[Entrevista] Lucas Nápoli e a obra de Georg Groddeck

7669_560500807350549_1836123975_nCaríssimos, como anunciei no post anterior, acabo de lançar meu primeiro livro: “A Doença como Manifestação da Vida: Georg Groddeck e um novo modelo de cuidado em saúde”, publicado pelas editoras Appris/Prisma. Por essa razão, a Revista Benedita, publicação de jornalismo cultural que circula em Governador Valadares (MG), cidade onde resido, realizou uma longa entrevista comigo cuja pauta foi exatamente o conteúdo e o processo de publicação do livro.

Segue abaixo a íntegra da entrevista:

Benedita – Como e por que surgiu o seu interesse pela obra de Georg Groddeck?

Lucas Nápoli – Em 2007, quando eu estava na graduação em Psicologia na Universidade Vale do Rio Doce (Univale) participei como bolsista de iniciação científica de uma pesquisa coordenada pelo professor Carlos Alberto Dias que pretendia investigar as consequências do câncer sobre a vida afetiva e sexual de pacientes que sofriam dessa enfermidade. No mesmo ano, fui convidado pelo professor Walter William Barreto para ser estagiário no Ambulatório de Lesões Dermatológicas, um belo projeto de extensão da Univale. Minha função no Ambulatório era prestar atendimento psicológico a pacientes com feridas crônicas. Havia pacientes cujas lesões não cicatrizavam definitivamente há quase 50 anos! A fim de tentar entender de que forma fatores de ordem psicológica e emocional poderiam estar contribuindo para que as lesões desses pacientes não cicatrizassem e também para compreender as relações entre o câncer e a história de vida dos pacientes que eu entrevistava na pesquisa do prof. Carlos, comecei a estudar a obra de autores do campo da psicossomática. Grosso modo, a psicossomática é um campo de interface entre a psicologia e a medicina que investiga o papel do psiquismo no surgimento de doenças físicas. Foi nesse momento que me deparei com a obra de Groddeck. Foi paixão à primeira vista! (risos). Groddeck foi o primeiro psicanalista a propor de forma explícita a aplicação da psicanálise no tratamento de pacientes com doenças físicas. De fato, até então, para Freud e seus discípulos, o método psicanalítico só servia para pacientes com transtornos emocionais. Por esse motivo, muitos consideram Groddeck uma espécie de “pai da psicossomática”, o que não é verdade! Afinal, a grande marca do pensamento groddeckiano – certamente o aspecto que mais me chamou atenção em sua obra – é a tese de que não existem doenças físicas ou psicológicas e, nesse sentido, tampouco “psicossomáticas”. A doença, para ele, é sempre psíquica e somática. Afinal, quem está com um câncer, por exemplo, não sofre apenas no corpo, mas também na alma. Do mesmo modo, quem está deprimido costuma apresentar uma série de sintomas físicos, como cansaço, dores e, eventualmente, até mesmo um câncer. Creio que o que me atraiu para a obra de Groddeck foi justamente essa radicalidade, que, aliás, é um traço que também faz parte da minha personalidade.

Benedita – Qual é o nível de conhecimento dos profissionais de saúde acerca das ideias de Georg Groddeck e como estas ideias podem contribuir no desenvolvimento de políticas públicas da saúde?

