A paz sem voz egóica

clipe-da-banda-o-rappa-minha-almaO grupo O Rappa  sempre foi pródigo em nos premiar com letras belíssimas, bem elaboradas e cujo conteúdo geralmente é associado a problemas sociais. É assim com “Hey Joe”, “Todo Camburão Tem um Pouco de Navio Negreiro”, “O que Sobrou do Céu” e também com a música mais famosa da banda, “A Minha Alma”, que leva como título alternativo (e muito melhor) “A Paz que eu Não Quero”.

Após ter escutado algumas centenas de vezes a música, penso que, involuntariamente, Marcelo Yuca, ex-integrante da banda e autor de “Minha Alma”, acabou por expressar nessa música não só a hipocrisia da classe média perante a violência. O compositor nos deu uma fabulosa descrição de como se constitui aquilo que em Psicanálise chamamos de “ego”, isto é, aquela imagem que temos de nós mesmos e que ilusoriamente acreditamos resolver o problema da eterna pergunta “Quem sou eu?”.

Desde os tempos pré-históricos da Psicanálise em que a hipnose era o método de tratamento em voga, Freud já sacava que a origem do sofrimento neurótico de seus pacientes situava-se num conflito entre a imagem que o paciente tinha de si mesmo (idealizada, diga-se de passagem) e as fantasias sexuais perversas que nutria. Quer dizer, todo o conflito estava no fato de que o paciente, apegado a uma imagem idealizada de si, não aceita para si mesmo aquilo que ele verdadeiramente deseja.

A partir de então, o ego passa a ser visto como o maior obstáculo do tratamento visto que é o apego do paciente a ele que impede o reconhecimento do verdadeiro desejo. Tamanha força do ego reside na sua capacidade de fazer frente aos impulsos sexuais perversos por meio dos mecanismos de defesa, sendo o principal o recalque. Como vocês já devem saber, o ego exclui do campo da consciência quaisquer vestígios desses impulsos deixando-os marginalizados, tal como a sociedade capitalista faz com aqueles que perdem na guerra do consumo, obrigando-os a viver em favelas e cortiços.

Assim, ao mesmo tempo em que o ego nos protege de nos vermos como perversos ele nos prende a imagem que não nos permite termos acesso à verdade de nosso desejo. Uma verdade dolorosa, mas uma verdade. Ora, não é exatamente isso, o que Yuca demonstra ao escrever na segunda parte de “Minha Alma”?:

“As grades do condomínio
São pra trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa prisão”

Essa dúvida de que Yuca fala, pode ser tomada tanto no nível da tradicional dúvida obsessiva, quanto no nível da angústia, sinal inconfundível da iminência do impulsos recalcados.

Excluindo do campo da consciência os impulsos sexuais perversos, o ego promove uma aparente paz na vida mental. Na medida em que os impulsos se tornam inconscientes, o sujeito passa a fazer de conta que eles não existem, permanecendo aferrado à imagem ideal de si. Porém, como diz a música, essa é uma “paz sem voz” que acaba revelando-se um medo disfarçado. Medo de reconhecermos para nós mesmos que somos capazes de ter tais e tais fantasias.

Mas não pensem vocês que esse medo não tem nada de vantajoso. Essa paz implicada no processo de defesa do ego acaba produzindo uma sensação também ilusória de felicidade. A pergunta, que o analista coloca para o analisando e que se personifica na letra de “A Minha Alma” é:

“Qual a paz que eu não quero conservar,
Pra tentar ser feliz?”

O trabalho de análise é justamente a resposta o que o autor demanda quando pede para que não o deixe “sentar na poltrona num dia de domingo, procurando novas drogas de aluguel”. É colocar voz na paz…

SERVIÇOS:

Veja o premiadíssimo clipe de “A Minha Alma”

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Legião Urbana e a experiência analítica

legiaoA partir da leitura desse post publicado no blog do Zanatta, me lembrei de uma reflexão que venho fazendo já algum tempo sobre as conexões da letra da música “Pais e Filhos” da saudosa Legião Urbana com a Psicanálise. Resolvi publicar, então, as conclusões a que cheguei até o momento.

Em verdade, minha análise é restrita ao trecho final da música. Após a transcrição (belíssima e perspicaz, por sinal) de falas comuns trocadas entre pais e filhos e da extrema sabedoria ao mostrarem o óbvio: que o amanhã não existe, Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá escrevem os seguintes versos:

“Sou uma gota d’água
Sou um grão de areia
Você me diz que seus pais
Não o entendem
Mas você não entende seus pais…

Você culpa seus pais por tudo
Isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser quando você crescer”

Em primeiro lugar, a gente pode assinalar o reconhecimento do ser humano como aquilo que o lacanês chama de “falta-a-ser” e que em humanês, a gente pode, parafraseando Sartre, chamar de “ausência de uma essência do homem”. Com isso quero dizer que cada cultura, cada família, cada pessoa, tem uma idéia diferente sobre o que é o homem, como ele deve agir e etc.

