A origem da crença no “pensamento positivo”

Filme "Click", com Adam Sandler

A crença de que pelo nosso mero pensar seremos capazes de fazer a realidade “conspirar” a nosso favor não é nova na história da humanidade. Outrora associada ao favor de deuses e outras entidades sobrenaturais, atualmente essa crença assume uma roupagem pseudocientífica em livros como “O Segredo”.

De acordo com os gurus do “pensamento positivo” todos nós temos a capacidade de alterar a realidade em nosso benefício, sem precisar necessariamente agir sobre ela. Até gente que se diz cristã e que supostamente têm fé num Deus da graça que não exige sacrifícios de nenhuma natureza embarcam nessa espécie de fé na própria fé.

Um psicanalista contemporâneo de Freud chamado Sándor Ferenczi tem uma explicação muito interessante para essa história de “Mentaliza que dá certo.”. Segundo ele, todos nós já passamos por um estágio do desenvolvimento psíquico em que acreditávamos piamente que tínhamos a capacidade de modificar a realidade apenas com nossos pensamentos. Ferenczi chamou essa fase de “período dos pensamentos e palavras mágicas”. Tal estágio ocorre no momento em que estamos começando a aprender a falar. Trata-se de um momento epifânico para a criança, pois ela percebe que não precisa mais chorar ou gestos para ser atendido pelo ambiente em suas necessidades. Basta emitir determinados sons de uma determinada maneira. É mais econômico!

Por outro lado, ao mesmo tempo em que aprendemos a falar, vamos aprendendo também a pensar com palavras, de modo que ao experimentarmos uma determinada necessidade passamos a articular mentalmente as palavras ou “quase-palavras” que precisaremos emitir para sermos atendidos. No entanto, o ambiente, especialmente aquele composto por pessoas cuidadosas, acolhedoras e empáticas, raramente precisa esperar que o bebê fale ou balbucie para que suas necessidades sejam atendidas. O ambiente suficientemente bom, como diria Winnicott, meio que “adivinha” prontamente as necessidades do bebê. Conclusão: a criança inevitavelmente passa a acreditar que foram os seus pensamentos que levaram o ambiente a atendê-la. Ferenczi chamou essa crença de “ilusão de onipotência”.

Nesse sentido, a tese do “pensamento positivo” seria, portanto, a expressão coletiva (ainda que racionalizada ou com uma roupagem religiosa) de uma regressão a esse estágio do desenvolvimento psíquico. Como Ferenczi mostra no artigo “O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios“, que está no volume II das suas Obras Completas, o desenvolvimento do bebê prossegue na direção do reconhecimento da realidade externa como uma dimensão autônoma em relação aos seus pensamentos. Em outras palavras, nós gradativamente vamos nos dando conta de que não basta “mentalizar” para que as coisas aconteçam. É necessário falar, agir e, não raro, resignar-se e ter paciência, pois nem sempre será possível alcançar o que desejamos.

Dependendo do ambiente no qual foram criadas, certas crianças demorarão mais ou menos para reconhecerem essa independência do mundo externo. Assim, aquelas pessoas que foram muito “mimadas” na infância, ou seja, que não precisaram se esforçar muito para terem suas necessidades atendidas e, portanto, tiveram mais resistência para abandonar a crença na força de seus pensamentos, podem se tornar excessivamente otimistas, indolentes e não terem muito discernimento acerca da quantidade de esforço necessário para alcançarem seus objetivos. Por outro lado, aquelas que foram educadas num ambiente excessivamente duro ou hostil podem desenvolver um pessimismo crônico e tornarem-se céticos, desconfiados e sem esperança em relação ao mundo e à sua própria potência. Ambos os casos caracterizam quadros de imaturidade emocional.

Mas voltando diretamente ao tema do “pensamento positivo”, podemos caracterizá-lo à luz da interpretação proposta por Ferenczi como uma recusa infantil à aceitação da realidade como autônoma e uma regressão à ilusão de onipotência própria do bebê. O recrudescimento dessa crença na atualidade pode ser atribuído, talvez, a uma dificuldade generalizada de lidar com uma realidade tão mutante e não raro caótica que caracteriza o mundo contemporâneo.

Antes de encerrar este artigo quero deixar claro que não estou advogando em favor de uma atitude pretensamente fria e objetiva diante da vida, até porque tal postura é impossível de ser adotada integralmente (a não ser por sociopatas, provavelmente). Parece-me óbvio que uma postura de confiança na nossa própria capacidade e de “torcida” por nós mesmos é saudável e, inclusive, nos ajuda a alcançar nossas metas. Afinal, é plausível supor que uma pessoa autoconfiante e que acredita verdadeiramente que é capaz de obter o emprego desejado terá muito mais probabilidade de ser aprovado num processo seletivo do que alguém que participa do mesmo processo com um medo enorme de não ser selecionado. No primeiro caso temos uma pessoa com BOM ÂNIMO e AUTOCONFIANÇA; não se trata de “pensamento positivo”. O indivíduo não está depositando sua fé numa suposta conspiração do universo a seu favor, mas sim em suas próprias competências.

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Uma hipótese sobre a origem afetiva do Ato Médico

Cena clássica de Charcot, símbolo do poder médico sobre o corpo do doenteSe você é psicólogo, provavelmente já deve estar ciente dos últimos acontecimentos envolvendo o projeto de lei (PL) conhecido como “Ato Médico” já que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) tem sido protagonista dos movimentos de contestação a alguns de seus pontos. Se esse não é o seu caso, farei aqui um brevíssimo resumo a fim de que você consiga acompanhar a sequência do texto.