Lucas Nápoli – Infelizmente, não só no Brasil como também em todo o mundo, existem poucos profissionais de saúde que possuem um conhecimento razoável da obra de Groddeck. Por outro lado, muitos conhecem o autor de forma superficial. É justamente isso o que atrapalha a transmissão de suas ideias! Isso porque Groddeck possui um estilo bastante peculiar de escrita e de divulgação das suas ideias que, para o leitor incauto, faz parecer que o autor está “forçando a barra” em algumas interpretações. Groddeck não é “recatado” como a maioria dos autores da psicanálise. Se ele observava, por exemplo, que a hemorragia que um paciente apresentava nos olhos estava ligada a uma angústia ele que teria experimentado ao ver seus pais tendo relações sexuais, Groddeck não tinha nenhum receio de enunciar suas conclusões dessa maneira. Aliás, para escândalo ainda maior de seus críticos, ele poderia dizer que o “Isso” (conceito mais amplo que o “Inconsciente” de Freud) do paciente o fez ficar com “sangue nos olhos” por ter visto o intercurso sexual dos pais. Esse tipo de formulação, que outros autores poderiam traduzir para um enunciado mais “palatável”, Groddeck escreve com toda a radicalidade. Isso levou muita gente, inclusive e, sobretudo, no meio psicanalítico (por incrível que pareça), a menosprezar o autor, considerando-o muito “viajandão”. Assim, Groddeck acabou sendo esquecido tanto na psicanálise quanto no campo mais amplo da saúde. O grande problema é que uma série de outras ideias muito interessantes de Groddeck sobre doença, saúde e tratamento acabou sendo também negligenciada. O propósito desse meu livro é justamente o de resgatar essas contribuições que hoje, mais do que nunca, se mostram bastante úteis. Vivenciamos atualmente no campo da saúde uma crise muito séria. Cada vez mais o modelo teórico hegemônico da área da saúde, que a literatura especializada denomina de “modelo biomédico”, tem sido criticado não só pelos usuários dos serviços de saúde, mas também pelos próprios profissionais. O fundamento do modelo biomédico é a concepção de doença como um fenômeno puramente físico, desvinculado da história de vida do paciente. Essa premissa é o que fundamenta práticas deploráveis como consultas médicas rápidas, em que o profissional se limita a solicitar exames físicos e prescrever medicamentos. Contudo, essa visão reducionista da doença como algo apenas orgânico não está presente apenas no meio médico, mas também na enfermagem, na fisioterapia, na nutrição e em outras áreas da saúde. Às vezes até na própria psicologia… Por isso, a mudança não deve ser buscada prioritariamente no campo prático, como os famigerados projetos de “humanização da saúde” pretendem. Não se trata de levar o médico a ficar 50 minutos com cada doente ou fazer com que o enfermeiro trate seu paciente com mais simpatia. Se a racionalidade, isto é, as concepções sobre o que significam doença, saúde e tratamento não forem alteradas na raiz, as mudanças feitas na prática serão completamente inúteis. Minha proposta no livro é a de demonstrar como é possível encontrar na obra de Groddeck diversos apontamentos que podem contribuir para a mudança dessa racionalidade. Em vez de um diagnóstico puramente físico, baseado em exames laboratoriais, Groddeck propõe um “diagnóstico do ser humano”, muito mais amplo, que não negligencia os aspectos orgânicos, mas que envolve também a dimensão relacional, simbólica e subjetiva da doença. No que diz respeito ao tratamento, o autor advoga que a doença não deve ser vista como um mal que precisa ser eliminado a qualquer custo. Groddeck pensa a enfermidade como um processo e como uma expressão do sujeito, ou seja, como um aspecto da própria pessoa. Nesse sentido, a extirpação pura e simples da doença significa, em última instância, uma espécie de mutilação do paciente. Groddeck propõe, então, que o tratamento deve visar, em primeiro lugar, a compreensão da doença. Essas são apenas algumas das muitas contribuições que podem ser extraídas da obra do autor e que procurei desenvolver ao longo do livro.

Benedita – Quando se afirma que a doença não é um inimigo a ser exterminado, mas uma forma de expressão do indivíduo que precisa ser compreendida e interpretada, isso significa o quê, na visão psicanalítica?

