O amor como afeto e o amor como ação: Freud com Winnicott (parte 1)

Há cerca de uma semana atrás, caiu-me nas mãos uma obra cuja leitura muitos dos que me conhecem e até eu mesmo há duas semanas não recomendaria sequer como companhia para as noites de revolução intestinal, em que nos transformamos dum salto em reis. Trata-se de um best-seller traduzido para diversas línguas e lido por alguns dos maiores empresários do mundo: “O Monge e o Executivo: uma História sobre a Essência da Liderança” da autoria do administrador de empresas James Hunter. É bom que se diga que as razões de minha não-indicação à leitura do livro não eram de fato razões, uma vez que não se fundavam nem em uma mera leitura rápida do texto, mas apenas na temática geral da obra: a tal liderança, assunto que geralmente se encontra no rol dos tópicos trabalhados nos chamados “treinamentos” de psicólogos organizacionais ou administradores de empresas, o cúmulo da mediocridade intelectual em minha opinião. Além disso, o opúsculo era catalogado nas livrarias juntamente com escritos chamados comumente de “auto-ajuda”, cuja ineficácia foi tão bem comentada em um post recente pelo amigo e psicólogo behaviorista Igor Madeira.

Nota-se, portanto, que minha não-recomendação se baseava unicamente em preconceitos. Esses, como bem se sabe, podem tornar-se conceitos se seu conteúdo for efetivamente confirmado após um empreendimento analítico ou empírico, ou refutados caso tal confirmação não ocorra. Foi essa última possibilidade a que se concretizou a partir de minha leitura de “O Monge e o Executivo”. A princípio relutante, devorei o livro em uma semana tão clara era a articulação das idéias do autor e tão saborosa sua originalidade. Não vou me deter aqui nos diversos aspectos que me fizeram considerar a obra de boa qualidade, mas apenas em um ponto em que o autor me fez pensar em alguns vínculos com a teoria psicanalítica.

Em determinado momento, Hunter, inspirado pelos Evangelhos, discute a importância do mandamento do amor cristão expresso em máximas como “ama ao próximo como a ti mesmo” e “ama a teu inimigo” para o bom exercício da liderança. Segundo ele, o cristianismo radicaliza uma concepção de amor que encontra suas raízes no vocábulo grego “ágape” – uma das quatro acepções do amor na língua grega; as demais, como muita gente sabe, são storge (geralmente associado à amizade), filos (o amor que faz o bem, altruísta) e eros (amor da paixão romântica, relacionado também à sensualidade e ao sexo).

Tal concepção de amor distinta da habitual está relacionada muito mais ao campo da ação do que do afeto. Tradicionalmente tendemos a ver o amor como um sentimento derivado de uma relação com outra pessoa, coisa, animal etc. Sentimos amor por nossas esposas, maridos, amigos, bichos de estimação, casas. É uma visão do amor como algo que nos afeta e que, portanto, não nasce de uma escolha ou de um engajamento subjetivo. O modelo paradigmático desse ponto de vista é o arrebatamento experimentado pelo sujeito ao se apaixonar. Essa pequena loucura da qual nenhum exemplar da espécie escapa foi sempre ilustrada pela tradição como resultado de um encantamento proveniente de fora, haja vista a célebre imagem de Cupido jogando suas flechas.

O que James Hunter propõe, e que em sua esteira discutirei com a ajuda de dois autores da psicanálise, é que essa é apenas uma das facetas do amor, que não é a mesma do amor ágape (ou caritas) cristão. Esse se constitui na verdade em um comportamento, em uma ação e não em um afeto. É por isso que é difícil para muitos compreender o mandamento de Jesus de amar também aos inimigos, pois está para-além dos limites do ser humano não sentir ódio de quem lhe maltrata, lhe faz mal. Isso está no plano do necessário e Jesus sabia disso, pois também se fez humano e passou por todas as intempéries experimentadas pelos filhos de Adão. O que Ele propõe, no entanto, é que, não obstante o ódio, amemos, pois esse tipo de amor (ágape/caritas) não está no mesmo nível nem do ódio originado pelo maltrato do outro nem do amor sentido por quem nos agrada; está no nível da vontade, do engajamento, da deliberação enfim. É por isso que Jesus, ao enunciar o mandamento, o contrapõe à prescrição judaica de “Odiar os inimigos”. Ora, odiar o inimigo não seria o sentimento que tenho após o mesmo proferir-me um insulto? Não. Esse ódio sentido é um afeto e, como tal, desencadeado pelas circunstâncias, sem passar pelo plano da vontade. O “odiar” de que Jesus fala é o comportamento que utiliza o ódio como motivo, ou seja, no nosso exemplo, revidar o insulto ou se vingar de outra forma do inimigo. Essa ação, sim, passa no nível da vontade e da deliberação, pois posso escolher insultar ou não, mas não posso escolher sentir ódio ou não.

