler o livro todo. De fato, é bastante corajoso! Eu, pessoalmente concordo com a crítica do conceito de pulsão de morte e a proposta clínica que o André apresenta é interessantíssima!

    Sobre a indicação de um esquizoanalista infelizmente não conheço nenhum…

    Forte abraço!!

    Curtir

  14. carla

    Li a biografia da Roudinesco e gosto muito. Ela deve ser uma das tais Erínias que ele menciona…
    Sobre “A vida de Lacan”: ele escreve muito bem, então, acho que vai dar um livro bem interessante. Mas não deu pra deixar de perceber que por trás de todo aquele sorbonês, ele vai defender, sim, o sogro-mestre! Mas as biografias são interesssantes por isso também: pela exposição do conflito que se trava entre as supostas intenções do autor e aquilo que eles revelam no texto sem querer. Mas como ele não é nem um pouco ingênuo, já levantou nesse início questões interessantíssimas sobre a narrativa biográfica, como a impossibilidade de se colocar como narrador neutro e a inevitabilidade da ficção… Ou seja: num sentido mais estrito, as biografias são impossíveis.
    Tô quase na metade do livro do André Martins. As críticas dele são bem pontuais e ele vai seguindo passo a passo os textos do Freud. Até agora achei muito bom. Fico curiosa pra saber como ele vai amarrar as críticas que faz aos questionamentos já feitos por Lacan, e como vai avançar em relação a eles. Não é um trabalho fácil de se fazer.
    Abraço!
    Carla

    Curtir

  15. Lucas Nápoli

    Pois é, Carla! Há uma rusga bem conhecida no meio analítico entre o Miller e a Roudinesco justamente por causa da biografia que ela fez. Ela volta e meia é chamada de “fofoqueira” e acusada de passar uma imagem deletéria do Lacan. Mas acho que receber o epíteto de fofoqueiro é o preço que todo autor de biografia é obrigado a pagar pois se trata justamente de expor aqueles aspectos velados que podem parecer irrelevantes à primeira vista mas que são interessantes para o leitor.
    A missão de Miller na Terra (rsrsrs) é defender Lacan. Todo o seu ensino na Orientação Lacaniana é, no fundo, uma tentativa de demonstrar que a leitura lacaniana é “A” leitura correta de Freud. No início, ele tinha como propósito esclarecer a teoria lacaniana e hoje se dedica a defendê-la. Por isso, concordo com você que a biografia terá esse viés. Mas isso é bom. Vai ser interessante e enriquecedor cotejar a narrativa dele com a da Roudinesco.

    Quanto ao livro do André, você está se aproximando da melhor parte, na qual ele mescla Winnicott, Spinoza, Nietzsche e Deleuze e propõe uma diretriz original para a condução do tratamento psicanalítico! Boa leitura! Forte abraço!

    Curtir

  16. carla

    Não vejo a hora de chegar a essa parte. Foi bastante corajoso da parte dele questionar o conceito de pulsão de morte, tido pelos lacanianos como uma linha divisória entre a leitura dos “pós-freudianos” e a leitura de Lacan. Me interessa muito essa proposta de uma clínica da potência, alavancada pela discussão sobre a castração e a falta. Nenhuma dessas questões é de pouca relevância. Tenho visto pessoas adoecerem gravemente em análise, o que me tem feito pensar e me perguntar sobre o que pode estar dando errado na clínica. Parece que a castração virou uma nova forma de gozo e toda a ênfase da análise acaba recaindo na tecla da “falta” e muito pouco incentivo é dado aos aspectos produtivos da análise. Lembrando o Deleuze: “o desejo está em toda parte onde alguma coisa flui e escorre…”
    Abç pra você também.
    Carla

    Curtir

  17. Lucas Nápoli

    Oi Carla! Parece que nós dois temos tido as mesmas constatações clínicas. Aliás, nós dois e o André! Você verá como ele trabalha essa questão da falta e da castração.
    Depois de ler o livro do André e de ler um pouco mais de Winnicott tornou-se para mim impossível não considerar a pulsão de morte como o erro mais grotesco de Freud, digo enquanto conceito. Acho que o nome “pulsão de morte” às vezes é útil, mas desde que se agregue à sua uilização a explicação acerca das razões pelas quais o sujeito resolveu agir com uma pulsão de morte. Como está lá no Freud, ou seja, como uma tendência inata para a auto e hetero destrutuividade, me parece totalmente desprovida de valor, pois não explica nada. Lacan tentou elaborar o conceito de forma mais sofisticada e elegante, mas acho que a pulsão de morte dele acabou se transformando em outros conceitos que dizem respeito a outros objetos.
    Adorei essa frase do Deleuze!!!
    Forte abraço!