Lucas Nápoli – O nascimento da psicanálise se deu justamente a partir da tentativa empreendida por Sigmund Freud de ousar conversar com pacientes que até então tinham apenas seus corpos examinados pela medicina. Estou me referindo principalmente às pacientes histéricas do final do século XIX que apresentavam uma série de sintomas físicos como dores, anestesias em partes do corpo, afonias, cegueiras, etc. O que espantava os médicos da época era o fato de que tais sintomas não apresentavam nenhuma correspondência aparente no corpo. No caso de uma cegueira histérica, por exemplo, a paciente não conseguia enxergar, mas seus olhos não apresentavam qualquer tipo de lesão. Confusos, alguns médicos persistiam na realização de exames físicos com a esperança de um dia descobrirem o substrato orgânico dos sintomas histéricos. Outros, menos otimistas, acreditavam que a histeria não passava de uma farsa, um “piti” de mulheres burguesas entediadas. Freud e seu colega Breuer resolveram apostar num caminho diferente: em vez de procurarem o fundo orgânico dos sintomas, decidiram deixar as pacientes contarem livremente de que forma a doença havia surgido em suas vidas. Através desse procedimento, descobriram que frequentemente, ao fazerem isso, as pacientes se viam livres dos seus sintomas. Espantoso, não é? As pacientes falavam e se curavam! Freud e Breuer concluíram que, na verdade, os sintomas eram a forma que aquelas mulheres encontravam para expressar aquilo que não haviam conseguido manifestar anteriormente através da fala. Em outras palavras, as dores, cegueiras e anestesias eram substitutos de falas que não puderam vir à luz no passado. Groddeck, por seu turno, descobriu que a mesma dinâmica se passava no caso dos pacientes que atendia em seu sanatório, na cidade alemã de Baden-Baden. O curioso era que os pacientes de Groddeck apresentavam doenças efetivamente orgânicas, ou seja, com a presença de lesão no corpo. Portanto, não eram só as histéricas que utilizavam seus sintomas apara expressarem aquilo que sentiam, mas não podiam falar. Essa constatação levou Groddeck à tese de que toda doença é um veículo de expressão, uma forma que encontramos para falar para nós mesmos e para os outros determinadas coisas que ocultamos, inclusive, de nós mesmos. Com isso, Groddeck não estava dizendo que toda enfermidade é “psicológica”. O autor não negligencia, por exemplo, o papel desempenhado por vírus e bactérias. O que ele faz questão de enfatizar – e a Imunologia atual o comprova – é que não basta que um vírus invada o corpo de um indivíduo para que ele se torne doente. O adoecimento é sempre multifatorial. E um dos fatores que está sempre presente, do ponto de vista groddeckiano, é a expressão de conteúdos inconscientes. Se os profissionais de saúde não levam isso em conta e atacam a doença como um inimigo, eles deixam de analisar esse poderoso fator que poderá contribuir no futuro para o aparecimento de uma nova doença até mais grave.

Benedita – O que é doença?

Lucas Nápoli – No modelo biomédico (essa racionalidade que eu tenho dito que vigora atualmente no campo da saúde) a doença tende a ser associada ao conceito de anormalidade. Nesse sentido, a patologia é vista como toda e qualquer alteração anátomo-fisiológica no funcionamento orgânico normal dos indivíduos. O problema dessa concepção é que esse “funcionamento orgânico normal” é tomado como sendo universal e válido para todas as pessoas, pois é estabelecido a partir de uma espécie de média do funcionamento orgânico dos indivíduos. Dito de forma mais simples, é como se a medicina através das pesquisas que desenvolve desde o seu nascimento como disciplina científica no século XIX tivesse descoberto uma espécie de funcionamento padrão do corpo. Assim, doença seria toda alteração que fugisse desse padrão. Georges Canguilhem, filósofo do século XX e um dos autores que eu incluo na parte final do livro em um diálogo com Groddeck, fez severas críticas a essa noção de doença como anormalidade. Canguilhem, assim como o próprio Groddeck a seu modo, mostrou que cada pessoa possui um funcionamento orgânico específico e que esse não pode ser desvinculado do meio em que a pessoa vive. Em decorrência, quando vamos definir alguma coisa como doença, devemos sempre nos perguntar a respeito de quem estamos falando e qual o contexto em que essa pessoa está situada. Por exemplo, existem condições ambientais e climáticas que permitem que uma pessoa que possui um nível de pressão arterial alto em relação à média da população consiga viver muito bem, sem qualquer tipo de risco de infarto ou outros agravos. Nesse caso, de acordo com o modelo biomédico, essa pessoa mesmo não experimentando sofrimento ou qualquer tipo de limitação em função do seu nível de pressão arterial, deveria ser considerada como doente por estar fora da média do funcionamento orgânico. Convenhamos, isso é um absurdo! Em vez do conceito de normalidade, Canguilhem prefere utilizar a noção de “normatividade” para se referir à saúde. Normatividade é a capacidade que temos de criar novas normas de vida para nós mesmos, ou seja, nos inserirmos em contextos distintos daqueles em que estamos vivendo atualmente. Assim, uma pessoa doente é aquela cujo funcionamento orgânico só lhe permite viver no ambiente em que atualmente se encontra ou em contextos muito restritos. A doença, portanto, está associada à experiência da limitação ou da incapacidade de se adaptar a novas situações. No exemplo que citei há pouco, podemos dizer que o indivíduo que possui um nível de pressão arterial que só lhe permite viver num ambiente específico não é absolutamente doente (como define o modelo biomédico). Ele só pode ser considerado doente em relação às possibilidades de existir em um ambiente distinto do que se encontra. Em outras palavras, ele pode ser visto como menos saudável do que outra pessoa cuja pressão arterial é suficientemente adaptável a outros contextos.