O que vem sendo chamado de “Ato Médico” é o PL nº 268/2002 que pretende regulamentar o exercício da medicina. Desde a apresentação do PL ao Congresso, vários pontos do texto vêm sendo contestados por conselhos, entidades e movimentos ligados às demais profissões que integram o campo da saúde ao lado da medicina. Trata-se de pontos que de forma mais ou menos explícita enfraquecem a autonomia de profissionais como psicólogos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas etc. delegando boa parte de suas ações à competência exclusiva dos médicos. O trecho mais escandaloso do projeto é o inciso I do art. 4º que prevê que são atividades privativas do médico a “formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica.”. Em outras palavras, o texto afirma que caberia exclusivamente ao médico o poder para dizer o que está acontecendo com um paciente (mesmo nos casos de adoecimento emocional) e qual o melhor tratamento para sua demanda. Na prática, seria vedada ao psicólogo a possibilidade de iniciar um tratamento psicoterápico com um paciente sem a “permissão” de um médico.

No dia 18 de junho de 2013, quando as atenções da maioria da população estavam voltadas para as manifestações que explodiam nas ruas das capitais do país, o PL do Ato Médico acabou entrando sorrateiramente na pauta de votações do Senado e foi aprovado pela maioria dos parlamentares. Felizmente, no dia 10 de julho, a presidente Dilma Rousseff vetou justamente os pontos do texto que vinham sendo contestados. Em decorrência, o PL retornou para o Congresso a fim de que os vetos da presidente pudessem ser apreciados – o que ainda não aconteceu.

Neste artigo pretendo apresentar e demonstrar uma hipótese genealógica acerca do PL do Ato Médico. Meu objetivo, portanto, é propor uma forma de compreensão do PL, sobretudo de seus aspectos mais polêmicos, que aponte para os possíveis elementos afetivos que podem estar em sua origem. Desejo mostrar que são esses elementos que podem estar por trás dos óbvios interesses corporativistas em jogo, isto é, por trás das razões econômicas que alimentam o Ato Médico.

Invasão

Como se sabe, a medicina é a profissão mais antiga da área da saúde. Durante boa parte da Antiguidade e em algumas culturas de povos ditos “primitivos”, a arte de curar era uma das funções desempenhadas por líderes espirituais. Gradualmente, a medicina passou a ser uma ocupação laica, mas permaneceu sendo exercida por uma única pessoa. Até meados da era moderna, era o médico o responsável por olhar, cheirar, tocar, ver, formular um diagnóstico, prescrever uma terapêutica e executá-la. Obviamente, muitos profissionais contavam com auxiliares, mas não deixavam de “botar a mão na massa”.

Com o advento da modernidade e do processo de especialização das disciplinas científicas, novos campos de atuação ligados à saúde passaram a se constituir e a forjarem uma identidade própria. A Enfermagem, por exemplo, adquiriu o estatuto de um campo específico de pesquisa e atuação profissional, deixando de ser apenas a atividade executada por auxiliares dos médicos. Nesse processo, boa parte das ações que antes eram desempenhadas pelos próprios médicos, como a feitura de curativos e aplicação de injeções, passou a ser praticada por enfermeiras, ou seja, a Enfermagem acabou abarcando um conjunto amplo de atividades que era da competência dos profissionais de medicina.

Aos poucos, o campo da medicina foi sendo esvaziado de uma série de atividades que outrora eram desempenhadas pelos médicos e que passaram a serem executadas por fisioterapeutas, nutricionistas, terapeutas ocupacionais e psicólogos. A psicoterapia, por exemplo, foi um tipo de tratamento criado e exercido durante um bom tempo exclusivamente por médicos. Contudo, gradualmente os psicólogos passaram legitimamente a praticá-la. Aliás, com o avanço da produção de medicamentos psicotrópicos, a atividade psicoterápica passou a ser quase que exclusivamente praticada por psicólogos, pois muitos psiquiatras (com exceção dos psicanalistas) adotam como única estratégia terapêutica a prescrição de medicamentos.

Portanto, a grande maioria das ações desempenhadas pelas novas profissões que passaram a integrar o campo do cuidado em saúde era outrora de competência da medicina. Em decorrência, a atividade de boa parte dos médicos passou a ficar restrita à formulação de um diagnóstico e à prescrição de medicamentos. Quem enfaixa o paciente é o enfermeiro, quem nele aplica injeções é o enfermeiro, quem reabilita seus movimentos é o fisioterapeuta, quem lhe elabora uma dieta é o nutricionista e quem com ele conversa é o psicólogo.

Insegurança

Ora, uma “invasão” dessa natureza pode ter produzido no campo médico uma sensação de extrema insegurança. Afinal, trata-se de uma tendência que poderia levar à suposição imaginária de que no futuro a própria profissão médica seria extinta, pois surgiriam sempre novas profissões que acabariam por tomar de vez o restrito campo de atividades que restou para o profissional de medicina. O PL do Ato Médico parece ser justamente uma tentativa maníaca de reação a essa sensação de insegurança que a autonomia das demais profissões de saúde evoca na medicina. É como se a seguinte frase estivesse implícita no texto do projeto de lei:

Antes éramos somente nós, médicos, que cuidávamos dos doentes. Diagnosticávamos, prescrevíamos e botávamos a mão na massa para tratá-los. Tínhamos o completo controle sobre seus corpos. Mandávamos e eles obedeciam. Aos poucos, foram surgindo enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, nutricionistas, terapeutas ocupacionais querendo também botar a mão na massa. Deixamos isso acontecer, mas não queríamos perder o poder sobre o corpo do paciente. Por isso, reservamos apenas a nós, médicos, o direito de diagnosticar e prescrever um tratamento. Contudo, esses profissionais foram ganhando muito espaço e autonomia, de modo que os pacientes passaram a obedecê-los tanto quanto nos obedeciam. Estamos, portanto, perdendo o poder que tínhamos sobre os corpos dos doentes. É preciso fazer alguma coisa. Isso não pode ficar assim. A fim de que esses profissionais continuem quietinhos, apenas botando a mão na massa e tenhamos resguardado nosso poder sobre o corpo do doente, que tal propormos uma lei que os impeça de diagnosticar e prescrever tratamentos?

