Winnicott e o cristianismo VI – a gênese da moralidade e a ética cristã

Por que não fazemos tudo o que queremos? Essa questão, aparentemente banal e de fácil resolução, não obstante está no cerne das discussões concernentes aos domínios da moral e da ética. Poderíamos formulá-la em outros termos tais como: “Por que muitas vezes sentimos o desejo de agredir e até matar determinadas pessoas e não o fazemos?” Uma resposta que saltaria da boca de muitos seria a de que não realizamos tais atos porque em condições normais seríamos punidos, oficialmente pela polícia e/ou extra-oficialmente pela própria pessoa, por seus amigos ou familiares. Em suma, o que limitaria nossa ação seria tão-somente o medo da punição.

Essa é uma solução de fato plenamente plausível para o problema e ela era compartilhada por ninguém menos que o doutor Sigmund Freud. Com efeito, para o médico vienense, o conflito entre o que desejamos e o que devemos fazer estava na raiz de nossa estrutura enquanto pessoas; era, por assim dizer, o núcleo de nossa existência. Para Freud, o ser humano na origem é potencialmente capaz de realizar e fruir de todas as perversões existentes, das que já existiram e das que virão a existir no futuro. Essa é a tese que levou Freud a dizer que a criança é um “perverso polimorfo”. Isso significa que, sob a ótica do pai da Psicanálise, a moralidade e os princípios éticos teriam se desenvolvido como uma reação, uma defesa, uma tentativa de regular tanto nossa sexualidade quanto nossa agressividade. Em outras palavras, o homem inicialmente seria um monstro capaz de todas as atrocidades imagináveis, que posteriormente seria “amansado” e “controlado” pela instância moral. Mas não só por ela. Freud dá relevância também ao papel da própria realidade na regulação de nossas ações, visto que por vezes embora não estejamos sob a ameaça de uma punição moral, a realidade não nos fornece condições de realização de nossos desejos, como no caso de alguém que se encontra destituído de liberdade.

Para Freud, a primeira regulação que sofremos, isto é, a primeira concessão que fazemos à moral, abdicando de nosso desejo é a proibição de gozarmos plenamente, no sentido erótico, do corpo de nossa mãe. Como se sabe, o bebê não apenas se alimenta ao engolir o leite materno. Ele também se satisfaz com o prazer gerado a partir de seus lábios pela sucção dos seios da mãe, o que faz com que uma das facetas da mãe, para o bebê, seja a de um objeto sexual. Com o tempo, o bebê, ao explorar seu corpo, descobre que seu órgão genital também lhe proporciona prazeres análogos aos da sucção do seio. Logo, quem surgirá na mente da criança associado a esse prazer genital? Óbvio: a mãe. Não obstante, o bebê logo, logo, terá que se esquecer da mamãe e pensar na priminha ou na coleguinha da escola, porque no mundo dos adultos, ninguém pode desejar a própria mãe, pois a mamãe é do papai.

Da mesma forma se passa com a questão da agressividade. “Já que não posso ficar com a mamãe porque ela é do papai, então é simples resolver a questão: eu mato papai! Não, não posso? Por que não? Ah sim, porque no mundo dos adultos é proibido matar. Poxa, mas tudo o que eu quero é proibido!” Tanto a sexualidade quanto a agressividade são regulados, do ponto de vista de Freud, não por uma compreensão da própria natureza dos atos, mas por sanções que vêm de fora e que não explicam as razões das proibições, apenas apresentam as negativas “Não farás isso, não farás aquilo”.

Jacques Lacan, vendo o perigo que tal entendimento de Freud sobre a moralidade poderia gerar visto que se poderia pensar, como de fato se pensou, que já que é a moralidade que faz com que as pessoas não possam dar livre vazão a seus desejos, é só eliminar boa parte dos princípios morais que as neuroses serão bem menos freqüentes. Foi com base nesse tipo de pensamento que, principalmente nos anos 60, iniciou-se um movimento de liberalização sexual que, no entanto, não extinguiu as neuroses. Pelo contrário, foram gerados novos problemas como compulsões sexuais, promiscuidade e a conseqüente proliferação de doenças sexualmente transmissíveis, entre as quais a AIDS.

