No início do post “Como você lida com o seu passado? (parte 1)” eu havia prometido um segundo texto desenvolvendo, tal como naquele, algumas idéias que me vieram à mente no decorrer da leitura do texto “O niilismo e o problema da temporalidade” de Gianni Vattimo, que se encontra na coletânea de ensaios do autor intitulada “Diálogo com Nietzsche”. Tais idéias estabelecem alguns vínculos entre a Psicanálise e o pensamento de Nietzsche a respeito da história.
Naquele post fiz uma analogia entre os dois modos de encarar o passado postulados por Nietzsche (de acordo com a leitura de Vattimo), a saber: o que ele chama de “doença histórica” e o que seria a maneira autêntica de se lidar com o passado e dois momentos históricos da técnica psicanalítica, os quais acabaram por se converter em dois posicionamentos metodológicos antagônicos, de modo que ambos ainda se fazem presentes no contexto atual da técnica psicanalítica.
Hoje meu interesse é trabalhar o conceito central do ensaio de Vattimo, o niilismo, que, em Nietzsche, aparece como uma postura filosófica não-original, mas reativa, decorrente de um processo anterior caracterizado por certa desilusão. É precisamente nesse modo nietzschiano de encarar a postura niilista que enxergo uma associação com o tratamento psicanalítico.
De Hegel ao Eclesiastes
Na segunda parte de seu ensaio, Vattimo dedica-se a demonstrar por que Nietzsche concebe o niilismo como consequência da doença histórica. Essa, como vimos naquele outro post, consiste na adesão a uma das seguintes pressuposições: (1) de que a história contém em si um sentido, um fim, um propósito previamente definidos ou (2) de que a história é um imenso oceano de eventos transitórios no qual toda ação é pouco relevante ou significativa já que se constitui apenas como mais uma gota d’água dentre milhões de outras.
Por sua vez, o niilismo significa a postura filosófica e/ou existencial que nega a presença de qualquer fundamento ou valor na realidade. Em outras palavras, para o niilista não há nada (nihil) capaz de assegurar que um determinado ato é preferível a outro; todos os atos, todos os eventos, todos os acontecimentos se equivalem. O caro leitor provavelmente já experimentou momentos em que tal argumento se lhe apresentou à mente ou conheceu pessoas que já passaram pela experiência do niilismo. O que Nietzsche fará é uma espécie de análise psicológica das razões pelas quais esse tipo de posicionamento vem à tona na consciência humana. E o que ele conclui é que se trata do ranço de uma desilusão prévia.
Como Vattimo explica, Nietzsche percebe que todo modo de encarar a história baseado na idéia de que há um sentido por detrás dos acontecimentos que se processam ao longo da existência está fadado ao fracasso, pois a própria vida se encarrega de desmenti-lo. Hegel, por exemplo, construiu todo um sistema filosófico baseado na tese de que a história caminha inevitavelmente rumo ao saber absoluto, ou seja, ao momento em que nossa razão seria capaz de conhecer absolutamente toda a realidade. Diga-me, caro leitor, se você tem alguma dúvida de que Hegel deveria ser internado no hospício mais próximo?
Outro exemplo de concepção que admite a existência de uma ordem pré-definida ao mundo é a providencialista, presente na alma de muitos cristãos que entenderam equivocadamente a mensagem de Jesus de Nazaré. Crêem tais homens que Deus guia a história tal como um escritor de um romance. Nessa “obra” aqueles que seriam “de Deus” (os mocinhos) teriam uma vida agradável, cercada de benesses ao passo que os demais (os vilões) sofreriam as agruras da infelicidade. Evidentemente, o que pode resultar disso é apenas desilusão (vide, por exemplo, os lamentos de Salomão no “Eclesiastes”) e em seguida aquele célebre brado do homem de pouca fé: “De que vale ser bom?” – eis o niilismo.
Assim, a crença na providência ou numa ordem de sentido que guia a história, ao ser posta em xeque pela própria existência, gera outra crença: a de que não há nada capaz de funcionar como critério para nossas ações visto que, descortinada a ausência de ordem no mundo, nada há que possa fundamentar o agir humano. Ora, não é precisamente esse sentimento que acomete nossos analisandos já nas etapas finais de um processo analítico?
Da fé à liberdade
Se há um aspecto presente em todo aquele que busca a ajuda de um psicanalista, esse aspecto é a fé. Todo o nosso trabalho como analistas é o de colocar em questão essa fé. Fé em quem? No Outro. Sim, Outro com O maiúsculo, não o pequeno outro, representante de todos esses seres humanos com os quais o sujeito compartilha sua existência. O Outro em questão é esse precipitado maciço de falas do pai, da mãe, do irmão, do avô, da avó, da cultura. Enfim, é essa amálgama de saberes que vão se depositando ao longo da vida num imenso compartimento da alma etiquetado com a pergunta: “Quem sou eu?”. O analisando chega ao divã com a firme certeza de que aquele amontoado de entulho verbal que fora ali depositado responde efetivamente à pergunta que dá nome ao compartimento. Inevitavelmente, esse entulho não permanece imóvel, mas é organizado como uma historinha, de modo que cada fragmento vai se encaixando num romance trágico que passa a constituir o que o analisando irá chamar de “minha história de vida”. É por isso que se o analista não for competente, ele é facilmente enredado nesse romance, pois ele faz todo o sentido. Afinal, é construído justamente com essa finalidade: dar sentido.
Portanto, o analisando, tal como a consciência humana pré-niilista, adentra o dispositivo analítico crente numa pré-ordenação de sua história. Em decorrência, a tarefa do analista é fazer o papel que em Nietzsche é realizado pela própria vida, ou seja, o de demonstrar a falta de sustentação dessa história, deixando claro que não há nenhuma pré-ordenação, que o romance existencial com o qual o sujeito presenteia o analista não existiu desde o início, mas foi paulatinamente sendo construído.
Quando uma análise é levada até o fim, o que geralmente acontece é que depois de muitas idas e vindas, o analisando consegue ter abalada sua crença no Outro, reconhecendo que ele na verdade não existe como disse Lacan no final de seu ensino. Por outro lado, se o Outro não existe, se aquela pré-ordenação da história com a qual o paciente entrou em análise se mostrou construída, artificial, o que fazer? O que a partir de agora servirá como guia das ações do sujeito? Antes era o Outro; agora o sujeito conta com uma apavorante liberdade de movimentos, mas não sabe por onde começar e com base em quê agir.
Da queda do Outro ao imperativo da vida
Nietzsche dá a resposta: não há critérios transcendentais para a ação a não ser que os criemos como reação ao desespero da liberdade. O único critério é imanente, é a própria vida e aquilo que fortalece e aumenta a própria potência vital. O que a psicanálise faz é auxiliar o sujeito a demolir essa massa alienígena (alien=estranho, outro) que se impunha a ele como norteador de ações no lugar da própria vida. Assim, livre dessa história produzida como defesa, o sujeito se torna capaz de optar e de escolher aquilo que mais convém à sua potência vital, mesmo que seja um traço que outrora estava presente na amálgama do Outro. Desacreditado em sua função de eixo absoluto e pré-ordenador, o Outro passa a ser um mero referencial que pode ser descartado ou utilizado. A história agora é outra.