A partir da leitura desse post publicado no blog do Zanatta, me lembrei de uma reflexão que venho fazendo já algum tempo sobre as conexões da letra da música “Pais e Filhos” da saudosa Legião Urbana com a Psicanálise. Resolvi publicar, então, as conclusões a que cheguei até o momento.
Em verdade, minha análise é restrita ao trecho final da música. Após a transcrição (belíssima e perspicaz, por sinal) de falas comuns trocadas entre pais e filhos e da extrema sabedoria ao mostrarem o óbvio: que o amanhã não existe, Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá escrevem os seguintes versos:
“Sou uma gota d’água
Sou um grão de areia
Você me diz que seus pais
Não o entendem
Mas você não entende seus pais…
Você culpa seus pais por tudo
Isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser quando você crescer”
Em primeiro lugar, a gente pode assinalar o reconhecimento do ser humano como aquilo que o lacanês chama de “falta-a-ser” e que em humanês, a gente pode, parafraseando Sartre, chamar de “ausência de uma essência do homem”. Com isso quero dizer que cada cultura, cada família, cada pessoa, tem uma idéia diferente sobre o que é o homem, como ele deve agir e etc.
Assim, não temos uma definição válida pra todos, o que significa dizer que a gente não nasce sabendo quem a gente é nem como a gente deve viver. Quem incute na nossa cabeça o que mais tarde vamos pensar ser a verdade são as outras pessoas que, via de regra, nasceram antes da gente e o que elas produziram em termos de conhecimento (é mais ou menos isso o que em lacanês se chama o Outro). Ora, os versos “Sou uma gota d’água/Sou um grão de areia” revelam exatamente isso! Um grão de areia isolado, por exemplo, no asfalto da praia de Copacabana, não é um grão de areia! Sim. Essa “coisinha” só será um grão de areia quando houver algum humano (um Outro) para chamá-lo assim. E mais: só será um grão de areia se existirem outros grãos de areia!
Sobre o “Você me diz que seus pais não o entendem/Mas você não entende seus pais” vou me ater a uma consideração influenciada pelo artigo “Confusão de língua entre adultos e a criança”, de 1933, do analista húngaro Sándor Ferenczi. Ao meu ver esse mal entendido entre pais e filhos resulta, entre outras razões, do fato de os filhos representarem para os pais aquilo que eles já foram e que recalcaram para se tornarem o que são hoje.
Mas o creme mesmo, da letra de “Pais e Filhos” são os últimos quatro versos: “Você culpa seus pais por tudo/Isso é absurdo/São crianças como você/O que você vai ser quando você crescer”.
Se vocês repararem, esse último verso é ambíguo quanto ao sentido. Ambíguo porque dependendo do ponto que você coloque ao final, o significado da frase muda. Pode ser tanto a pergunta ao filho sobre o que ele vai ser quando crescer quanto uma afirmação de que ele vai ser como os pais!
Senhoras e senhores, essa ambiguidade é própria da interpretação do psicanalista. Essa, não tem a função de fechar um sentido (vocês podem até ver um pouco disso nos casos de Freud, mas são erros próprios de quem tava começando a coisa). A interpretação analítica tem exatamente a função de jogar com a ambiguidade das palavras e mostrar, fundamentalmente, que elas só são palavras e que, apesar de machucarem, elas continuam sendo palavras que, se rearranjadas, em vez de machucar podem curar!
E me parece que os autores realmente encaranaram os psicanalistas nessa estrofe. Os versos anteriores (“Você culpa seus pais por tudo/Isso é absurdo/São crianças como você”) são a personificação da essência do que um analista busca fazer numa psicanálise.
E o que é que ele busca? Levar o sujeito a parar de se queixar do Outro (é, daquele Outro do qual eu falei acima, que te ensina o que você é, pra onde você tem que ir), desse Outro que é na maioria dos casos encarnado pelos pais. E como a gente consegue parar de se queixar? Quando a gente percebe que eles não sabem tudo. Que, pelo contrário, eles tem que lidar com as mesmas questões com as quais a gente tem que lidar. É quando a gente percebe que, assim como nós, no Inconsciente, eles permanecem sendo uma criança de 5 anos…
Aí, tomando ciência de que eles não sabem tudo, a gente pode desamarrar esse fardo das costas e escolher se a gente quer ser como eles, quando a gente crescer.
Veja o clipe de “Pais e Filhos”:
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