Uma nova paciente é encaminhada ao Sanatório Groddeck. Seu verdadeiro nome ninguém sabe. Srta. G, enigmático pseudônimo, é como a ela se refere o homem de orelhas pontudas e semblante grave que a recebe, Dr. Georg Groddeck. Nove anos antes, em companhia da esposa Lina, o médico especialista no tratamento de doentes crônicos adquirira aquele imponente edifício de arquitetura clássica e o transformara em reduto de doentes desenganados de todo o território germânico. Era para lá, onde se dizia que pacientes praticamente condenados à morte recuperavam a saúde, que muitos médicos encaminhavam os seus “casos perdidos”.
A Srta. G era um deles. Revelando imediatamente a gravidade de seu estado, logo ao primeiro exame realizado pelo próprio Groddeck, a paciente reage com copiosas hemorragias uterinas e intestinais. Nada que surpreendesse o experiente clínico, que já havia visto inúmeras vezes manifestações da mesma espécie.
O que de fato provocou-lhe espanto foram as peculiaridades presentes na fala da doente. Conquanto apresentasse um considerável nível de inteligência, o vocabulário da Srta. G era enigmaticamente reduzido. Não conseguia dizer o nome de determinados objetos, utilizando perífrases para se referir a eles. Por exemplo, em vez ‘armário’, dizia ‘aquela coisa de roupa’ ou, no lugar de panela, ‘aquela coisa de fazer comida’. Além disso, era incapaz de suportar certos gestos, como morder os lábios.
Contrariando a tendência da então nascente medicina científica de ater-se apenas à dimensão anátomo-fisiológica do doente, Groddeck não considerou aqueles excêntricos comportamentos como elementos irrelevantes para o tratamento. Oferecendo uma escuta atenta ao discurso da paciente, o médico foi gradualmente se dando conta dos motivos daquelas idiossincrasias.
Groddeck descobriu que os gestos e nomes de objetos que a Srta. G repudiava estavam associados em sua mente a determinadas imagens que lhe causavam muita angústia, pois eram de cunho erótico. Por exemplo, um forno aquecido poderia simbolizar para ela uma mulher ardente ou o próprio corpo em estado de excitação sexual, assim como um polegar levantado poderia evocar a imagem de um pênis ereto. Nesse sentido, o repúdio a certos gestos e nomes de objetos seria uma espécie de defesa inconsciente contra as imagens que esses elementos simbolizariam.
Ora, não fora exatamente esse mesmo processo psicológico que um certo neurologista chamado Sigmund Freud havia descoberto em Viena na Áustria, muitos anos antes, em meados dos anos 1890? Perfeitamente. O espantoso é que Groddeck jamais havia lido uma linha sequer das obras de Freud! Isso significa que Groddeck tivera acesso de forma independente e autônoma àquilo que Freud chamara de “o Inconsciente”. Nesse sentido, o Inconsciente não passou a existir apenas depois que Freud o nomeou, mas esteve sempre aí, à espera de um olhar, ou melhor, de uma escuta diferenciada, capaz de percebê-lo. Groddeck possuía essa escuta.
A doença como símbolo
Georg Walther Groddeck nasceu na cidade alemã de Bad Kösen, no dia 13 de outubro de 1866, dez anos após o nascimento de Freud. Seguiu a carreira médica por influência do pai, que também era médico. Na faculdade, tornou-se assistente de Ernst Schweninger, que se tornara famoso em toda a Europa por ter sido o único médico capaz de tratar do “intratável” chanceler alemão Otto von Bismarck.
Além de médico, Groddeck também se dedicaria intensamente à escrita e à literatura. Filho de uma grande admiradora de Goethe e Shakespeare e neto de August Koberstein, um dos maiores historiadores da literatura alemã, Groddeck escreveu romances, análises psicanalíticas de contos, fábulas e livros, além de dezenas de artigos sobre psicanálise e medicina. Avesso à ciência e à comunidade científica, preferia publicar seus textos em uma revista própria chamada “A Arca”, que circulava no interior de seu Sanatório, de modo que seus pacientes tinham pleno acesso a suas teses originais acerca do significado das doenças. O médico, aliás, considerava essa transmissão de conhecimento como um recurso terapêutico.
Quais eram as teses defendidas por Groddeck? A partir do tratamento da Srta. G, o médico pôde observar a força que os símbolos e as associações entre eles exercem sobre a vida humana como um todo, ou seja, não só na mente, mas também no corpo. Assim, Groddeck foi notando que frequentemente os sintomas das doenças físicas, assim como a incapacidade da Srta. G de falar determinadas palavras, eram modos utilizados pelos pacientes para se defenderem de conflitos subjetivos.