    Curtir

  18. carla

    Oi, Lucas,
    Eu ainda não atendo, então acho que não dá pra falar em ‘constatação clínica’. Minha opção pela psicanálise foi tardia e ainda preciso de muita análise… As observações que faço são resultado da minha própria experiência de análise e do acompanhamento das experiências de alguns amigos e conhecidos meus, que adquiriram doenças graves durante ou depois do processo de análise. Claro que quem faz análise não está imune a qualquer tipo de doença, mas em alguns casos pude perceber tão claramente que se tratava de uma reação de desespero, de uma desistência do desejo (“é assim mesmo, a neurose é assim mesmo, a castração, a falta…”), de uma “impossibilidade de se lidar com a falta”, de se construir alguma coisa boa a partir dela. Mas será que esse tipo de análise tão centrada na “falta”, na “castração” não favoreceria esse tipo de reação? Não posso entrar em mais detalhes aqui, porque são coisas pessoais demais. Tudo isso às vezes me faz pensar: “Será que vale a pena fazer análise?” Quando não se tem uma opção melhor (e muitas pessoas não têm), adoece-se, porque a doença também é uma forma de criação, de produção. Como eu vinha lendo Nietzsche há algum tempo, isso tudo me deixava muito desconfiada, essa atmosfera de elogio da dor e do sofrimento. Mas também tive a oportunidade de tomar contato com um outro tipo de psicanálise, onde existe lugar pra alegria e pro riso, e foi isso que me atraiu.
    Concordo totalmente com a ideia de que o impulso de destruir não seja original, mas um afeto reativo, ao invés de se tratar de uma suposta “essência do ser humano”, e que não é bom nem ruim. Acreditar no contrário seria mesmo uma atitude tão idealista quanto àquela que prega que os homens são bons por natureza – como o mito romântico do bom selvagem. Só repito o que diz o André. Diante de certas situações, a expressão da agressividade pode inclusive ser muito mais saudável do que o controle dos impulsos agressivos. Daí a importância da questão ética, que ele também aborda. Minha questão é – e também a dele: será que repetir vivências dolorosas é só uma forma de gozo, expressão da “pulsão de morte”? Não é também uma forma de tentar se curar, de elaborar a experiência intolerável e assumir uma posição ativa diante de uma situação em que o sujeito em outra época vivenciou com passividade? Mesmo na análise do episódio do Fort Da essa possibilidade não deixou de ser pensada por Freud. Mas continuo repetindo o que o André diz. Com a repetição a gente goza, mas também vai tornando possível algum tipo de saída. E a agressividade pode servir inclusive como alavanca.
    A frase sobre o desejo é do Anti-Édipo. É um livro que pra mim está sendo muito curioso ler. Às vezes fica incompreensível, pela minha falta de familiaridade com o pensamento de Deleuze, e às vezes me faz morrer de rir com o sarro que ele tira dos analistas e me lembra um pouco o Lacan. Tem essa mistura de um pensamento altamente sofisticado e uma outra voz bem prosaica que fica costurando o texto dele o tempo todo.
    Além de prazeroso, tem sido um ótimo contraponto à minha análise discutir essas coisas com você.
    Um abração.
    Carla

    Curtir

  19. Lucas Nápoli

    Oi Carla! Suas idéias são muito semelhantes às minhas sobre essa coisa da falta e da castração!

    Parece-me que o que está na base do raciocínio clínico que leva a essa espécie de resignação que você mencionou (“A neurose é assim mesmo…”) é a tese de que a análise é feita, em última instância, para formar analistas e que só uma versão aplicada teria em vista fins terapêuticos. Essa foi uma das novidades trazidas pelo Lacan, reafirmada a todo momento pelo Miller, e da qual eu discordo veementemente. Às vezes sinto que o pessoal da AMP e, aqui no Brasil, da EBP querem fazer da psicanálise uma experiência quase espiritual, semelhante a uma ascese, quando, na verdade, se trata de um método terapêutico. Um método fabuloso, evidentemente, que mudou radicalmente nossa compreensão do humano. No entanto, continua sendo apenas um método. Quando a finalidade terapêutica é colocada em segunda instância, a experiência adquire um matiz quase sacrificial, que muitos analisandos acabam aceitando – e relatando nos seus “passes”.