Assim, amor no sentido cristão, expresso pela palavra grega ágape é uma ação cujo paradigma maior é o acolhimento, uma atitude de total aceitação do outro como ele é em todas as suas idiossincrasias, mesmo quando essas me provocam ódio e me fazem não gostar do outro, ou, nas palavras do apóstolo Paulo, “o que tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (Cf. 1Cor 13).

Vê-se bem, portanto, que amar é completamente distinto de gostar, não pelo fato do primeiro ser mais “profundo” que o segundo, mas pelo fato de que gostar é simplesmente o prazer – portanto afeto – que sinto por alguém cuja companhia me traz uma satisfação narcísica: gosto de quem me faz bem ou como dizem alguns, “gosto de quem gosta de mim”. Já o amor implica num ultrapassamento do narcisismo. Como veremos, Freud (e também Lacan) conseguiu vislumbrar apenas a primeira faceta do amor, o amor como afeto, daí sua visão particularmente pessimista do fenômeno amoroso e sua ênfase no eros. O teórico que, a meu ver, apresentou teses que possibilitam pensar o amor ágape/caritas em ternos analíticos foi Winnicott. No próximo post faremos falar os dois autores.

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As teses freudianas e a revelação cristã

A meu ver, é possível compreender as teses freudianas à luz da revelação cristã. O que Freud faz é descrever a vida daquele que o apóstolo Paulo chama de “homem velho”, homem que segundo o próprio apóstolo dos gentios é ainda prisioneiro dos “instintos egoístas”. Ora, o que seriam tais “instintos” senão a pulsão sexual de que fala Freud? Pois, para o pai da Psicanálise, a pulsão não possui um objeto pré-determinado, fixo. A única coisa que pode se dizer certa na pulsão é o que ela visa: a satisfação. A busca pelo apaziguamento do acúmulo gerado pela excitação pulsional é o elemento comum a todas as vicissitudes da pulsão. Foi também para a satisfação e o gozo do mundo que Deus chamou o homem à existência (Cf. Gn 1, 26: “Então Deus disse: ‘Façamos o homem a nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra.’”). É possível, então, pensar na hipótese de que enquanto o homem vivia na presença de Deus, em comunhão com ele – o que a Bíblia figurativamente narra como sendo a estada de Adão e Eva no paraíso – a pulsão não existia no homem, pois o próprio Deus era o objeto fixo e pré-determinado para o ser humano. A pulsão passa a existir justamente quando, por influência do diabo, o homem passa a se ver como distante de Deus e, por conseguinte, como menor do que Ele, pois é nisso que consiste a afirmativa da serpente de que ao comer do fruto da árvore do Bem e do Mal, homem e mulher se tornariam COMO deuses.

Para sustentar essa asserção, o demônio tem de lançar mão de duas premissas essenciais: a primeira é a de que o ser humano não é Deus. Essa postulação, por mais óbvia que seja, só adquire seu valor de uma humilde verdade, se for acompanhada de uma outra: a de que embora não sendo Deus, não estamos distantes dele. O diabo, não obstante, agrega a essa primeira premissa a idéia de que ser humano é ruim e que ser Deus é que é bom. Agindo assim, institui no coração do homem aquela que é a mãe de todas as invejas: a inveja da condição divina e, com ela, o primeiro reconhecimento da insatisfação. Até seu encontro com a serpente, o homem não se sentia insatisfeito, ou melhor, logo que os primeiros sinais de insatisfação brotaram em seu coração, Deus logo tratou de criar-lhe uma companheira. E esse estado de plena satisfação do homem não ocorria em função de uma possível cegueira humana para o que lhe faltava. É que a total comunhão com os desígnios de Deus lhe era suficiente (Cf. Gn 1, 31: “Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom”). Essa abertura promovida pelo diabo entre aquilo que o homem é e o que ele poderia ser é o que os psicanalistas chamam de hiância, falta, furo, etc. Vejam bem que essa hiância não nasce com o homem, mas é fruto da influência diabólica que induz o homem a se reconhecer como não pertencente à comunhão com Deus e, pelo contrário, querer se tornar como ele. Essa etapa, coincidentemente, é contemporânea do nascimento do ego no homem. Ora, Freud intuiu muito bem que o ego não é nada mais que a estrutura mental que condensa os ideais de totalidade e perfeição que o sujeito não aufere na realidade. No mito do Gênesis, a representação do ego é justamente a idéia de ser como Deus. O grande logro do demônio é fazer com que o homem vá buscar no fruto da árvore do Bem e do Mal, aquilo que ele já possui, pois qual não seria a maior perfeição do que permanecer no amor Daquele que o criou, isto é, ser Um com Ele?