Em outras palavras, para ele, todo sintoma, seja ele uma febre, uma dor nos olhos, uma hemorragia, um câncer, vômitos ou pedras nos rins, enfim, qualquer tipo de adoecimento, poderia ser visto como um símbolo! Seria sempre possível descobrir as raízes inconscientes da doença, ou seja, a função que ela exerceria na vida da pessoa doente.
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Em 1917, Groddeck inicia uma correspondência com Freud que duraria em torno de 17 anos. Seria por influência de Groddeck, que o médico vienense introduziria na psicanálise o conceito de Id (“Es”, um pronome impessoal da língua alemã) que Groddeck já vinha utilizando há bastante tempo para se referir ao indivíduo. Freud era um entusiasta das ideias de Groddeck e exortou-o reiteradamente para que fizesse parte do movimento psicanalítico. Groddeck, por sua vez, preferindo a companhia dos pacientes no Sanatório, tentou durante muito tempo convencer Freud a visitá-lo em Baden-Baden, o que nunca aconteceu. Por isso, apesar das cartas trocadas, jamais saberemos o que poderia surgir de uma conversa face a face entre os dois pais da psicanálise.
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Este artigo foi originalmente publicado em Benedita, ano 1, n. 1, junho de 2012.
Oi Lucas, enfim….parabéns meu colega. Como sempre, brilhante.
Concordo com você; a relação entre Freud e Groddeck poderia ter trazido outras luzes à Psicanalise. Assim como Woody Allen em Meia Noite em Paris, eu adoraria ver um encontro entre Freud, Jung, Groddeck e Lacan, tendo como cenário a contemporaneidade. Gostaria de vê-los discutindo a clinica de hoje e seus estatutos.
Ja que estamos tratando disto, e a psicoterapia esta na moda, haja vista as series televisivas, qual é a sua opinião sobre a serie Sessão de Terapia na versão brasileira?
Eu particularmente acho um trabalho brilhante do Selton Mello da direção, e um desempenho magistral de alguns atores, entre eles o Zecarlos Machado (Theo), a Selma Egrei ( Dora) e o Sergio Ghizé ( Bruno). Tenho percebido muitas pessoas do meu circulo mobilizadas pela serie, e alguns mesmo dismistificando que terapia é coisa para “louco”. O primeiro modulo da serie esta se encerrando. Veremos se haverá continuidade. Embora hajam alguns exageros licenciados pela poética do espetáculo televisivo o Selton Melo disse “a que veio”.
Ontem na sessão com Dora, ela retomou a técnica do espelho, IMAGO…. meu deus, há quanto tempo eu não via isto…. foi uma técnica que usei muito enquanto psicodramatista, mas para o objetivo proposto por Dora, funcionou!
Escreve mais…
Abraço e fica na Paz!
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Olá Carlos, meu amigo!
Infelizmente tenho encontrado pouco tempo para escrever aqui, mas pretendo compensar esse “sumiço” (rs) nas minhas férias, em janeiro.
Também assisti ao delicioso “Meia-noite em Paris” e, como você, também adoraria sentar numa mesa de um café parisiense e assistir um diálogo entre Freud, Jung, Groddeck e Lacan. Quem sabe o inconsciente não nos conceda tal dádiva através de um sonho qualquer dia desses… rs
Quanto ao “Sessão de Terapia”, não sei se você sabe, mas trata-se da versão brasileira de uma série americana chamada “In Treatment”. Confesso que assisti apenas a alguns episódios da versão brasileira e considerei a versão americana muito melhor, sobretudo pela atuação dos atores, embora considere Selton Mello um gênio. Infelizmente, não sei se em virtude de alguma cláusula contratual, os roteiros da versão brasileira são iguaizinhos aos da versão americana, com algumas poucas adaptações. Assim, para quem viu a primeira temporada da versão americana, “Sessão de Terapia” parece filme repetido… rsrs
De todo modo, falando da série de maneira geral, acredito que ela contou com uma consultoria bastante competente, pois a interação entre o analista e os pacientes e o analista e sua supervisora é muito interessante e bastante próxima do que realmente acontece numa sessão psicanalítica, embora as interpretações, principalmente do analista, sejam bem características de uma leitura americana da psicanálise.
O psicanalista Jorge Forbes falou outro dia em um artigo que uma excelente função da série é justamente a de mostrar que psicoterapia não é coisa “para doido”, o que parece que tem funcionado, né?
Bem, vou ficando por aqui, meu amigo. Um forte abraço e apareça sempre por essas bandas!
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