Com vistas a impedir que movimentos como esse se dissessem baseados nas teorias da Psicanálise, Jacques Lacan foi obrigado a radicalizar os enunciados freudianos e dizer: “Olha, pessoal, Freud efetivamente disse que a moral limitava o exercício de toda a nossa potencialidade sexual e que muita gente que não dava conta de reprimir seus desejos acabava dando vazão a eles na forma de doença psicológica. No entanto, o que Freud realmente queria dizer é que nem se a gente acabasse com todos os princípios morais, nossa vida seria melhor porque a realização plena de nossa sexualidade é impossível. Sabem por quê? Por que nós somos seres que falam e vivemos num mundo onde tudo está sob o domínio da linguagem. Tudo tem nome e só sabemos o que uma coisa significa tendo em mente todas as outras palavras do mundo que se distinguem do nome da coisa em questão. Enfim, estamos todos alienados na linguagem. Logo, não temos como ter acesso à Coisa da sexualidade, só à sua representação. É por isso que mesmo não estando sujeitos a estatutos morais, nunca estaremos satisfeitos, pois estaremos sempre sujeitos à linguagem que, por sua vez, limita nossa percepção de nós mesmos. Assim, não é a moral que nos divide, fazendo que uma parte de nós deseje uma coisa e outra deseje atingir um ideal de moralidade. É a própria linguagem que, pelo próprio fato de termos um nome, faz com que nos distanciemos de nós mesmos.”

O que Lacan fez, portanto, foi dar um estatuto ontológico, estrutural, necessário às teses contingentes de Freud, pois podemos conceber uma sociedade sem o mínimo de estruturação moral como Sodoma, mas não há sociedade sem linguagem. É por isso que Lacan vai dizer que os dez mandamentos são as próprias leis da linguagem. Assim, não se trata de uma impossibilidade relativa, mas de uma impossibilidade lógica de satisfação plena. É por isso também que Lacan terá que conjugar o conceito de libido de Freud que, na obra desse último, fazia referência à sexualidade entendida não apenas como sexualidade genital e o conceito de pulsão de morte, a explicação freudiana para a agressividade humana, unindo os dois conceitos em um só: o conceito de gozo. Destarte, em Freud a moral regularia e limitaria a libido e a pulsão de morte; em Lacan, a linguagem limitaria o gozo. Daí a idéia de Lacan de que o sujeito se constitui no próprio ato de representar-se na linguagem o que demanda uma escamoteação da dimensão do gozo, o que em Freud equivaleria ao recalque.

Bem, será que as teses freudo-lacanianas seriam os únicos meios para se pensar as relações entre o homem e a moralidade? A meu ver não. Elas não são sequer eficazes. Basta observar que a conclusão a que se chega ao final da apreciação crítica dessas teses é de que, de fato, é impossível ao sujeito humano ser saudável visto que Lacan, ao dar um estatuto estrutural à teoria freudiana, encampando a moral à linguagem, acabou por dizer que o ser humano é natural e eternamente dividido, ou seja, é neurótico por natureza e não por contingência. Assim, o mundo seria dividido entre os mais e os menos neuróticos.

E ainda há outro inconveniente nessa concepção. Tanto Freud quanto Lacan nem chegam a discutir se os princípios éticos e a moralidade, exemplificados nos dez mandamentos, são úteis para nossa vida. Para ambos, eles não possuem significação em si mesmos, servem apenas para impedir que os indivíduos ajam de determinada forma. O que significa dizer que, para eles, não há uma tentativa nos princípios morais de modificar os anseios das pessoas, mas tão-somente limitar suas ações. Portanto, cabe aos indivíduos unicamente a tarefa de submeter-se aos princípios e não compreender a importância deles.