Benedita – Na sua pesquisa sobre a obra groddeckiana, quais os outros pensadores foram utilizados para corroborar ou contrapor o pensamento de Groddeck? Em se tratando de uma pesquisa de Mestrado acadêmico, o trabalho foi mais difícil, considerando que tudo se limita ao campo teórico?

Lucas Nápoli – Além do filósofo Canguilhem ao qual acabo de me referir, houve outro autor que utilizei para, digamos, fornecer uma sustentação filosófica para as ideias de Groddeck. Trata-se do filósofo Benedictus de Spinoza que, embora seja um pensador do século XVII, formulou uma doutrina que vai diretamente ao encontro das características do mundo contemporâneo. Spinoza trabalha com uma visão do mundo e da existência que não possui aquelas velhas dicotomias da modernidade, tais como: natureza/cultura, indivíduo/sociedade, corpo/mente. Cada vez mais, temos nos dado conta de que tais categorias são, na verdade, apenas facetas de uma única realidade, como Spinoza diz. O curioso é que esse filósofo, apesar de ter sido meio que um discípulo de René Descartes, um dos principais pensadores da modernidade, foi capaz de elaborar esse pensamento tão pouco cartesiano. Por outro lado, o aspecto da obra de Spinoza que considerei mais interessante para o diálogo estabelecido com Groddeck, foi a sua concepção de que cada um de nós, assim como todas as coisas, não é passivo diante das circunstâncias que se nos apresentam na vida. Todos nós, segundo Spinoza, somos potências de autoperseveração na existência, isto é, todos nós tendemos naturalmente a buscar aquilo que nos é útil e a nos afastarmos de tudo aquilo que nos prejudica. Isso só não acontece, ou acontece de forma menos potente, quando nos deixamos guiar por causas externas. É o que acontece, por exemplo, no suicídio. A pessoa que se resolve se matar só o faz porque imagina equivocadamente e em função de ter sido afetada por causas externas que a morte lhe será mais útil do que a existência. Em outras palavras, só buscamos o próprio mal de forma reativa, ou seja, não espontânea. A concepção de Groddeck a respeito do adoecimento caminha nessa mesma via. Para o médico de Baden-Baden, todos nós possuíamos uma tendência espontânea para a saúde, que é justamente o que faz com que muitas de nossas doenças acabem desaparecendo naturalmente. Para ele, uma enfermidade só se mantém e/ou se torna crônica, quando “optamos” por utilizá-la como veículo de expressão. Portanto, Groddeck pensa a doença da mesma forma que Spinoza concebe o suicídio, isto é, como fenômeno reativo e não espontâneo. Por isso Groddeck dirá que a principal função do profissional de saúde é a de tentar convencer o “Isso” do paciente, seja através da fala ou de outros procedimentos técnicos, que não vale a pena continuar optando pela via da doença como forma de expressão.