Tragédia de Santa Maria: entre o luto e o narcisismo

fantastico_logo2Escrevo este texto um dia após ter acontecido o que tem sido chamado pela mídia de “tragédia de Santa Maria”. Para os que lerão este escrito muito tempo depois de ter sido publicado, me refiro ao incêndio ocorrido na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 na boate Kiss em Santa Maria no Rio Grande do Sul, que provocou a morte de mais de 200 pessoas e deixou dezenas de feridos.

Eventos como esse são sempre um prato cheio para jornais, revistas, mas, sobretudo, para a televisão, que pode explorar à exaustão as imagens registradas do incidente, construir gráficos elaborados explicando como teria acontecido o incêndio e porque a maioria das pessoas morreu asfixiada, chamar especialistas para debater o assunto e last, but not least, apresentar conteúdos exclusivos, “que você só verá aqui”. É também comum nessas ocasiões observar apresentadores normalmente serelepes e eufóricos apresentando um semblante sério e austero, fingindo que estão consternados com o acontecido. Tudo para que o telespectador não saiba que estão, no fundo, comemorando os picos de audiência.

Mas nós já não vivemos mais na era do telespectador passivo, que apenas recebe conteúdos de um broadcaster institucional. Não, nós agora temos redes sociais. Nós também produzimos conteúdo. Nós também divulgamos informação. Nós também temos audiência. Logo, nós também precisamos mentir. Afinal, temos centenas de amigos no Facebook e/ou centenas de seguidores no Twitter. Temos que mostrar a essas pessoas que somos bonzinhos, que amamos o próximo, que temos compaixão. Temos que dar uma satisfação a nossos amigos e seguidores. Precisamos fazer semblante sério, austero e compassivo. Temos audiência. Precisamos abarrotar as timelines de nossos espectadores com imagens com os dizeres “Luto”, “Deus conforte os corações dos familiares”, etc. Precisamos mostrar à nossa audiência que nós somos tão bons que conseguimos compartilhar da dor que estão sentindo os parentes das pessoas que morreram. Sim, nós precisamos fingir que nos importamos. Precisamos fingir que estaremos orando pelas famílias. Precisamos fingir que ficaremos de luto. Precisamos enviar mensagens supostamente dirigidas aos familiares, mas que sabemos de antemão que jamais chegarão até eles. Precisamos, em suma, mostrar aos nossos amigos e seguidores que nos importamos, que o mundo é um lugar muito bonito abarrotado de gente que não está interessada apenas no próprio umbigo, mas que se preocupa com a dor do outro. O paraíso na terra.

Vejam bem, não estou negando a possibilidade de que efetivamente nos solidarizemos com a dor das mães e pais que perderam seus filhos. Sou psicanalista. Empatia é um dos meus principais instrumentos de trabalho. Acredito, aliás, ser quase impossível para a maioria das pessoas assistir na televisão aos familiares e amigos desesperados e não se compadecer das dor que eles provavelmente estão sentindo. O que coloco em questão é a necessidade que temos de publicar essa solidariedade, transformando nossa suposta compaixão em objeto de consumo para nossa audiência. Sim, pois nas redes sociais todos nós acabamos nos transformando em apresentadores de televisão. Cada um de nós faz o seu próprio Fantástico e, em vez da audiência medida pela Ibope, nós acumulamos “curtidas”, retweets, compartilhamentos.

É uma ingenuidade acreditar que Facebook e Twitter nos servem apenas como uma folha de papel em branco onde expressamos nossos sentimentos, opiniões e ideias. Ainda que não existissem os botões “curtir”, “compartilhar” e “retweetar”, ainda assim a mera consciência de que outras pessoas têm acesso ao que publicamos faz com que tenhamos sempre em vista as expectativas alheias antes de escrevermos ou compartilharmos algo. Isso explica a quantidade cada vez maior de imagens contendo frases “edificantes” ou engraçadinhas sendo compartilhadas no Facebook. Queremos parecer bonzinhos, fortes, cultos e bem-humorados para nossa audiência. Show da vida.

Mas voltemos à nossa pauta original. Será que as “moções de solidariedade” aos familiares das pessoas mortas na tragédia de Santa Maria escapariam desse círculo narcísico em jogo nas redes sociais? Será que nosso objetivo ao compartilharmos as imagens bem elaboradas de luto é, de fato, a mera manifestação de nossos sentimentos de compaixão e não mais uma “atração” do nosso Fantástico particular de todos os dias?

Um psicólogo judeu costumava dizer que quando alguém, num período de jejum, desfigura o rosto, dando a entender que está sofrendo, tem por objetivo conquistar a atenção e a admiração dos homens. Por isso, recomendava a seus amigos que se perfumassem e lavassem o rosto ao fazerem jejum, a fim de que ninguém sequer suspeitasse que não estivessem se alimentando. Fazendo isso, proteger-se-iam de um vício assaz pernicioso chamado hipocrisia.

Tropa de Elite 2: agora sim um filme para adultos

Amadurecimento: não há palavra melhor para qualificar o resumo da ópera do segundo Tropa de Elite. Enquanto na primeira seqüência havíamos assistido a uma série de preconceitos e visões estereotipadas dos mais diversos segmentos da sociedade, do estudante burguês de classe média ao próprio BOPE, nessa segunda seqüência o diretor José Padilha mostra que “o buraco é mais embaixo”.