Percebam também que a falta, a hiância, não surgem em função da incidência da Lei como pensaram alguns freudianos mais apressados. Até porque, no mito bíblico, até então não havia Lei. Pode-se até pensar no mandamento divino de não comer do fruto da árvore do Bem e do Mal como uma Lei, mas ela só adquire esse sentido a partir do discurso da serpente que mente acerca das conseqüências de sua transgressão. O aspecto essencial, portanto, para o advento da falta é a perspectiva de uma condição melhor. Isso adquire maior relevância tendo em vista que a constatação do homem como faltoso servirá a muitos filósofos e teólogos como atestado da existência de Deus, pois se o homem se vê como incompleto, é sinal de que ele concebe a possibilidade de ser completo, que corresponderia à idéia de Deus que, assim, não seria apenas uma idéia.

Assim, quando o homem, por influência do demônio, promove a abertura de uma distância entre seu estado real e um estado ideal, entre ele e Deus, todas as suas tendências que encontravam satisfação no Criador e no mundo por ele criado passam a ficar à deriva, pois nada disso mais satisfaz. Eis o nascimento da pulsão. A partir de então, ou seja, ao se afastar da presença de Deus, o homem passará a se ver às voltas com a terrível sensação de estar insatisfeito (Cf. Agostinho, Confissões, I, 1, 1: “Criastes-nos para Vós, e o nosso coração está inquieto, enquanto não descansa em Vós”) e de constantemente estar tentado a buscar satisfação nos objetos nos quais originalmente não deveria buscar, quais sejam, todos aqueles que a lei mosaica no Pentateuco interdita: animais, familiares, pessoas do mesmo sexo, etc. Como diz Paulo, a lei sistematizada por Moisés é uma manifestação patente do amor de Deus para com o homem, pois mesmo sabendo que o ser humano deixou voluntariamente de estar em comunhão com ele, Deus lhe dá um conjunto de prescrições para que mesmo estando fora de sua presença, ele possa caminhar de acordo com seus desígnios e viver uma vida feliz – é por isso que Paulo compara a Lei a um pedagogo.

O diabo, no entanto, aproveitou a existência da Lei para manifestar suas duas facetas: a de tentador (que já havia sido vislumbrada no princípio) e a de acusador. A de tentador é óbvia. Já a de acusador é análoga ao nascimento do superego, como já havia dito há dois posts atrás. O superego não existe para gerar responsabilidade, ele existe para eliciar o sentimento de culpa, para fazer com que o sujeito se martirize por ter transgredido a Lei. Como até o nascimento do Messias ainda não havia o Advogado (Paráclito), o diabo triunfava, subvertendo a utilidade da lei, como o próprio Paulo diz em uma de suas cartas. A entrada em cena de Jesus representa um passo decisivo nessa dinâmica, porque a fé em Cristo torna a lei mosaica desnecessária porque Jesus veio manifestar com sua morte a vontade do Pai de se reconciliar com o homem, isto é, de restaurar a comunhão que havia sido rompida lá no Gênesis, por influência do demônio. E o mais interessante é que Deus faz isso reconhecendo que após a saída de sua presença o homem se tornou falho e, portanto, não tem condições de, por sua própria força, alcançar novamente a comunhão com Ele. Por isso, Deus vem em socorro do homem não mais com um novo código de normas, pois Ele já viu que a lei acaba servindo para que o demônio escravize o homem. O Pai, enviando seu Filho como sacrifício para o perdão dos pecados, liberta o homem do pecado. Isso significa que o homem não vai mais pecar? Claro que não! Significa que ele já não é mais uma criança que precisa de um rígido conjunto de normas para evitar o pecado, pois esse passa a ser um acidente de percurso – perene, obviamente, mas que não precisa mais ser temido, pois há um Deus que perdoa.