Com relação à segunda parte da pergunta, eu diria que não. Penso que não seja possível dizer que uma pesquisa teórica imponha mais dificuldades que uma pesquisa de campo ou vice-versa. Sou um grande defensor dos estudos teóricos, sobretudo porque nos dias atuais é possível notar uma grande valorização das “evidências”, das conclusões estatísticas e mesmo, num sentido mais informal, da “prática”. O que observo é que falta a muitos acadêmicos justamente um corpo teórico sólido capaz de fundamentar a leitura do que encontram no campo. Por isso, muitas vezes vemos trabalhos em que o pesquisador se limita a apresentar os dados sem qualquer tipo de interpretação. Ademais, como o meu “diagnóstico” do momento atual pelo qual passa o campo da saúde é de que vivenciamos uma crise paradigmática, ou seja, que diz respeito à racionalidade que fundamenta as ações de saúde, o trabalho de natureza teórica se impôs como a alternativa mais “prática” para a busca de possíveis contribuições para a resolução do problema.

Benedita – Ao transformar o texto acadêmico para o livro, no qual o objetivo é atingir outros públicos, quais foram os desafios encontrados para esta adaptação?

Lucas Nápoli – Na verdade, antes mesmo de iniciar o mestrado em Saúde Coletiva eu já tinha o projeto de publicar a dissertação em livro. Por isso, durante toda a pesquisa eu já me preocupava em escrever de uma forma que pudesse ser compreendida não só por estudantes e pesquisadores de outras áreas como também pelo público leigo. Aliás, acredito que essa seja uma característica que está presente em todos os textos que escrevo, desde aqueles que eu publico aqui em Benedita até meus artigos científicos publicados em revistas especializadas. Ao escrever, procuro sempre imaginar uma espécie de leitor virtual completamente leigo em relação ao assunto de que estou tratando, que está o tempo todo me fazendo perguntas. Assim, o texto acaba sendo uma resposta a questões leigas, o que o torna claro e compreensível para a maioria das pessoas. Creio que minha maior inspiração para escrever dessa maneira veio da obra de Freud. Você pode contar nos dedos de uma mão os textos de Freud que são difíceis de serem lidos por pessoas leigas em teoria psicanalítica. Mas voltando à questão, creio que não tive grandes dificuldades para transformar a dissertação em livro. Além do fato de já ter escrito a própria dissertação pensando em publicá-la, como já mencionei, acredito que outro fator que pode ter facilitado a publicação do texto sem grandes alterações foi a atualidade do tema e também o estilo de escrita do próprio Groddeck. De fato, o livro está cheio de citações saborosas de escritos do autor, os quais foram originalmente, em sua maioria, publicados num jornalzinho chamado “Die Arche” (“A Arca”) que o médico distribuía aos doentes internados em seu sanatório.

Benedita – O Roberto Drummond, escritor consagrado, dizia que a cada livro ele sentia a mesma ansiedade do primeiro, ou seja, nem dormia na véspera da data de entrega do livro. O que você tem a dizer sobre isso? Aconteceu com você?

Lucas Nápoli – Penso que a experiência do Roberto provavelmente é compartilhada pela maioria dos escritores. No meu caso, como os exemplares vieram lá de Curitiba, sede das Editoras Prismas e Appris (que publicaram o livro), eles acabaram chegando de surpresa, de modo que não cheguei a ter insônia no dia anterior. Contudo, quando finalmente tive a oportunidade de segurar o livro na mão, sentir o cheiro das páginas, apreciar a arte da capa, a emoção foi de fato muito grande! Tanto é que imediatamente compartilhei uma foto nas minhas páginas pessoal e profissional do Facebook segurando um exemplar. Fiz isso também porque não somente eu, mas também os futuros leitores estavam com uma expectativa enorme pela publicação. De fato, desde as primeiras conversas com as editoras, fui informando aqueles que acompanham minhas publicações nas redes sociais e no meu site que o livro seria publicado em breve. Postei fotos da capa, a sinopse, alguns trechos, de modo que muita gente de várias partes do país reservou seus exemplares autografados. Alguns leitores mais ansiosos viviam me cobrando: “E aí, Lucas, esse livro sai ou não sai?” (risos). Até que, depois de vários meses de gestação, o primogênito finalmente veio à luz!