O intelectual de esquerda que, no começo do filme, aparece como maconheiro, ingênuo e alienado acaba emergindo como o principal aliado de Nascimento (Wagner Moura) (um excelente sobrenome para um protótipo de herói nacional, diga-se de passagem) na luta contra os novos “alvos” que, dessa vez, são os políticos e as milícias. Essa transformação é exemplarmente operada pelo diretor, de tal modo que no início do filme o espectador inevitavelmente se coloca do ponto de vista de Nascimento e, gradualmente, vai sendo levado, como o próprio personagem, a mudar suas concepções.

Fraga (Irandhir Santos), o intelectual de esquerda em questão, um ativista de direitos humanos que é quase assassinado na cadeia ao ser feito refém durante uma rebelião de presos em Bangu I, se torna deputado e passa a ser uma espécie de elo da missão de Nascimento na dimensão política do “sistema”, essa entidade abstrato-concreta que é demonizada (de maneira justa) pelo ex-comandante do BOPE. Sim, ex. Nascimento se torna assessor do secretário de Segurança Pública e é ali, nas adjacências de seu gabinete que ele percebe que o problema da violência no Rio não se trata apenas de uma questão de mocinhos contra bandidos.

Esse é o ponto em que melhor se nota o amadurecimento do filme em relação a sua primeira seqüência. No primeiro “Tropa”, tudo se passa como se existisse uma clara fronteira de demarcação entre de um lado o BOPE, com todos os seus signos fálicos, com Nascimento encarnando com perfeição o arquétipo do herói e de outro os traficantes que naquele momento são retratados como uma espécie de retardados mentais violentos e sanguinários. Na fronteira, uma parte corrupta da polícia militar cuja função naquele momento é apenas a de atrapalhar os planos da Polícia macho, honesta e incorruptível, os “caveiras”.

Nesse segundo “Tropa”, os traficantes saem de cena para dar lugar às milícias, grupos de policiais corruptos que tomam as comunidades e passam a extorquir a população local em troca de uma suposta proteção contra os bandidos. Os milicianos possuem ligações não só com setores do poder público como também com apresentadores imbecis de programas de TV (estilo Datena) para os quais a morte dos bandidos é a única solução para a redução da violência. Esse, a meu ver, é um dos pontos mais interessantes da película. O diretor acaba deixando explícito o que todo mundo que pensa já sabe: que programas datenescos não ajudam em nada no combate à violência e que, pelo contrário eles transformam um problema que é social numa espécie de guerra civil. Assim, os bandidos não são percebidos como o que de fato são, isto é, crias de um sociedade cujo útero é corrupto e passam a ser vistos como alienígenas que aqui chegaram possuídos por uma pulsão de morte tresloucada. Fora o fato de que os apresentadores desses programas só conseguem sobreviver graças aos litros de sangue exibidos diariamente em suas reportagens.

Voltando ao tema das milícias, o que torna a questão ainda mais complexa é que a entrada dos milicianos nas favelas é atribuída em parte à própria estratégia de enfrentamento do BOPE que, ao impedir a chegada de novas cargas de drogas aos morros, inviabiliza a corrupção da polícia. Essa, ao perder sua fonte de dinheiro, acaba por exterminar alguns traficantes e tomar o lugar dos mesmos como donos das comunidades. Em outras palavras, as milícias são uma espécie de efeito adverso da política exterminadora do BOPE.

Outro aspecto que faz com que o espectador não saiba mais definir quem é vilão e quem é mocinho é o fato do próprio filho de Nascimento ser usuário de maconha, o que acaba sendo uma espécie de “pagar a língua” para Nascimento que, numa cena já clássica do primeiro filme, esbofeteia um estudante acusando-o de ser financiador do tráfico.

Mesmo com todas essas questões que evidenciam um amadurecimento de um filme para outro, não se pode perder de vista que a película continua sendo um filme, ou seja, um item da indústria cultural feito para ser consumido pelo maior número de pessoas. Logo, ele não poderia espelhar fielmente a realidade, caindo inevitavelmente numa nova polarização de mocinhos e bandidos. Ainda que esses se confundam ao longo do filme, ao final Nascimento continua encarnando o arquétipo de herói e, como o próprio slogan do filme enuncia, “o alvo agora é outro”, a saber, o sistema que tem na classe política seu coração. Ou seja, o inimigo é redefinido de forma mais complexa, mas continua havendo um lado negro da força A Tropa de Elite não é mais o BOPE, mas o próprio Congresso Nacional. Agora sim se trata de um filme para maiores de 16…

Aborto espontâneo?

Há algumas semanas uma notícia advinda do segmento policial-sensacionalista reativou em mim algumas reflexões de outros tempos a respeito do aborto. Tratava-se do suposto aborto espontâneo que teria ocorrido com a ex-amante do goleiro Bruno, Fernanda Gomes de Castro. Ela, que no momento habita as dependências nada confortáveis do sistema prisional, apresentou sangramentos no domingo (08/08) e foi levada para uma maternidade para que se verificasse o que de fato havia acontecido em seu corpo. A hipótese do aborto espontâneo foi aventada, mas na segunda-feira (09/08) os médicos já diziam ser pouco provável que isso tenha efetivamente ocorrido.