    Também sou pouco familiarizado com a escrita e o pensamento do Deleuze. As únicas coisas que li dele foram algumas partes do ótimo “Spinoza: filosofia prática”. Preciso ler o Anti-Édipo!!!!

    Forte abraço!!

    Curtir

  20. carla

    Oi, Lucas!
    Vou tentar escrever menos porque acabo me dispersando demais.
    Também tenho essa impressão em relação ao passe, como se se tratasse de uma experiência mística, uma espécie de “imitação de Cristo”, embora eu ache interessante a ideia de narrar a própria experiência de análise. O relato autobiográfico de Margareth Little como paciente de Winnicott é um dos mais impressionantes que eu já li. Outra sensação é a de que nesses relatos de passe existe uma certa homogeneidade de experiências, como se já houvesse regras pré-estabelecidas, etapas a cumprir, com pouco espaço pra singularidade. Caso o relato de sua experiência seja um pouco diferente dos outros, e principalmente se não vier reforçado pela convicção absoluta de um novo convertido, então o veredicto ouvido será “você não foi atravessado pela psicanálise…”
    Tenho muito interesse num grupo de estudo sobre Deleuze e a psicanálise, começando com a leitura do Anti-Édipo. Tenho procurado pela internet, mas como aqui no Rio só existem grupos de trabalho acadêmicos, eu não posso participar porque não estou dentro de uma universidade. Caso você saiba de algum ou tenha interesse em formar um, me avise.
    Um ótimo fim-de-semana.
    Abraço!
    Carla

    Curtir

  21. Lucas Nápoli

    Oi Carla! Não precisa economizar nas palavras não! Seus comentários nunca são prolixos!

    A meu ver, já que estamos fazendo essas analogias com a experiência religiosa, o passe deveria ter o mesmo significado que o batismo tem na religião cristã. Com efeito, naquele âmbito, o batismo diz respeito apenas à proclamação pública da conversão, a experiência realmente essencial. Transpondo a mesma lógica para a psicanálise, o passe deveria ser encarado como a enunciação a determinadas testemunhas daquilo que o sujeitou experimentou na sua trajetória de análise, sem a existência de possibilidade alguma de aporvação ou desaprovação, como hoje acontece. É absolutamente ilógico que terceiros possam decidir se um sujeito de fato chegou ao final de sua análise. Só o próprio sujeito é capaz de acessar tal conhecimento. Ou melhor, o sujeito e seu analista. Acho que era essa a intuição inicial de Lacan ao criar o dispositivo do passe: a proclamação pública do encerramento da caminhada de analisante e a passagem para o lugar de analista. O que você acha?

    Quanto ao grupo de estudo sobre Deleuze, se eu aina estivesse morando no Rio, teria toda a vontade de iniciar um grupo contigo. Mas no momento estou morando em Minas. De fato, a maioria dos grupos estão no âmbito universitário, mas acho que você consegue garimpar algum fora desse domínio. O pessoal costuma divulgá-los nas próprias universidades, naqueles murais de avisos.

    ABRAÇÃO!!!

    Curtir

  22. carla

    Oi, Lucas,
    Parece que a história da instituição do passe apresentou problemas desde o início, lá mesmo na Escola Freudiana de Paris. Você já leu o livro “O dia em que Lacan me adotou”, do Gerard Haddad? Ele acompanhou tudo desde o início, inclusive a dissolução da escola. Ele mesmo enfrentou situações bem ruins quando se candidatou ao passe na escola e não foi “aprovado”: fofocas, comentários humilhantes, etc.
    Eu, particularmente, não sei se é possível a existência de uma “escola” (a palavra já é complicada) que não carregue a herança das instituições educacionais, com seus dispositivos de ensino e avaliação. Lacan mesmo usava em seus seminários a palavra “ensino” o tempo todo. Uma escola que não ensina? É possível? Essa foi a pergunta que eu fiz assim que coloquei os pés pela primeira vez numa escola de psicanálise, quando me disseram que ali não davam aulas e não se ensinava nada. Uma pergunta que continua ecoando pra mim.
    Voltando à questão do passe, também acredito que só o analisando, diante de seu analista, pode perceber qual é o momento em que ele se torna um analista. Essa é, aliás, uma problemática minha no momento. Quando entra em jogo uma “comissão de passe” acho praticamente impossível não se estabelecer uma relação de poder entre passadores e passantes, em que os últimos estão hierarquicamente submetidos aos primeiros. Não vejo qualquer espécie de questionamento a respeito da presença dos mecanismos de poder dentro das escolas, até porque raramente interessa à uma instituição questionar os seus pressupostos, o que sempre traz o risco de uma dissolução. Mas não seria esse um preço alto demais a pagar?
    Minha busca por um grupo de estudo vai continuar…
    Abç!
    Carla