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O eu é uma ilusão

No último post apresentei ao leitor um pouco da vida e do pensamento do médico e psicanalista Georg Groddeck (1866-1934). Trata-se de um autor cuja obra, injustamente e a despeito de sua originalidade e relevância, jamais obteve o devido reconhecimento por parte das ciências humanas.

Tratando de pacientes com doenças físicas, Groddeck teve acesso de forma inteiramente autônoma aos mesmos curiosos fenômenos que levaram Sigmund Freud, criador do método psicanalítico, a formular o conceito de Inconsciente.

Neste artigo desejo explorar alguns aspectos interessantes do pensamento de Groddeck relativos à noção de “eu” a fim de demonstrar seu ponto de vista acerca da subjetividade. Estou certo de que as questões e problemas colocados pelo autor são ótimas contribuições para uma reflexão atual sobre a nossa identidade em mundo habitado cada vez mais por perfis, avatars, faces

Rumo a Deus-Natureza

Como disse no texto anterior, além da dedicação à arte de curar, Groddeck também nutria uma forte paixão pela literatura, herança de seu avô e de sua mãe. Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o maior poeta da língua alemã, era decerto um de seus autores preferidos.

Com efeito, Goethe, além de insigne escritor, também se interessava por ciência e filosofia. Inspirado pelas ideias de Benedictus de Spinoza (1632-1677), filósofo que chocara seus contemporâneos ao propor a tese de que Deus não é um ente separado e transcendente à Natureza, mas é a própria Natureza, Goethe formulara o conceito de Deus-Natureza (Gottnatur). Todavia, contrariamente à Natureza de Spinoza, o Deus-Natureza de Goethe correspondia à ideia romântica de “mãe natureza”, que cria e sustenta tudo o que há no mundo de acordo com uma finalidade pré-determinada.

Como prova de sua veneração ao poeta, Groddeck escreve em 1909 um ensaio chamado “Rumo a Deus-Natureza” (“Hin zu Gottnatur”), texto que já indica as futuras elaborações teóricas do médico. De fato, nesse texto encontra-se a ideia que está presente tanto na filosofia de Spinoza quanto nos escritos de Goethe e à qual Groddeck também chega a partir de sua experiência clínica, a saber: a de que, na verdade, aquilo que nós chamamos de “eu” não passa de uma miragem, de uma ilusão, de um engodo!

Uma ilusão necessária

Por que estamos tão seguros de que somos um “eu”, ou seja, de que cada um de nós é um indivíduo distinto e absolutamente separado do restante do mundo? Para Groddeck, não há nada que nos dê qualquer garantia disso. Malgrado os mais recentes avanços da ciência, ainda não somos (e talvez jamais sejamos) capazes de saber ao certo quando o “eu” passa a existir. Será a partir do nascimento? Desde a concepção? Mas e o que antecede o encontro dos gametas? Se continuássemos a fazer tais perguntas, diz Groddeck, chegaríamos ao ponto de admitir que, no limite, o “eu” de cada um de nós já está de algum modo presente nos nossos ancestrais mais longínquos!

Igualmente, não chegaremos a nenhuma conclusão definitiva caso tentemos afixar os limites espaciais do nosso “eu”. Afinal, como Groddeck costumava dizer, jamais saberemos o exato momento em que um pedaço de pão que comemos se torna parte do nosso “eu” ou quando um determinado som que por ventura ouçamos deixa de ser um elemento exterior e passa a nos constituir.

Ao fazer tais indagações, Groddeck pretende desnudar o caráter ilusório de nossa individualidade, demonstrando que, na verdade, cada um de nós é apenas um modo de expressão da Natureza, isto é, estamos radicalmente inseridos nela, somos uma parte indissociável do todo, um imenso conjunto de relações. Em decorrência, entre o mundo e o que nós chamamos de “eu” não há de fato uma separação, mas uma relação de continuidade. Como diria Renato Russo, somos como gotas d’água, grãos de areia.