Para nossos propósitos, no entanto, não importa se o aborto ocorreu ou não. As reflexões que tal notícia me recordou giram a respeito da expressão “aborto espontâneo”. Sempre a considerei muito curiosa, porquanto paradoxal. Geralmente utilizamos o termo “espontâneo” para caracterizar um comportamento ou ação que emanam do próprio ser, de sua própria natureza, ou seja, atos que não sofrem a coação de nenhum fator externo. Nesse sentido, o termo espontaneidade está atrelado à idéia de uma escolha relativamente livre. Ora, quando se fala em “aborto espontâneo” no contexto da medicina, as coisas se passam de modo diferente, pois em tal circunstância a pessoa que sofre o aborto em tese não escolheu perder o filho, isto é, não se trata de um aborto provocado. Foi o organismo que “decidiu” expulsar o feto à revelia do suposto desejo da pessoa de ter um filho. Logo – sigam meu raciocínio – não há nada de espontâneo nesse aborto, pois não foi a pessoa que o escolheu. Com efeito, ela supostamente sofreu a ação de seu próprio organismo.

Todavia, mesmo com essa contradição aparente, o uso do termo se mantém e a meu ver isso ocorre por uma razão específica. Como parece óbvio, o uso do termo “espontâneo” não diz respeito à pessoa, mas sim ao organismo. O organismo sim, espontaneamente, iniciou um processo de expulsão do feto. Logo, a divisão entre abortos provocados e abortos espontâneos só pode fazer sentido dentro de uma concepção de homem que tome a pessoa e o organismo como duas entidades distintas. Essa concepção, no entanto, esbarra em alguns problemas. Um deles é a constatação incontestável de que não é possível conceber a pessoa sem o organismo. Isso implica em dizer que quando uma mulher toma uma determinada substância assim chamada “abortiva” não é a pessoa da mulher apenas que age. Ela age com o seu organismo. Por que, então, insistimos em dizer que a contrapartida não é verdadeira, ou seja, que pode haver a ação do organismo sem a pessoa?

A meu ver, isso pode ser atribuído ao modo como a sociedade ocidental, principalmente a partir da modernidade, passou a pensar o corpo. Volta e meia é possível observar nosso modo de conceber a corporeidade nas palavras de profissionais de saúde e/ou biólogos, por exemplo. “O corpo humano é uma máquina perfeita!”, dizem eles repetindo Descartes. Não se trata apenas de um delírio médico. De fato, nós, filhos da Revolução Industrial, ao atentarmos, por exemplo, para o modo como o corpo trata os alimentos que ingerimos, utilizando algumas substâncias (nutrientes) e expelindo outras inúteis na forma de fezes e urina, não podemos deixar de ver no corpo humano a imagem de uma máquina muito bem elaborada. Não obstante, não devemos confundir o real com seu simulacro. A idéia de que o corpo é uma máquina orgânica não emerge do próprio corpo, mas é injetada no nosso olhar sobre ele a partir do momento em que fomos capazes de construir máquinas, engrenagens e mecanismos. Vemos a máquina no corpo por extensão de pensamento, da mesma forma que uma criança que está aprendendo a falar chama qualquer animal com asas de “passarinho”.

O que distingue nosso corpo de uma mera máquina sofisticada é justamente sua ligação com a “pessoa” ou, em termos mais filosóficos, com o “sujeito”. Isso significa que da mesma forma como não é possível conceber uma ação subjetiva sem o organismo, também não é possível conceber nenhum comportamento do organismo em que não entre em jogo a pessoa.

Um autor que elaborou seu pensamento sobre essas bases foi Georg Groddeck, o que o fez formular a idéia de que a doença não é um mal que acomete o organismo, mas, sim, uma criação do próprio sujeito. Para pensar assim, Groddeck foi obrigado a não mais trabalhar em termos de pessoa/organismo, psiquismo/corpo. O autor resgatou o termo impessoal “Isso” (Das Es) presente na obra de Nietzsche e utilizou-o no sentido de caracterizar a totalidade individual que é tão pessoa quanto organismo, tão psiquismo quanto corpo.

Com o conceito monista de Isso, Groddeck criou uma alternativa teórica para solucionar o impasse dicotômico entre sujeito e organismo, impasse que faz com que fiquemos todos sem resposta ao questionarmos a medicina com perguntas do tipo: “Por que o corpo daquela gestante aniquilou o feto?”, “Ah, ele considerou o feto como um corpo estranho? Mas por que o fez?”. Sabem por que não temos resposta? Porque o corpo é considerado pela medicina como uma máquina cega, que age mecanicamente. As almas bondosas dos hospitais, clínicas e ambulatórios, sequer se lembram dos textos de certo Sigmund Freud que demonstrou por a + b como muitos atos para os quais não encontramos explicação aparente possuem sua razão de ser em correntes de pensamento inconsciente. Por essa falha mnemônica, sequer lhes passa pela cabeça que o tal “aborto espontâneo” pode ter sido realmente espontâneo, no sentido literal dessa palavra. Em outros termos, não lhes vêm à mente que o aborto pode ter sido desejado ainda que a gestante diga, crendo estar sendo sincera, que queria muito aquele filho. Nesse momento, o conceito de Isso é bastante útil, pois nos impede de cair nas armadilhas do psicologismo. A partir da noção de Isso já não se trata de um desejo proveniente do psiquismo incidindo sobre o corpo, mas sim de um movimento que emerge da totalidade individual. Assim, podemos pensar que talvez o Isso dessa gestante, guardião de sua história subjetiva, tenha visto no aborto uma forma de resolver um conflito emocional bastante antigo, cujas raízes estão bem fundadas na infância, mas que só agora, nesse momento de gravidez, foi novamente despertado.

Ao pensarmos assim, o termo “espontâneo” aplicado ao aborto “não-provocado” é correto. No entanto, a idéia que a medicina passa da expressão “aborto espontâneo” é oposta à significação original de espontaneidade. Só poderemos apreciar a significação correta de “aborto espontâneo” quando renunciarmos à dicotomia entre sujeito e organismo. É por insistirmos nessa dicotomia que muitas vezes não compreendemos mulheres que apresentam uma série de abortos espontâneos embora possuam todos os órgãos do aparelho reprodutor intactos e plenamente saudáveis.