Perceberam que nesse último parágrafo eu falei apenas de religião, sem nenhuma analogia com a teoria psicanalítica? Não é coincidência. É que Freud, de fato, não alcançou a novidade cristã, justamente porque, sendo judeu, ele sabia descrever perfeitamente bem a relação do homem com a Lei e o pecado, ou seja, a dinâmica de vida do homem velho paulino, mas não a do homem novo renascido em Cristo. Talvez a maior realização não só de Freud, mas de toda a Psicanálise, foi ter descoberto que há um judeu escondido em todos os homens.

Voltando ao assunto, para que a comunhão com Deus seja restabelecida, é preciso que o homem, em contrapartida ao amor de Deus, institua um novo destino para a pulsão: tomar Deus como único objeto e o amor a Ele e ao próximo como únicas finalidades. Sim, ao próximo, porque o rebaixamento divino em Jesus trouxe o Deus de volta à imanência (Cf. Mt 25, 40: “Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.”. A partir de então, Deus não está mais distante do homem, mas se personifica em cada pessoa com a qual nos relacionamos. Esse novo destino da pulsão demanda um recolhimento de investimento libidinal de todas as outras coisas – é o que Jesus chamava de abandono do mundo. E é aí que a conversão beira a psicose, pois o que ocorre nessa psicopatologia, para Freud, é justamente o desligamento libidinal dos objetos e a introversão da libido para o ego. A diferença é que no caso da conversão, a libido se dirige para o Cristo e não para o eu. No entanto, se pensarmos como Agostinho, que concebia que Deus estava presente dentro do homem e, portanto, o afastamento de Deus implicaria um afastamento de si mesmo (Cf. Confissões, III, 6, 11: “De fato, tu estavas dentro de mim mais que o meu íntimo e acima da minha parte mais alta”), a distinção entre psicose e conversão deixa de existir. O próprio apóstolo Paulo ignora qualquer diferença (Cf. 1Co 1, 18: “Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.”; 1Co 1, 21: “Visto como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação.”; 1Co 1, 23: “Mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos.”)

Só para fazer mais uma analogia com a Psicanálise, quando Freud elabora a noção de pulsão de morte e com ela a idéia de que o prazer não basta para o homem, que ele busca uma satisfação que vai mais além, Freud sem saber intuiu uma realidade espiritual. Pelo fato do homem um dia ter estado ligado plenamente a Deus, ao buscar se satisfazer através da pulsão com os objetos ilícitos do mundo (na linguagem freudiana, os objetos parciais), o homem procurará repetir aquela plenitude primeira e invariavelmente fracassará. No entanto, como o pecado produz prazer, o homem insistirá nele pensando que poderá, na repetição, alcançar a satisfação pretendida – eis a compulsão à repetição de Freud.

É evidente que as analogias feitas neste texto possuem pouco rigor teológico e suas limitações são bastante claras: são apenas tentativas de estabelecer continuidades entre uma teoria bastante eficaz da condição humana e a verdade sobre tal condição e a relação do homem com Deus. Penso ser lícito tal empreendimento uma vez que muitos pais da igreja, de forma semelhante, fizeram uso de sistemas filosóficos como o aristotelismo e o platonismo como ilustração de suas teses teológicas. A meu ver, Freud evidenciou toda sua genialidade ao destrinchar a vida psicológica do homem que ainda não alcançou a fé cristã.

O retorno do transcendente ou considerações despretenciosas sobre a atualidade (final)

Continuando, outra manifestação patente do retorno do transcendente na atualidade é o sucesso experimentado por fábulas modernas como Harry Potter, O Senhor dos Anéis e a mais recente, a saga “Crepúsculo”. Dos três, a que posso falar com mais propriedade é certamente Harry Potter visto que li, se não me engano, os quatro primeiros livros da série quando ainda estava no colegial. Os outros eu nem sequer folheei, mas pelos comentários na imprensa, julgo incidirem de maneira análoga à da história de J. K. Rowling na sociedade contemporânea.

Harry Potter resgata, para utilizar um termo de Jung bastante apropriado para este caso, todos os arquétipos da tradição mitológica que andavam amortecidos pelos dramas hollyoodianos e por toda uma série que começa lá com “E O Vento Levou”. Na fábula de J. K. Rowling, delineia-se a trajetória de um herói que lida o tempo todo com sua sombra, personificada pelo vilão Voldemort, o que coloca a série como sendo estruturalmente polarizada em torno de uma luta perene entre o Bem e o Mal, sem dúvida alguma os emblemas máximos da transcendência. Não é à toa que um dos partidários da valorização da imanência, Nietzsche, propõe uma moral para-além do bem e do mal.