Groddeck, contudo, reconhece que a ideia de que somos um “eu” separado, dissociado, independente do resto da Natureza é difícil de ser abolida. Com efeito, é ela que sustenta a crença de que somos livres e responsáveis por nossas escolhas e ações – aspecto inegavelmente útil para a convivência em sociedade. Ademais, com exceção talvez daqueles que após se submeterem a experiências místicas afirmam ter provado a sensação de “serem um com o todo”, a grande maioria de nós jamais conseguiu se desvencilhar do sentimento de ser um “eu” separado do mundo.

Levando tudo isso em conta, Groddeck conclui que, conquanto objetivamente se possa dizer que o “eu” ou a noção de “indivíduo” seja uma quimera, o sentimento de ser um “eu”, livre, autônomo, consciente e responsável por seus atos parece ser um elemento atávico em nós, ou seja, impossível de ser eliminado. Para o médico, a Natureza, tendo em vista a utilidade da crença no livre-arbítrio e na responsabilidade individual, teria forjado no ser humano esse sentimento de individualidade.

Não obstante, Groddeck acuradamente ressalta as grandes limitações que uma noção reduzida do “eu” pode trazer para a compreensão de nossa existência. De fato, se nos ativermos apenas ao que sabemos conscientemente, teremos acesso somente a uma porção ínfima das causas que influenciam nossas decisões e comportamentos. Assim como não somos capazes de controlar deliberadamente a maioria dos processos fisiológicos que acontecem em nosso corpo – ninguém pode, por exemplo, determinar a quantidade de nutrientes que serão absorvidos na corrente sanguínea – assim também não estamos conscientes da série de fatores que condicionam nossas ações e atitudes aparentemente “livres”.

Nesse sentido, nos encontramos sempre mais ou menos “alienados” em relação às causas de nossos comportamentos e tal “alienação” ou “inconsciência” tenderá a ser tanto maior quanto mais reduzida for a concepção que temos de nós mesmos como indivíduos. Em outras palavras, nossa “alienação” aumenta quanto mais reduzimos o que somos ao nosso “eu”, ou seja, àquilo de que temos consciência. Foi justamente por esse motivo, e com o intuito de propor uma concepção de ser humano a mais abrangente e menos “alienada” possível, que Groddeck forjou, em oposição à ideia de “eu”, o conceito de “Isso”. Mas Isso é assunto para um próximo post.

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Este artigo foi originalmente publicado em Benedita, ano 1, n. 2, julho de 2012.

O outro pai da psicanálise

Baden-Baden, Alemanha, 1909.

Uma nova paciente é encaminhada ao Sanatório Groddeck. Seu verdadeiro nome ninguém sabe. Srta. G, enigmático pseudônimo, é como a ela se refere o homem de orelhas pontudas e semblante grave que a recebe, Dr. Georg Groddeck. Nove anos antes, em companhia da esposa Lina, o médico especialista no tratamento de doentes crônicos adquirira aquele imponente edifício de arquitetura clássica e o transformara em reduto de doentes desenganados de todo o território germânico. Era para lá, onde se dizia que pacientes praticamente condenados à morte recuperavam a saúde, que muitos médicos encaminhavam os seus “casos perdidos”.

A Srta. G era um deles. Revelando imediatamente a gravidade de seu estado, logo ao primeiro exame realizado pelo próprio Groddeck, a paciente reage com copiosas hemorragias uterinas e intestinais. Nada que surpreendesse o experiente clínico, que já havia visto inúmeras vezes manifestações da mesma espécie.

O que de fato provocou-lhe espanto foram as peculiaridades presentes na fala da doente. Conquanto apresentasse um considerável nível de inteligência, o vocabulário da Srta. G era enigmaticamente reduzido. Não conseguia dizer o nome de determinados objetos, utilizando perífrases para se referir a eles. Por exemplo, em vez ‘armário’, dizia ‘aquela coisa de roupa’ ou, no lugar de panela, ‘aquela coisa de fazer comida’. Além disso, era incapaz de suportar certos gestos, como morder os lábios.

Contrariando a tendência da então nascente medicina científica de ater-se apenas à dimensão anátomo-fisiológica do doente, Groddeck não considerou aqueles excêntricos comportamentos como elementos irrelevantes para o tratamento. Oferecendo uma escuta atenta ao discurso da paciente, o médico foi gradualmente se dando conta dos motivos daquelas idiossincrasias.

