Há cerca de uma semana atrás, caiu-me nas mãos uma obra cuja leitura muitos dos que me conhecem e até eu mesmo há duas semanas não recomendaria sequer como companhia para as noites de revolução intestinal, em que nos transformamos dum salto em reis. Trata-se de um best-seller traduzido para diversas línguas e lido por alguns dos maiores empresários do mundo: “O Monge e o Executivo: uma História sobre a Essência da Liderança” da autoria do administrador de empresas James Hunter. É bom que se diga que as razões de minha não-indicação à leitura do livro não eram de fato razões, uma vez que não se fundavam nem em uma mera leitura rápida do texto, mas apenas na temática geral da obra: a tal liderança, assunto que geralmente se encontra no rol dos tópicos trabalhados nos chamados “treinamentos” de psicólogos organizacionais ou administradores de empresas, o cúmulo da mediocridade intelectual em minha opinião. Além disso, o opúsculo era catalogado nas livrarias juntamente com escritos chamados comumente de “auto-ajuda”, cuja ineficácia foi tão bem comentada em um post recente pelo amigo e psicólogo behaviorista Igor Madeira.
Nota-se, portanto, que minha não-recomendação se baseava unicamente em preconceitos. Esses, como bem se sabe, podem tornar-se conceitos se seu conteúdo for efetivamente confirmado após um empreendimento analítico ou empírico, ou refutados caso tal confirmação não ocorra. Foi essa última possibilidade a que se concretizou a partir de minha leitura de “O Monge e o Executivo”. A princípio relutante, devorei o livro em uma semana tão clara era a articulação das idéias do autor e tão saborosa sua originalidade. Não vou me deter aqui nos diversos aspectos que me fizeram considerar a obra de boa qualidade, mas apenas em um ponto em que o autor me fez pensar em alguns vínculos com a teoria psicanalítica.
Em determinado momento, Hunter, inspirado pelos Evangelhos, discute a importância do mandamento do amor cristão expresso em máximas como “ama ao próximo como a ti mesmo” e “ama a teu inimigo” para o bom exercício da liderança. Segundo ele, o cristianismo radicaliza uma concepção de amor que encontra suas raízes no vocábulo grego “ágape” – uma das quatro acepções do amor na língua grega; as demais, como muita gente sabe, são storge (geralmente associado à amizade), filos (o amor que faz o bem, altruísta) e eros (amor da paixão romântica, relacionado também à sensualidade e ao sexo).
Tal concepção de amor distinta da habitual está relacionada muito mais ao campo da ação do que do afeto. Tradicionalmente tendemos a ver o amor como um sentimento derivado de uma relação com outra pessoa, coisa, animal etc. Sentimos amor por nossas esposas, maridos, amigos, bichos de estimação, casas. É uma visão do amor como algo que nos afeta e que, portanto, não nasce de uma escolha ou de um engajamento subjetivo. O modelo paradigmático desse ponto de vista é o arrebatamento experimentado pelo sujeito ao se apaixonar. Essa pequena loucura da qual nenhum exemplar da espécie escapa foi sempre ilustrada pela tradição como resultado de um encantamento proveniente de fora, haja vista a célebre imagem de Cupido jogando suas flechas.
O que James Hunter propõe, e que em sua esteira discutirei com a ajuda de dois autores da psicanálise, é que essa é apenas uma das facetas do amor, que não é a mesma do amor ágape (ou caritas) cristão. Esse se constitui na verdade em um comportamento, em uma ação e não em um afeto. É por isso que é difícil para muitos compreender o mandamento de Jesus de amar também aos inimigos, pois está para-além dos limites do ser humano não sentir ódio de quem lhe maltrata, lhe faz mal. Isso está no plano do necessário e Jesus sabia disso, pois também se fez humano e passou por todas as intempéries experimentadas pelos filhos de Adão. O que Ele propõe, no entanto, é que, não obstante o ódio, amemos, pois esse tipo de amor (ágape/caritas) não está no mesmo nível nem do ódio originado pelo maltrato do outro nem do amor sentido por quem nos agrada; está no nível da vontade, do engajamento, da deliberação enfim. É por isso que Jesus, ao enunciar o mandamento, o contrapõe à prescrição judaica de “Odiar os inimigos”. Ora, odiar o inimigo não seria o sentimento que tenho após o mesmo proferir-me um insulto? Não. Esse ódio sentido é um afeto e, como tal, desencadeado pelas circunstâncias, sem passar pelo plano da vontade. O “odiar” de que Jesus fala é o comportamento que utiliza o ódio como motivo, ou seja, no nosso exemplo, revidar o insulto ou se vingar de outra forma do inimigo. Essa ação, sim, passa no nível da vontade e da deliberação, pois posso escolher insultar ou não, mas não posso escolher sentir ódio ou não.
Assim, amor no sentido cristão, expresso pela palavra grega ágape é uma ação cujo paradigma maior é o acolhimento, uma atitude de total aceitação do outro como ele é em todas as suas idiossincrasias, mesmo quando essas me provocam ódio e me fazem não gostar do outro, ou, nas palavras do apóstolo Paulo, “o que tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (Cf. 1Cor 13).