    Curtir

  23. Lucas Nápoli

    Oi Carla! Bem lembrado! Li esse livro, sim! Aliás, ele é ótimo. Haddad nos apresenta uma versão do Lacan surpreendente, que o força a deixar o curso de Psicologia. As anedotas que ele narra no livro me ajudaram a relativizar um pouco a pessoa de Jacques Lacan, que os analistas tendem a negligenciar e que parece que O Miller resgatará com sua biografia.

    Abração!!!

    Curtir

  24. carla

    Além desses, li outros relatos sobre a relação de Lacan com seus analisandos: Uma temporada com Lacan e Rue de LiLLe nº 5, que também são interressantes, mas seus autores não chegam a “abrir a alma”, como o Gerard faz. Vamos esperar pelo livro do Miller!
    O que queria mesmo ver era um filme sobre o Lacan, inspirada no gênero “school novel” . Lacan daria uma grande personagem, de gravata-borboleta, ternos que pareciam feitos de pano de cortina e um jeito de tia velha, rs. Já escrevi isso meio aqui tonta de sono… então é melhor parar pra não ficar enxendo linguiça demais.
    Abç pra você.
    Carla

    Curtir

  25. Lucas Nápoli

    kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk “Um jeito de tia velha” foi ótimo! rsrs
    Você nunca enche linguiça, Carla!
    Diga-me: esses livros que você citou ainda se encontram à venda?
    Sobre um filme sobre o Lacan também tenho muita vontade de assistir. Além do “Televisão” há um outro vídeo em que ele aparece dando uma conferência, ou melhor, “ensinando” como ele diz. Trata-se da conferência que ele deu em Louvain, na Bélgica em 1972. Você já assistiu? Lá ele aparece com uma gravata diferentona, sofre com um maluco que interrompe sua fala… Eu tenho esse vídeo aqui. É muito bom não só para ver a figura lacaniana, mas também no que diz respeito à teoria. No vídeo ele fala coisas de forma muito sucinta, mas algumas bastante esclarecedoras da última fase de seu pensamento.
    Abração!!

    Curtir

  26. carla

    Os livros estão à venda, sim. O do Pierre Rey – ‘Uma temporada com Lacan’ -foi relançado recentemente; ‘Rue de Lille, numero 5’ e ‘O dia em que Lacan me adotou’ você talvez encontre na estante virtual.
    Eu vi esse video, é muito bom pra pegar um pouco o clima dos seminários, o ritmo da prosa dele, e inclusive a tietagem da plateia. Vi que existem vários videos com ele na internet, vou dar uma olhada em todos.
    É uma contradição: Lacan me interessa, sempre fiz análise com lacanianos (e até me casei com um), mas acho os lacanianos uns chatos, com raras exceções. Devo ser muito masoquista, rs. É um relação de amor e ódio absolutos.
    Abç pra você também.
    Carla

    Curtir

  27. Lucas Nápoli

    Oi Carla! Realmente nós temos uma relação muito parecida com a psicanálise lacaniana. Eu também acho a imensa maioria dos lacanianos uns chatos, arrogantes e enfatuados! rsrsrs Mas o Lacan em si é, como diz a Tânia Coelho dos Santos, hipnótico. Mesmo às vezes não entendendo nada nos Seminários, a leitura segue deliciosa, naquele clima de romance de suspense, como se fosse chegar um momento em que ele explicaria tudo! rsrsrs
    Brigadão pelas dicas dos livros!
    Abração!

    Curtir

  28. Roberto Autran Nunes

    No meu ponto de vista, tudo isso que estamos vivendo não passa de um resultado mecânico de fatores físicos impessoais que culminaram, através de entidades informacionais auto-replicantes – no nosso caso, o DNA –, em nossa existência enquanto máquinas, portanto sem livre-arbítrio, conscientes de si mesmas e tendo, por sua própria natureza, o objetivo da perpetuação, que por sua vez não tem objetivo algum.

    Curtir

Deixe um comentário