A psicologia do “bonzinho”

Betty Draper

Você certamente deve conhecer pessoas que se encaixam no perfil que irei descrever abaixo. Talvez você até seja uma delas. Trata-se daqueles indivíduos aos quais o senso comum se refere como “bonzinhos”. O fato de essa alcunha ser formulada no diminutivo já denota suficientemente uma característica básica dessas pessoas: o modo afetado com que expressam os atributos que tendemos a associar à bondade. O bonzinho é uma caricatura do ideal de bondade construído pela civilização ocidental. Ele é cordial em excesso, solícito em excesso, prestativo em excesso, humilde em excesso… Enfim, o bonzinho manifesta em suas atitudes e comportamentos todas as características superficiais que são reputadas a um indivíduo supostamente bom. Contudo, não possui o tempero do equilíbrio que torna a bondade um valor precioso.

Neste texto pretendo fazer algumas despretensiosas ilações e formular algumas hipóteses que podem nos ajudar a compreender a dinâmica psicológica subjacente ao modo “bonzinho” de ser. Como o leitor poderá perceber, farei um uso bastante livre de certos conceitos da teoria psicanalítica, sem a preocupação de demonstrar filiação a alguma orientação teórica específica.

Insegurança

Os pais, cônjuges, familiares e amigos mais próximos dos indivíduos “bonzinhos” percebem com muita clareza que se trata de pessoas geralmente muito inseguras. A despeito da devoção que demonstram pelo outro em muitas ocasiões – o que poderia a princípio indicar amadurecimento emocional – os “bonzinhos” frequentemente sofrem com o medo de não serem aceitos, amados ou reconhecidos pelo outro. Nesse sentido, quando se mostra excessivamente prestativo ou incapaz de negar um favor a alguém, o “bonzinho” não está dando mostras de que não é uma pessoa egoísta ou avarenta. Na maior parte das vezes, o “bonzinho” não ajuda o outro por uma decisão espontânea e consciente de fazê-lo, mas sim pelo medo de não ser amado pelo outro. Em decorrência, as relações interpessoais do “bonzinho” tendem a ser profundamente narcísicas, pois ele está o tempo todo tentando “resolver” a sua própria insegurança.

O temor de perder o amor do outro é tão imperativo que as demandas alheias acabam sendo tomadas pelo “bonzinho” como obrigações. Isso faz com que as pessoas com as quais o ele não possui vínculos muito fortes acabem acreditando que estão lidando apenas com uma pessoa muito prestativa e generosa.

Podemos concluir, portanto, que o “bonzinho” está muito mais preocupado com o seu próprio eu, ou melhor, com as fragilidades de sua estrutura egóica, do que com o outro. Em outras palavras, o que está por trás dos comportamentos do “bonzinho” é exatamente o oposto do que sua conduta parece indicar à primeira vista. Com isso, não estou defendendo a tese de que o “bonzinho” encarne a figura do canalha egoísta que ajuda os outros por um mero exercício de “marketing pessoal”. O funcionamento subjetivo do “bonzinho” não é perverso, mas da ordem do que ficou conhecido em psicanálise como “patologias narcísicas”. Devotar-se ao outro, ter dificuldade para confrontá-lo e para resistir às suas demandas são comportamentos que se impõem ao “bonzinho” com a força de atos compulsivos. Ele só consegue fazer frente ao medo de perder o amor do outro, sujeitando-se, tornando-se um servo resignado.

Máscara

Um conceito que talvez nos possa ser de grande utilidade para a compreensão da etiologia da conduta “boazinha” é a noção de “falso self” proposta por Winnicott. Do ponto de vista desse autor, quando o ambiente não se relaciona de modo sintônico com o bebê nas fases iniciais do desenvolvimento, a criança pode desenvolver um falso self a fim de assegurar sua sobrevivência psíquica. Quando o ambiente não se relaciona de modo sintônico? Quando é invasivo ou negligente, ou seja, quando não atende as necessidades do bebê em seu ritmo. Nessas situações, o bebê é obrigado a abrir mão de sua espontaneidade para se comportar de acordo com o ritmo do ambiente. Essa maneira artificial de se comportar é uma das facetas do que Winnicott chamou de “falso self”.