Vê-se bem, portanto, que amar é completamente distinto de gostar, não pelo fato do primeiro ser mais “profundo” que o segundo, mas pelo fato de que gostar é simplesmente o prazer – portanto afeto – que sinto por alguém cuja companhia me traz uma satisfação narcísica: gosto de quem me faz bem ou como dizem alguns, “gosto de quem gosta de mim”. Já o amor implica num ultrapassamento do narcisismo. Como veremos, Freud (e também Lacan) conseguiu vislumbrar apenas a primeira faceta do amor, o amor como afeto, daí sua visão particularmente pessimista do fenômeno amoroso e sua ênfase no eros. O teórico que, a meu ver, apresentou teses que possibilitam pensar o amor ágape/caritas em ternos analíticos foi Winnicott. No próximo post faremos falar os dois autores.
O livro realmente é bastante interessante. O “amor” de fato nunca entrou na minha cabeça até ler esse livro. Foi quando comecei a entender o Amor de fato.
Eu diria que em resumo há atração sexual (paixão) e há gostar. Sendo que infelizmente chamamos ambos de Amor.
Uma pequena palavra que faz tanta confusão.
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Achei interessantíssima a relação estabelecida entre esse tipo de amor e vontade, uma impulsão que transcende o mero sentimento. Me faz pensar no conceito de vontade de Schopenheauer e me instigou a pesquisar Winnicot, que segundo você diz faz esta leitura. Em minha tese de doutorado em filosofia, pesquiso o conceito de amor-de-si em JJ Rousseau para relacioná-lo ao seu conceito de vontade geral. Por isso me interessei bastante pelo seu texto. Obrigada, Marisa
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Olá,
gostaria de divulgar o blog que fiz e tenho trabalhado. Trata-se de uma discussao informativa sobre o Piso Salarial dos Psicólogos.
http://pisosalarialdospsicologos.blogspot.com/
Att.,
vinicius.
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Olá Marisa, primeiramente obrigado pela visita. Como mostrarei na continuação do texto, Winnicott transcende a visão do amor como afeto uma vez que ele concebe um tipo de relacionamento entre dois sujeitos que não se restringe à tomada de um pelo outro como objeto de amor. Tomara que o texto como um todo possa contribuir para a a evolução de suas idéias.
Um abraço!
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Olá Vinícius. Achei interessantíssima e bem pertinente sua iniciativa. Já incluí o link do blog na minha página.
Um abraço!
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Excelente texto, um profunda análise sobre a realidade da revelação da graça, o ágape. O pathos deste amor incondicionado, fora de si para si. É estranha a relação da comtemporaneidade com o cristianismo, já que a história do pensamento deve a este tanto, que não deveria quere-lo bem, apenas, mas amá-lo.
Parabéns Lucas, seus textos cada vez melhores, mais belos e mais originais, vários deles me evocam a patrística e todos os intentos filosoficamente construídos para demonstrar o óbvio: VERITAS EST DEO REVELATUM.
Mais uma vez, parabéns!
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Estou lendo o livro O Monge e o Executivo e estou gostando muito, a definição de amor apresentada no livro me deixou muito satisfeita, confesso quem não conhecia o amor da forma descrita no livro. Muito bom o livro recomendo pra quem ainda não teve a oportunidade de ler.
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Esse é o Lucas que eu conheço.Estudioso,encantado com a psicanálise! Parabéns pelo texto sobre a “Prisão de Ventre”Rí demais com a expressão que você utilizou:”Não foi tirado atrás da orelha” (E deixou registrado a fonte bibliográfica).Eu vejo e entendo a questão dentro de uma ótica mais complexa,ou seja:Fatores cs,,ics e outros como,por exemplo:Seu organismo envia um comando de excretar as fezes e vc.simplesmente não o atende,,por razões diversas…Acredito que esssa atitude provoca uma desordem fisiológica quando não se respeita os sinais que recebemos.Por isso acredito também que além de exercícos físicos,alimentação adequada,(+) as suas pontuações,(+) a colocação bio médica,sem se esquecer de respeitar os sinais recebidos do nosso corpo,acredito serem essas as verdades acerca do tema em pauta. (É apenas meu ponto de vista) Mande mais artigos..Parabéns!Fátima.
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Conforme acima… Parabéns !!!
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Olá!
Sou estudante de Direito e meu tema da monografia é Cabimento das Ações de Indenização por Abandono Afetivo. Para isso, discuto que as definições de amor, afeto e afetividade não cabem ao Direito, e sim à Psicologia. Estou procurando definições de amor e afeto, mas está sendo muito difícil. Você me recomendaria algum livro específico?
Desde já, muito obrigada!
Anna Elize.
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Olá Anna Elize!
Obrigado pela visita!
Recomendo-lhe o “Vocabulário de Psicanálise” de Jean Laplanche e J. B. Pontalis.
Mas desde já te aviso que as definições que você encontrará nessa obra partem do referencial psicanalítico. É que a “Psicologia” consiste, na verdade, numa grande babel teórica, de modo que cada teoria advogaria uma definição específica de amor e afeto.
De todo modo, considero a Teoria Psicanalítica a mais coerente e rigorosa acerca de tais fenômenos.
Forte abraço e apareça sempre!
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Muito obrigada, Lucas!
Abraço!
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