Escrevo

Escrevo para reciclar o lixo cuidadosamente depositado a cada encontro com um Homo Sapiens

Escrevo para impedir que eu me torne tóxico

A mim mesmo

Escrevo para fazer de um tropeço dádiva divina

E de um oráculo baba canina

Escrevo porque o sono mata a fome

Escrevo para sobreviver a uma leitura

Escrevo porque ninguém quer escutar

Escrevo para tornar um cravo um amante abandonado

Escrevo para me comunicar com minhas fezes, minha urina e meu esperma

Escrevo para ver se um dia encontro a palavra perfeita

Que fale de mim melhor que meu pai, minha mãe, meu analista

Escrevo esperando que uma tecla peça por misericórdia:

“Pare, por favor!”



Num canto quixotesco do quarto

Num canto quixotesco do quarto

Ele cantava as músicas que ninguém jamais cantou

Num canto quixotesco do quarto

Ele escreveu os livros que ninguém jamais escreveu

Num canto quixotesco do quarto

Ele transformava moinhos em montanhas

E gárgulas tamanhas

Num canto quixotesco do quarto

Ele pensou no mar como caminho

Comendo azeitonas sozinho

Num canto quixotesco do quarto

Ele refez teoremas

Conquistou Iracema

Num canto quixotesco do quarto

Ele se esqueceu dos brinquedos espalhados

Matou o cão julgando-o dragão

Preferiu as flores de Alice

Num canto quixotesco do quarto

Ele não via um palmo

Mas enxergava tudo como deveria ser

Num canto quixotesco do quarto

Ele acordou a tempo de ver Dalila

Ele não pecou

Num canto quixotesco do quarto

Ele brincava de ciranda com a porta

Era Deus disfarçado

Num canto quixotesco do quarto

Ele ouvia os aplausos

Num canto quixotesco do quarto

Ele se esqueceu de sua meninice

Grito de anima

Onde estão os amores repletos de cobras

Que em meu peito jazem tortas e em vão procuro?

Que loucos amores têm ganhado?

A saudade de tempos que não existem

O crime nunca realizado

As desculpas pelo não-feito

O perdão moral

E todo o vendaval

De promessas escarnecidas

O som da voz inconsciente

O paladar é bem melhor quando se sente o beijo molhado

Sem gosto, só tato

Quem me dera ter todos os colares

De pérolas esquecidas

Em corpos nunca dantes navegados

Com sibilos e abraços apertados

Calma, ainda não é hora

O choro mata qualquer manobra

Eis que sou Deus, agora!

Enigma feminino

Transpassa-me a alma o clamor do Outro

Sinto o terror da solidão em rios de fel

Gozo de ti servida a granel

Com gosto de morte em seus lábios

Velho está o espírito

Que derrama em frios pensamentos

Todo o ar que ainda existe

E as soluções desfilam por entre os galhos

Os morcegos já não sabem onde esconder

Em que se apóia ti para te achares mulher?

Tua falta eu já supri faz tempo

Foi muito para o lugar do vazio

Fujo de mim em ti com unhas e dentes

A plenos pulmões, grito!

Grito!

Os sons são despenhadeiros

E os músculos contraídos denunciam o horror

Da carne em tua boca

Em tua alma sobra o prazer

O que, afinal, tu queres?

Redenção

Os dons de tua alma franciscana

Recolhia-as qual a soma dos dados

Sem saber que Javé só afana

Onde há pó de outros deuses cremados

 

Tuas sendas já não guiam meus pés

Verdugo, fiz perecer tua graça

Feito o povo que exaspera Moisés

Roubei-te o linho, te fiz linhaça

 

Mas tua ira fez-se eco em meu pensar

Da madeira dos ídolos adveio holocausto

E mesmo roto e maltrapilho advogo-lhe altar

 

Não como o Daquele que assenta na Terra os pés

Pois se no éter habitam espadaúdos

Só aqui adora-se a deusa que és

Chá com os mortos

Vislumbro o tempo e não sei onde me encontro

Em meio a trevas e luzes entediantes

O suplício pra chegar ao cume

O prazer da vista não paga

O velho pergaminho esconde-se por entre as pedras

Cubro meu sonho com velho perfume

Quem está aí pra dizer que não é assim?

Os felizes idiotas em seus castelos infernais

Ser é complicado

As opções nos desagradam

E no fim um sofá aconchegante

Café, cigarros, mulheres e refrigerantes

Onde estão os extraterrestres, a ciência, os dinossauros e Ele?

Antes a curiosidade, hoje o tédio

O espírito se mostra cansado

Crer é um esforço!

Em grutas distantes o prazer, o amor, o altruísmo, o afeto

Arraigados em meu peito a apatia, a indiferença

E o tédio

Calvário

Grande é o vilão nas colinas de Diana

Sonoro tilintar sob as vestes de Zaqueu

Sol escaldante no horizonte do ateu

Gota de orvalho do meu pé emana

 

Adentrou no casco a patrícia fugidia

Encontrou entre a porta ameaça de açoite

Ela que do dia só sabia a noite

Gemeu entre espasmos e forte azia

 

Folha seca bordejando o tamborim

Folha morta nas paredes do liceu

Folha branca esquecida qual pasquim

 

Pensa, pensa até ferver as tripas

Com óleo de chumbo que brota dos olhos

Das mães suspirantes, gementes, aflitas

Bordões

Quando a brasa esfarelar-se em tuas mãos

Quando os afogados saírem salvos e sãos

Eu ainda recitarei teus bordões

Com o brado de quem dá sermões

 

Quando teus olhos brilharem ao bocejar

Quando disseres que é teu o luar

Eu ainda recitarei teus bordões

Com a maciez dos lençóis nas paixões

 

Quando o viço de tua pele ruir

Quando o homem de asas cair

Eu ainda recitarei teus bordões

Com a destreza de quem doma nações

 

Quando brigares

Quando ralhares

Quando suares

Quando beijares

Quando matares

Quando gritares

Quando morreres

Eu ainda recitarei teus bordões

Com voz de lamentações

 

A histérica e o obsessivo

Pedro e Maria

 

Pedro queria Maria

Mas não amaria Maria

Como essa o amaria

Se feito pedra não fosse Maria

 

Maria queria Pedro

Mas não amaria Pedro

Como esse a amaria

Se o pobre não tivesse a pedra de Maria

 

Pedro nunca tivera pedra

Mas já fora apedrejado

                                 de prazeres

pela madre

 

Maria sempre quis ter a pedra

Mas nunca a pedra vira

                                       Só sabia que não a tinha

o padre