Groddeck descobriu que os gestos e nomes de objetos que a Srta. G repudiava estavam associados em sua mente a determinadas imagens que lhe causavam muita angústia, pois eram de cunho erótico. Por exemplo, um forno aquecido poderia simbolizar para ela uma mulher ardente ou o próprio corpo em estado de excitação sexual, assim como um polegar levantado poderia evocar a imagem de um pênis ereto. Nesse sentido, o repúdio a certos gestos e nomes de objetos seria uma espécie de defesa inconsciente contra as imagens que esses elementos simbolizariam.

Ora, não fora exatamente esse mesmo processo psicológico que um certo neurologista chamado Sigmund Freud havia descoberto em Viena na Áustria, muitos anos antes, em meados dos anos 1890? Perfeitamente. O espantoso é que Groddeck jamais havia lido uma linha sequer das obras de Freud! Isso significa que Groddeck tivera acesso de forma independente e autônoma àquilo que Freud chamara de “o Inconsciente”. Nesse sentido, o Inconsciente não passou a existir apenas depois que Freud o nomeou, mas esteve sempre aí, à espera de um olhar, ou melhor, de uma escuta diferenciada, capaz de percebê-lo. Groddeck possuía essa escuta.

A doença como símbolo

Georg Walther Groddeck nasceu na cidade alemã de Bad Kösen, no dia 13 de outubro de 1866, dez anos após o nascimento de Freud. Seguiu a carreira médica por influência do pai, que também era médico. Na faculdade, tornou-se assistente de Ernst Schweninger, que se tornara famoso em toda a Europa por ter sido o único médico capaz de tratar do “intratável” chanceler alemão Otto von Bismarck.

Além de médico, Groddeck também se dedicaria intensamente à escrita e à literatura. Filho de uma grande admiradora de Goethe e Shakespeare e neto de August Koberstein, um dos maiores historiadores da literatura alemã, Groddeck escreveu romances, análises psicanalíticas de contos, fábulas e livros, além de dezenas de artigos sobre psicanálise e medicina. Avesso à ciência e à comunidade científica, preferia publicar seus textos em uma revista própria chamada “A Arca”, que circulava no interior de seu Sanatório, de modo que seus pacientes tinham pleno acesso a suas teses originais acerca do significado das doenças. O médico, aliás, considerava essa transmissão de conhecimento como um recurso terapêutico.

Quais eram as teses defendidas por Groddeck? A partir do tratamento da Srta. G, o médico pôde observar a força que os símbolos e as associações entre eles exercem sobre a vida humana como um todo, ou seja, não só na mente, mas também no corpo. Assim, Groddeck foi notando que frequentemente os sintomas das doenças físicas, assim como a incapacidade da Srta. G de falar determinadas palavras, eram modos utilizados pelos pacientes para se defenderem de conflitos subjetivos.

Em outras palavras, para ele, todo sintoma, seja ele uma febre, uma dor nos olhos, uma hemorragia, um câncer, vômitos ou pedras nos rins, enfim, qualquer tipo de adoecimento, poderia ser visto como um símbolo! Seria sempre possível descobrir as raízes inconscientes da doença, ou seja, a função que ela exerceria na vida da pessoa doente.

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Em 1917, Groddeck inicia uma correspondência com Freud que duraria em torno de 17 anos. Seria por influência de Groddeck, que o médico vienense introduziria na psicanálise o conceito de Id (“Es”, um pronome impessoal da língua alemã) que Groddeck já vinha utilizando há bastante tempo para se referir ao indivíduo. Freud era um entusiasta das ideias de Groddeck e exortou-o reiteradamente para que fizesse parte do movimento psicanalítico. Groddeck, por sua vez, preferindo a companhia dos pacientes no Sanatório, tentou durante muito tempo convencer Freud a visitá-lo em Baden-Baden, o que nunca aconteceu. Por isso, apesar das cartas trocadas, jamais saberemos o que poderia surgir de uma conversa face a face entre os dois pais da psicanálise.

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Este artigo foi originalmente publicado em Benedita, ano 1, n. 1, junho de 2012.