Não estou, obviamente, querendo produzir uma espécie de terrorismo psicanalítico, formulando a idéia de que por trás de todo aborto espontâneo oculta-se um desejo inconsciente de efetivamente abortar. Minha intenção, seguindo a trilha aberta por Freud e, especialmente, por Groddeck é de colocar em questão essa espécie de dogma da medicina moderna segundo o qual o corpo pode se comportar isoladamente, sem que a subjetividade esteja implicada. E com “subjetividade” quero dizer precisamente aquilo que está para-além da consciência e que, com o corpo, forma uma só totalidade.

Meu desejo inicial era o de encerrar este texto com o parágrafo anterior. No entanto, tenho a impressão de que ainda não me fiz claro ao expressar minhas idéias. Em função disso, tentarei sintetizá-las agora: (1) O termo “aborto espontâneo” é utilizado para se referir a um tipo de morte fetal em tese não provocada pela gestante ou por outrem. A idéia é de que o próprio organismo da gestante “espontaneamente” matou o feto. (2) O problema que vejo nessa conceituação é de que o vocábulo “espontâneo” não é utilizado em seu sentido original, o qual pressupõe um exercício de uma vontade livre, já que não se atribui voluntariedade alguma ao corpo. Sua ação se daria por unicamente por princípios mecânicos. (3) Essa concepção do corpo só é possível entendendo-o como essencialmente distinto do psiquismo, sede da vontade. (4) Minha tese, apoiada principalmente no conceito de “Isso” de Groddeck é o de superar essa dicotomia, pensando o corpo como indissociável do psiquismo. (5) A partir dessa nova concepção, o “aborto espontâneo” pode ser de fato visto como espontâneo, isto é, parcialmente derivado de um desejo, de algo que vem da própria natureza do ser que aborta.

O retorno do transcendente ou considerações despretenciosas sobre a atualidade (final)

Continuando, outra manifestação patente do retorno do transcendente na atualidade é o sucesso experimentado por fábulas modernas como Harry Potter, O Senhor dos Anéis e a mais recente, a saga “Crepúsculo”. Dos três, a que posso falar com mais propriedade é certamente Harry Potter visto que li, se não me engano, os quatro primeiros livros da série quando ainda estava no colegial. Os outros eu nem sequer folheei, mas pelos comentários na imprensa, julgo incidirem de maneira análoga à da história de J. K. Rowling na sociedade contemporânea.

Harry Potter resgata, para utilizar um termo de Jung bastante apropriado para este caso, todos os arquétipos da tradição mitológica que andavam amortecidos pelos dramas hollyoodianos e por toda uma série que começa lá com “E O Vento Levou”. Na fábula de J. K. Rowling, delineia-se a trajetória de um herói que lida o tempo todo com sua sombra, personificada pelo vilão Voldemort, o que coloca a série como sendo estruturalmente polarizada em torno de uma luta perene entre o Bem e o Mal, sem dúvida alguma os emblemas máximos da transcendência. Não é à toa que um dos partidários da valorização da imanência, Nietzsche, propõe uma moral para-além do bem e do mal.

Parto sempre do princípio de que as modificações experimentadas dentro de uma sociedade, mesmo que sejam apenas no nível de sua produção cultural, possuem um direcionamento funcional, isto é, que elas sempre advém com a finalidade de atender a necessidades e demandas (ignoro a distinção lacaniana neste ponto) surgidas a partir das pessoas. Nesse sentido, se histórias de bruxos, vampiros e mundos paralelos começam a surgir aos montes e a fazer sucesso nas livrarias e cinemas, é sinal de que as pessoas estão necessitando desse tipo de produto cultural. E a justificação dessa necessidade é bastante óbvia: após pouco mais de quatro décadas em que o sentido foi relegado ao segundo patamar das preocupações humanas, nada mais compreensível que buscá-lo superlativizado.

No entanto, há algo de novo no retorno das histórias fantásticas que as impede de alcançar um estatuto análogo às das tragédias do mundo grego (até porque seria uma insanidade comparar o gênio de um Sófocles ou um Eurípides com o esforço talentoso de um Tolkien). A peculiaridade que tenho em vista é a íntima relação que se estabelece entre o enredo fabuloso das histórias e a vida cotidiana. Nem Harry Potter nem os personagens de Crepúsculo são figuras nascidas de um “Era uma vez…”. São todos pessoas com dilemas, preocupações e amenidades como os leitores! Em meio às agruras para descobrir seu destino, o menino Potter tem que se ver às voltas com a preguiça em fazer as lições de casa ou com seu amor disfarçado pela colega de classe.

Vemos, portanto, que o retorno do transcendente não traz consigo um desprezo ou um distanciamento da imanência, mas apenas o resgate de uma visão transcendental da vida. Os aspectos peculiares da vivência cotidiana ainda se revestem de grande importância. No entanto, passam a ganhar um sentido vindo de fora, um aspecto trágico – não no sentido das tragédias gregas em que se buscava o sentido nas origens – mas uma tragicidade que se expressa em íntima conexão com a experiência imanente.

Essa dimensão de relacionamento entre imanência e transcendência também fica evidente no nosso último exemplo de retorno do transcendente que também foi responsável pela venda de milhões de exemplares de livros: é o revival da famosa idéia do pensamento positivo, isto é, de que se você acreditar firmemente que vai conseguir algo, você pode, pela força do pensamento, modificar as forças em ação no universo de modo a fazer com que seu desejo seja atendido. Essa é a tese de base de livros como “O Segredo” e seus derivados. Tais obras sinalizam o retorno da idéia de que existe uma ordem transcedental em ação. A novidade é que essa ordem, diferentemente da astrológica, pode ser alterada de acordo com o que se passa aqui embaixo, mais especificamente na cabeça de quem tem os pensamentos positivos.