Ora, em linhas gerais não é isso o que ocorre com o “bonzinho”? Se levarmos em conta o modo subserviente com que lida com as pessoas, podemos inferir que inconscientemente o “bonzinho” experimenta o outro como hostil ou, no mínimo, como incapaz de resistir a uma negativa. Assim, o “bonzinho” dá mostras de não ter incorporado uma referência de cuidado suficientemente bom capaz de produzir nele o sentimento de segurança que dá sustentação ao eu. Por essa razão, é como se o indivíduo precisasse segurar a si mesmo o tempo todo e proteger-se do abandono do outro, objetivos que só podem ser alcançados por meio da construção de uma identidade artificial: o modo “bonzinho” de ser.

19 comentários sobre “A psicologia do “bonzinho”

  1. ana paula

    Sinceramente, não concordo com o texto, pois a pessoa não é boa por ter problemas de personalidade………é boa ter um coração puro!!!!

    Curtir

  2. Nathanne

    Muito bom, o “bonzinho” não é o que demonstra ser, e as relações que eles mantêm podem ser doentias, pelo fato do desejo de ter a sua bondade retribuída … Ainda tem isso.

    Curtir

  3. Fábio Roberto

    Ana Paula, creio que o texto refere-se ao excesso desse comportamento, o que, logicamente, atrapalhará e produzirá sofrimento na vida do indivíduo, tornando-o disfuncional. Como o Lucas coloca como característica: “o o modo afetado com que expressam os atributos que tendemos a associar à bondade”.

    Concordo com o fato de que “ser bom” não necessariamente tem a ver com uma patologia. Porém, neste texto, não se está falando destas pessoas.

    Curtir

  4. Eva

    Fiz uma busca no Google para é entender melhor esse tipo de pessoa e o seu texto foi o mais esclarecedor. Parabéns!

    Curtir

  5. Eder

    Um texto muito bom, coloca de maneira clara um perfil de pessoa que encontramos no nosso cotidiano; bem colocado.
    Em que se pese que parte das pessoas associam os generosos, prestativos, solidários e amorosos de pronto com o “bonzinho” como uma forma de ela própria se redimir e se auto-justificar de suas posturas anti-éticas, egoístas e perversas e ao mesmo tempo desqualificar pessoas excelsas, que de fato, estão por aí.

    Curtir

  6. Um texto muito bom, coloca de maneira clara um perfil de pessoa que encontramos no nosso cotidiano; bem colocado.
    Em que se pese que parte das pessoas associam os generosos, prestativos, solidários e amorosos de pronto com o “bonzinho” como uma forma de ela própria se redimir e se auto-justificar de suas posturas anti-éticas, egoístas e perversas e ao mesmo tempo desqualificar pessoas excelsas, que de fato, estão por aí.

    Curtir

  7. FABIOLA BARBOSA DA SILVA

    Meu parabéns pelo texto e conteúdo, me esclareceu alguns pontos sobre meu comportamento.

    Curtir

  8. Dorilea

    Concordo com Ana Paula. Sou Pessoa totalmente desprovida de maldades. Gosto e vivo aliviando a for alheia. Seja ela física, mental ou financeira. Gosto de proporcionar bem estar e alegria às pessoas. Será que sou louca?

    Curtir

  9. Alguém.

    Segundo alguns dizem, a minha natureza parece que é ser generoso, bondoso e tal. Outros dizem que sou “Bonzinho” “legalzinho” e isso me causa incomodo, da entender que a pessoa é boba, ingênua e até fraca. E nós já sabemos o que acontece com pessoas de bom coração. Já terminaram comigo por que eu sou “Muito Bonzinho” e isso é frustrante. Eu não sou santo, só sou alguém que prefere evitar conflito desnecessário, calmo, tranquilo, que não quer saber de muita agitação, não consigo ficar com raiva por muito tempo.

    Curtir

Deixe um comentário