Assim, não temos uma definição válida pra todos, o que significa dizer que a gente não nasce sabendo quem a gente é nem como a gente deve viver. Quem incute na nossa cabeça o que mais tarde vamos pensar ser a verdade são as outras pessoas que, via de regra, nasceram antes da gente e o que elas produziram em termos de conhecimento (é mais ou menos isso o que em lacanês se chama o Outro). Ora, os versos “Sou uma gota d’água/Sou um grão de areia” revelam exatamente isso! Um grão de areia isolado, por exemplo, no asfalto da praia de Copacabana, não é um grão de areia! Sim. Essa “coisinha” só será um grão de areia quando houver algum humano (um Outro) para chamá-lo assim. E mais: só será um grão de areia se existirem outros grãos de areia!

Sobre o “Você me diz que seus pais não o entendem/Mas você não entende seus pais” vou me ater a uma consideração influenciada pelo artigo “Confusão de língua entre adultos e a criança”, de 1933, do analista húngaro Sándor Ferenczi. Ao meu ver esse mal entendido entre pais e filhos resulta, entre outras razões, do fato de os filhos representarem para os pais aquilo que eles já foram e que recalcaram para se tornarem o que são hoje.

Mas o creme mesmo,  da letra de “Pais e Filhos” são os últimos quatro versos: “Você culpa seus pais por tudo/Isso é absurdo/São crianças como você/O que você vai ser quando você crescer”.

Se vocês repararem, esse último verso é ambíguo quanto ao sentido. Ambíguo porque dependendo do ponto que você coloque ao final, o significado da frase muda. Pode ser tanto a pergunta ao filho sobre o que ele vai ser quando crescer quanto uma afirmação de que ele vai ser como os pais!

Senhoras e senhores, essa ambiguidade é própria da interpretação do psicanalista. Essa, não tem a função de fechar um sentido (vocês podem até ver um pouco disso nos casos de Freud, mas são erros próprios de quem tava começando a coisa). A interpretação analítica tem exatamente a função de jogar com a ambiguidade das palavras e mostrar, fundamentalmente, que elas só são palavras e que, apesar de machucarem, elas continuam sendo palavras que, se rearranjadas, em vez de machucar podem curar!

E me parece que os autores realmente encaranaram os psicanalistas nessa estrofe. Os versos anteriores (“Você culpa seus pais por tudo/Isso é absurdo/São crianças como você”) são a personificação da essência do que um analista busca fazer numa psicanálise.

E o que é que ele busca? Levar o sujeito a parar de se queixar do Outro (é, daquele Outro do qual eu falei acima, que te ensina o que você é, pra onde você tem que ir), desse Outro que é na maioria dos casos encarnado pelos pais. E como a gente consegue parar de se queixar? Quando a gente percebe que eles não sabem tudo. Que, pelo contrário, eles tem que lidar com as mesmas questões  com as quais a gente tem que lidar. É quando a gente percebe que, assim como nós, no Inconsciente, eles permanecem sendo uma criança de 5 anos…

Aí, tomando ciência de que eles não sabem tudo, a gente pode desamarrar esse fardo das costas e escolher se a gente quer ser como eles, quando a gente crescer.

Veja o clipe de “Pais e Filhos”:

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Winnicott e o Samba

winnicott20et20enfant1Em 1951, o psicanalista e pediatra Donald Woods Winnicott (cuja obra completa você pode baixar na seção Presentes) escreve um artigo para relatar algumas curiosas observações que vinha fazendo com crianças. Winnicott notou que a imensa maioria das crianças em determinado período da infância escolhia um objeto (na maioria das vezes, um ursinho de pelúcia, uma chupeta, uma fralda), carregava esse objeto pra tudo quanto é canto (em especial pra cama na hora de dormir) e não permitia que ele fosse lavado. Quando não era um objeto o bibelô, a criança elegia um determinado comportamento (como emitir um mesmo som), o qual era constantemente repetido (principalmente na hora de dormir).

Winnicott descobre que a fase em que a criança começa a fazer isso é justamente a fase em que ela está começando a se tornar independente e não necessita o tempo todo da presença da mãe. O psicanalista conclui então que a função desses objetos e comportamentos é fazer a transição entrea fase em que a criança dependia da mãe pra tudo e a etapa em que ela está adquirindo independência. Por isso, Winnicott denomina-os de “objetos e fenômenos transicionais” que é também o nome do artigo de 1951.

Assim, os objetos e fenômenos transicionais são como substitutos imaginários da mãe (por isso são tão importantes na hora de dormir- hora em que a criança fica mais tempo longe da mãe). Acontece que a gente não cura essa “saudade” da mãe e do conforto que era estar junto com ela nunca. E aí, já adultos, não temos mais a fralda ou a chupeta para nos consolar, mas temos as músicas, por exemplo. Quer ver como isso é verdade?

Leia a letra da música “Esta Melodia”, de Bubu da Portela e Jamelão e veja se não é a descrição certinha de tudo o que eu falei acima:

“Eu tinha esperança que um dia ela voltasse
Para a minha companhia
Deus deu resignação
Ao meu pobre coração
Não suporto mais tua ausência,
Já pedi a Deus paciência

Quando vem rompendo o dia
Eu me levanto, começo logo a cantar
Esta doce melodia que me faz lembrar
Daquelas lindas noites de luar
Eu tinha um alguém sempre a me esperar
Desde o dia em que ela foi embora
Eu guardo esta canção na memória
Desde o dia em que ela foi embora
Eu guardo esta canção na memória”

SERVIÇOS:

Ouça “Esta Melodia” na voz de Marisa Monte e a Velha Guarda da Portela:

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