Concluindo: o retorno do transcedente se dá operando a transcedência não mais como distante do mundo vivencial, mas estando em franca conexão com ele, seja na transformação da imanência num espetáculo transcendente, na criação artística de um mundo transcedente que não se dissocia do imanente ou na postulação de uma interrelação entre uma ordem trancendental e a imanência.

O retorno do transcendente ou considerações despretenciosas sobre a atualidade (parte 1)

Inicialmente, quero deixar claro ao nobre leitor que se debruça sobre estas linhas que não pretendo realizar aqui uma análise sociológica profunda, o que de imediato retira do presente escrito qualquer possibilidade de ser reconhecido como um trabalho acadêmico. Tenho em vista apenas expor algumas conclusões a que cheguei por meio da observação não-sistemática, não-metodológica, parcialmente influenciada por minhas expectativas, afetos e demais elementos subjetivos conjugada a uma reflexão de cunho predominantemente racional – entendendo esse termo na acepção tradicional referida ao pensamento cartesiano. Trocando em miúdos, tudo o que será exposto aqui pertence ao domínio da doxa e não da episteme.

Diz-se por aí – principalmente por aqueles que pretendem se constituir em autoridade para dizê-lo – que atualmente as pessoas do lado de cá do globo terrestre vivenciam um momento histórico marcado pelo pluralismo sócio-cultural que, basicamente, quer dizer que respeitando minimamente as leis do Estado eu posso elaborar um padrão de vida inteiramente singular, contrário, inclusive, aos preceitos da religião oficial do mesmo Estado e que não serei preso, apedrejado ou morto por causa disso. Outra marca do atual momento segundo os que dizem é um certo estado de incerteza, falta de direcionamento e sentido para a existência resultante da perda do poder normatizador das grandes instituições – como a família, o Estado e a Igreja – e das grandes narrativas que justificavam a vida mediante uma referência a uma realidade transcendental.

Nesse contexto, de prevalência do singular face ao universal e do desbussolamento frente ao sentido, é de se esperar que o investimento psíquico (libidinal, para usar um termo de Freud) das pessoas se deslocasse da transcendência para a imanência da vida, isto é, que a maior preocupação das pessoas deixasse de ser o significado de suas vidas e a adequação de suas ações a um determinado “programa de gerenciamento existencial” e passasse para as peculiaridades e contingências de sua vida concreta. Isso não significa, no entanto, que as pessoas deixassem de buscar sentido para suas vidas. Afinal, a pergunta concernente ao motivo pelo qual existimos e devemos existir pode ser posta no rol daqueles traços que possivelmente caracterizam a chamada “condição humana”. O que mudou foi a fonte onde os indivíduos se dirigem para buscar sentido. Se antes essa fonte era constituída pelas religiões e metanarrativas, na atualidade seria a própria imanência da vida.

O maior exemplo dessa transformação foi a ascenção dos chamados “reality shows” nas televisões de todo o mundo. As pessoas ficam em frente de seus televisores para assistir a pessoas comuns ou artistas mostrando sua faceta de pessoas comuns agindo como pessoas comuns e mostrando conflitos e situações completamente comuns e familiares aos espectadores. Por que assistir à vida comum com conflitos comuns se nós já estamos DENTRO da vida comum com conflitos comuns? Ao meu ver, porque a televisão e os demais meios de comunicação faz com que mesmo o comum transcenda os limites que o conjugam a nossa vida familiar. Assim, aquilo que naturalmente está do lado da imanência da vida se converte em transcendente e aparece aos olhos do espectador como uma possível fonte de sentido para sua vida. É como se cada um que assiste aos “reality shows” dissesse: “Como não acredito mais nessas histórias fantásticas contadas pela religião e pela tradição, deixa eu ver como essas pessoas comuns como eu vivem suas vidas de forma que eu possa extrair o mínimo de parâmetro para a minha.”

Vê-se, portanto, que uma das formas pelas quais o transcendente retorna é justamente através da conversão da imanência em transcedência. No próximo post apresentarei outros casos ilustrativos de retorno do transcendente.

“Na dúvida, é melhor ser passivo”: Ronaldo, o ato-falho encarnado

ronaldo-gordoFoi com o chiste acima que o jogador Ronaldo Nazário de Lima, vulgo Ronaldo Fenômeno terminou de responder a uma pergunta sobre a influência do sexo antes de uma partida no programa Altas Horas da TV Globo.

Essa foi mais uma amostra da característica mais marcante de Ronaldo. Não, não estou falando de suas arrancadas ou de sua facilidade para marcar gols. Falo desse traço de caráter bastante comum nas celebridades que chamei de “auto-sabotador”. Ronaldo parece fazer questão de queimar o próprio filme. Que os freudistas de plantão não pensem que estou falando do tal masoquismo. Não! Apesar do jogador ter certa predileção por “mulheres com algo a mais” não creio que ele seja perverso.

Ronaldo está mais para aquele tipo de pessoa que Freud chamou de “arruinados pelo êxito” no texto “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico”, de 1916. Tais pessoas parecem ser incapazes de tolerar a felicidade, acabando por prejudicarem a si mesmas no momento em que realizam seus desejos e anseios. Isso é absolutamente paradoxal e sobretudo para Freud o foi, uma vez que ele estava acostumado a tratar pacientes cuja neurose se inciava a partir de uma frustração, de um desapontamento e não do sucesso.