Parto sempre do princípio de que as modificações experimentadas dentro de uma sociedade, mesmo que sejam apenas no nível de sua produção cultural, possuem um direcionamento funcional, isto é, que elas sempre advém com a finalidade de atender a necessidades e demandas (ignoro a distinção lacaniana neste ponto) surgidas a partir das pessoas. Nesse sentido, se histórias de bruxos, vampiros e mundos paralelos começam a surgir aos montes e a fazer sucesso nas livrarias e cinemas, é sinal de que as pessoas estão necessitando desse tipo de produto cultural. E a justificação dessa necessidade é bastante óbvia: após pouco mais de quatro décadas em que o sentido foi relegado ao segundo patamar das preocupações humanas, nada mais compreensível que buscá-lo superlativizado.

No entanto, há algo de novo no retorno das histórias fantásticas que as impede de alcançar um estatuto análogo às das tragédias do mundo grego (até porque seria uma insanidade comparar o gênio de um Sófocles ou um Eurípides com o esforço talentoso de um Tolkien). A peculiaridade que tenho em vista é a íntima relação que se estabelece entre o enredo fabuloso das histórias e a vida cotidiana. Nem Harry Potter nem os personagens de Crepúsculo são figuras nascidas de um “Era uma vez…”. São todos pessoas com dilemas, preocupações e amenidades como os leitores! Em meio às agruras para descobrir seu destino, o menino Potter tem que se ver às voltas com a preguiça em fazer as lições de casa ou com seu amor disfarçado pela colega de classe.

Vemos, portanto, que o retorno do transcendente não traz consigo um desprezo ou um distanciamento da imanência, mas apenas o resgate de uma visão transcendental da vida. Os aspectos peculiares da vivência cotidiana ainda se revestem de grande importância. No entanto, passam a ganhar um sentido vindo de fora, um aspecto trágico – não no sentido das tragédias gregas em que se buscava o sentido nas origens – mas uma tragicidade que se expressa em íntima conexão com a experiência imanente.

Essa dimensão de relacionamento entre imanência e transcendência também fica evidente no nosso último exemplo de retorno do transcendente que também foi responsável pela venda de milhões de exemplares de livros: é o revival da famosa idéia do pensamento positivo, isto é, de que se você acreditar firmemente que vai conseguir algo, você pode, pela força do pensamento, modificar as forças em ação no universo de modo a fazer com que seu desejo seja atendido. Essa é a tese de base de livros como “O Segredo” e seus derivados. Tais obras sinalizam o retorno da idéia de que existe uma ordem transcedental em ação. A novidade é que essa ordem, diferentemente da astrológica, pode ser alterada de acordo com o que se passa aqui embaixo, mais especificamente na cabeça de quem tem os pensamentos positivos.

Concluindo: o retorno do transcedente se dá operando a transcedência não mais como distante do mundo vivencial, mas estando em franca conexão com ele, seja na transformação da imanência num espetáculo transcendente, na criação artística de um mundo transcedente que não se dissocia do imanente ou na postulação de uma interrelação entre uma ordem trancendental e a imanência.

O retorno do transcendente ou considerações despretenciosas sobre a atualidade (parte 1)

Inicialmente, quero deixar claro ao nobre leitor que se debruça sobre estas linhas que não pretendo realizar aqui uma análise sociológica profunda, o que de imediato retira do presente escrito qualquer possibilidade de ser reconhecido como um trabalho acadêmico. Tenho em vista apenas expor algumas conclusões a que cheguei por meio da observação não-sistemática, não-metodológica, parcialmente influenciada por minhas expectativas, afetos e demais elementos subjetivos conjugada a uma reflexão de cunho predominantemente racional – entendendo esse termo na acepção tradicional referida ao pensamento cartesiano. Trocando em miúdos, tudo o que será exposto aqui pertence ao domínio da doxa e não da episteme.