O histórico de “auto-sabotagens” de Ronaldo começou a partir da Copa do Mundo de 98. Lembram-se da “amarelada”, que na verdade foi uma convulsão cujo mistério poderia estar no livro “Estudos sobre Histeria”? A partir dali, foi ruína em cima de ruína: a começar pelas contusões. A cada vez que Ronaldo estava num momento ótimo de sua carreira, sobrevinha uma contusão no joelho, que, salvo a selvageria analítica, poderia muito bem ser enquadrada no que a gente chama de “compulsão à repetição”. A partir do ano passado as “auto-sabotagens”, além do corpo, foram estendidas para a imagem de Ronaldo na mídia: o escândalo com os travestis, as fotos tiradas do jogador bem rechonchudo fumando e, mais recentemente, as baladas e atrasos nos treinos.

Como é que a gente explica todos esses comportamentos esdrúxulos?

Para Freud, trata-se do bom e velho superego dizendo: “Você pode ser tudo menos igual ou maior que seu pai. Goze da vida do jeito que dá: sendo mais um Zé Mané como os outros.”  Forbes  compartilha dessa idéia de Freud, mas prefere analisá-la sob um outro ponto de vista.

O psicanalista vê nas “auto-sabotagens” de Ronaldo, Amy Winehouse, Britney Spears, Michael Jackson e companhia limitada, uma maneira burra de lidar com a principal consequência do sucesso: o destaque do resto dos mortais. Quem faz sucesso torna-se só pois torna-se único (Só existe um fenômeno). Portanto, não pode mais se reconhecer nos outros, o que, em se tratando da espécie humana é terrível. A saudade desse reconhecimento faz com que os “fenômenos” tentem voltar a sermerosacontecimentos naturais. Alguns conseguem fazer isso de forma criativa: Romário, por exemplo, ficou mascarado; Pelé “dividiu-se” entre o Edson Arantes e o Pelé propriamente dito.

Outros, porém, e entre eles está Ronaldo, só conseguem descer do pedestal em que foram colocados levando tombo, se machucando, fazendo ato-falho…

SERVIÇOS:

Veja abaixo o vídeo com a entrevista de Ronaldo no Altas Horas:

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A superfluidade do Carnaval

lh_bdesozinhoCaro leitor, hoje vou me atrever a falar como sociólogo, muito embora eu não tenha formação pra isso, mas como nas Ciências Humanas formação nunca foi critério, falarei sem culpa. O tema já está no título: é o Carnaval.

O ponto de vista que adotarei é essencialmente funcionalista. Com isso quero dizer que acredito que todo fato social não existe por acaso, mas que exerce uma função específica dentro de determinada cultura. A questão é tentar saber qual a função exercida.

No caso do Carnaval, essa função é muito clara: a festa da carne em tese seria a oportunidade reservada aos pobres filhos de Adão de descarregarem em quatro dias todos os impulsos que, por força das circunstâncias, tiveram que reprimir ao longo do ano. Tanto é assim que existe até uma “quarta-feira de cinzas” reservada para queimar os pecados cometidos durante os quatro dias.

É importante dizer que eventos do mesmo estilo do carnaval não são fatos exclusivos de terras tupiniquins e nem da atualidade. Pelo contrário, sempre existiram em todas as culturas períodos em que as crenças que fundamentavam as sociedades eram tratadas comicamente e nos quais se era permitido fazer tudo aquilo que não se podia durante o resto do ano. Carl Gustav Jung via aí a manifestação do arquétipo do trickster (Em breve explicarei aqui o que é um arquétipo). Por ora, basta ao leitor saber que o trickster denota o elemento cômico, personificado em muitas fábulas pelos duendes e em muitas culturas pelo palhaço.

Para se ter uma idéia da presença de carnavais em outras épocas, veja: Jung narra estranhos costumes eclesiásticos na Idade Média tais como os que aconteciam após o Natal, em que se escolhia um episcopum puerorum (bispo das crianças), o qual fazia uma visita oficial ao palácio do arcebispo, acompanhado de grande algazarra. Dentro do palácio, o bispo (das crianças) distribuía sua benção. Tais costumes evoluíram a ponto de no final do século XII serem chamados de festa stultorum (festa dos loucos). Assim se vê que até no meio mais improvável, pequenos carnavais já existiram.

Portanto, sabemos que o Carnaval tem essa função de ser o momento reservado para que a gente se recorde de que tudo isso em que acreditamos para viver em sociedade é puro semblante. Mas, será que hoje temos mesmo a necessidade de um Carnaval para fazer isso?

Penso que não. Em primeiro lugar porque eventos idênticos ao Carnaval ocorrem o ano inteiro em praticamente todas as cidades brasileiras, são as chamadas micaretas e as raves,onde as pessoas fazem tudo o que fazem no Carnaval, ou seja: suam, bebem, se drogam e transam. Em segundo lugar, porque a vantagem que o Carnaval outrora trazia, isto é, de ser o único momento em que a gente podia enfiar o pé na jaca sem culpa, já não é mais privilégio do Carnaval, principalmemte em relação à sexualidade: ninguém mais precisa esperar até o Carnaval pra poder transar com várias pessoas numa mesma noite. Em terceiro lugar, porque o momento pelo qual passa a cultura ocidental é de uma total perda de referência, de perda de prestígio das grandes instituições e blá, blá, blá,ou seja, não precisamos do Carnaval pra se dar conta de que a gente vive numa ficção e fazer chacota dessa ficção: fazemos isso a todo momento.

Mas por que, então, ainda se “comemora” o Carnaval. Penso que apenas por razões econômicas. É só porque Olinda, Salvador, Rio e São Paulo geram uma grana preta em patrocínios para TV, por exemplo, que a festa se mantém. Ah, mas e os Carnavais de cidades menores, tradicionais? Os que ainda não entraram no ciclo perverso do capital, estão com os dias contados.

Pra quê Carnaval?