Diz-se por aí – principalmente por aqueles que pretendem se constituir em autoridade para dizê-lo – que atualmente as pessoas do lado de cá do globo terrestre vivenciam um momento histórico marcado pelo pluralismo sócio-cultural que, basicamente, quer dizer que respeitando minimamente as leis do Estado eu posso elaborar um padrão de vida inteiramente singular, contrário, inclusive, aos preceitos da religião oficial do mesmo Estado e que não serei preso, apedrejado ou morto por causa disso. Outra marca do atual momento segundo os que dizem é um certo estado de incerteza, falta de direcionamento e sentido para a existência resultante da perda do poder normatizador das grandes instituições – como a família, o Estado e a Igreja – e das grandes narrativas que justificavam a vida mediante uma referência a uma realidade transcendental.

Nesse contexto, de prevalência do singular face ao universal e do desbussolamento frente ao sentido, é de se esperar que o investimento psíquico (libidinal, para usar um termo de Freud) das pessoas se deslocasse da transcendência para a imanência da vida, isto é, que a maior preocupação das pessoas deixasse de ser o significado de suas vidas e a adequação de suas ações a um determinado “programa de gerenciamento existencial” e passasse para as peculiaridades e contingências de sua vida concreta. Isso não significa, no entanto, que as pessoas deixassem de buscar sentido para suas vidas. Afinal, a pergunta concernente ao motivo pelo qual existimos e devemos existir pode ser posta no rol daqueles traços que possivelmente caracterizam a chamada “condição humana”. O que mudou foi a fonte onde os indivíduos se dirigem para buscar sentido. Se antes essa fonte era constituída pelas religiões e metanarrativas, na atualidade seria a própria imanência da vida.

O maior exemplo dessa transformação foi a ascenção dos chamados “reality shows” nas televisões de todo o mundo. As pessoas ficam em frente de seus televisores para assistir a pessoas comuns ou artistas mostrando sua faceta de pessoas comuns agindo como pessoas comuns e mostrando conflitos e situações completamente comuns e familiares aos espectadores. Por que assistir à vida comum com conflitos comuns se nós já estamos DENTRO da vida comum com conflitos comuns? Ao meu ver, porque a televisão e os demais meios de comunicação faz com que mesmo o comum transcenda os limites que o conjugam a nossa vida familiar. Assim, aquilo que naturalmente está do lado da imanência da vida se converte em transcendente e aparece aos olhos do espectador como uma possível fonte de sentido para sua vida. É como se cada um que assiste aos “reality shows” dissesse: “Como não acredito mais nessas histórias fantásticas contadas pela religião e pela tradição, deixa eu ver como essas pessoas comuns como eu vivem suas vidas de forma que eu possa extrair o mínimo de parâmetro para a minha.”

Vê-se, portanto, que uma das formas pelas quais o transcendente retorna é justamente através da conversão da imanência em transcedência. No próximo post apresentarei outros casos ilustrativos de retorno do transcendente.

Homens – Cena 1

74Ele está na casa da namorada. É domingo, único dia da semana em que a sogra e o sogro se lembram que ainda são casados e que, sim, eles podem trocar a revista de fofoca e o jornal barato pelo aconchego da própria cama – nem que seja para fazer palavras-cruzadas juntos…

Enfim, o casal de namoradinhos está sozinho. Ele se mantém na mesma posição, apenas a afagar-lhe os cabelos, com medo de que os velhos tenham ido apenas buscar uma munição reforçada (no caso, uma Marie-Claire ou A Folha de São Paulo). Ela, conhecendo a estratégia do inimigo e sabendo que a retirada foi estratégica, já inicia uma massagem provocante. Ele apenas fecha os olhos e aprecia o caminhar das mãos dela, pensando: “Não há motel de luxo que substitua o sabor do perigo de uma transa na casa da namorada…”

Eis que o telefone (dele) toca.

– Alô.

– Alô. Beto?

– Fala Nogueira! Beleza?

– Tudo em cima! Vai no jogo hoje?

– Que jogo?

– Como que jogo? A final do Campeonato Tupinambense, homem! Cê tá doente?

– Putz! Tinha me esquecido! Não posso perder mais esse triunfo do 7 de setembro!

– Pois é, é melhor correr senão a gente não acha ingresso.

– Me espera aí que já tô chegando…

A namorada, compreensiva, pára a massagem, resignada. Ela sabe que ele preferirá ser massageado pelos braços e cotovelos de dezenas de homens na arquibancada de um estádio (porque dá mais emoção). Todos eles a soltarem gritos e urros que não são de orgasmo.

Tudo por mais um triunfo do 7 de setembro…