Ora, será que Lacan foi tomar o exemplo dos dez mandamentos por acaso? Por que ele não usou, por exemplo, a orientação de Cristo para não revidar ofensas? Justamente porque os primeiros de fato são dados por Deus via Moisés sem nenhuma explicação aos israelitas sobre o porquê de segui-los. A razão era unicamente a de obedecer a Javé. Tanto é que se você não obedecesse a Lei, ou seja, se pecasse, era obrigado a realizar um determinado ato reparador, como oferendas, sacrifícios etc. Ou seja, a resposta para a pergunta: “Por que não posso matar?” era “Por que Deus disse que não.” Ora, em Jesus vemos uma dinâmica completamente distinta. Cristo não deixou nenhum princípio ético sem explicar as razões pelas quais as pessoas deveriam segui-los. Por exemplo, quanto ao princípio de não revidar ofensas, o Nazareno é enfático em dizer que se deve agir assim porque Deus não se vinga. Ele não dá chuva, sol, alimento só para aqueles que o agradam, mas também para os que o ofendem.

Os mandamentos de Cristo são todos inteligíveis, o que faz com que a pessoa que os segue, faça-o de coração e não como mera obrigação como acontecia com a Lei de Moisés. Os judeus não sentiam e não sentem a Lei como um conjunto de prescrições que lhes possibilita ter uma vida melhor. Pelo contrário, sentem-nas como um peso nas costas. Justamente porque essa Lei me diz para eu não matar aquele pagão miserável que adora Baal e pelo qual eu nutro dia após dia um ódio imenso; que eu não posso pegar a mulher do meu próximo pela qual eu nutro intenso desejo; que eu não posso deixar meu pai na miséria, o mesmo pai que violentou minha irmã quando criança. Ou seja, a Lei de Moisés vai na direção oposta à da natureza humana! Ela impede justamente aquilo que eu tenho mais vontade! Por quê? Porque ela não muda o entendimento, exatamente porque não há justificativas para segui-las a não ser obedecer ao temível Deus Javé.

Os mandamentos de Cristo não pressupõem que o sujeito a eles se submeta sem pensar. Pelo contrário, é por entender que ao segui-los, se terá vida e vida em abundância é que o sujeito os cumpre. E vejam só: não é que Winnicott nos apresenta uma concepção sobre o desenvolvimento da moralidade no indivíduo que vai de encontro justamente à ética cristã?

Muitos analistas de orientação estritamente freudiana ou lacaniana volta e meia questionam à ala winnicottiana do ringue psicanalítico o fato de na teoria de Winnicott a figura do pai ficar um tanto quanto apagada. Até nos textos em que Winnicott aborda a função do pai, ele o faz associando-a a um papel maternal. Essa aparente elisão do pai no discurso winnicottiano não se deu por acaso. Também não se trata de um possível descuido de Winnicott em enfatizar demasiadamente a mãe e subvalorizar o papel do pai no desenvolvimento da criança. É que Winnicott não opera com a diferença clássica que Lacan herdou de Freud entre uma suposta função da mãe como objeto primordial do sujeito e uma também suposta função do pai como responsável pela incidência da Lei, da castração na economia subjetiva da pessoa. Winnicott não trabalha com conceitos como Nome-do-Pai, essa pequena massa lingüística que, segundo Lacan, seria o eixo organizador de nossa dimensão simbólica.

Para Winnicott mãe e pai são elementos que devem exercer uma função que está para-além deles, qual seja, a de proporcionar um ambiente bom o suficiente para que a criança possa desenvolver suas potencialidades. Às vezes a figura da mãe aparece supervalorizada no pensamento de Winnicott não porque é apenas ela quem pode fazer o papel de um ambiente suficientemente bom, mas sim porque no contexto cultural ocidental contemporâneo herdeiro da família tradicional burguesa o pai tende a assumir um lugar de distância dos cuidados e do processo de desenvolvimento da criança, exercendo o papel apenas de provedor e do último recurso reivindicado pela mãe para a correção dos filhos, o famoso: “Vou contar para o seu pai quando ele chegar”. Nesse contexto, é natural que imaginariamente o pai seja tomado como o veículo da Lei, afinal ele funciona nesse regime familiar como o “supremo tribunal federal” para a mãe. Essa por sua vez, fica a cargo sozinha da tarefa de facilitar o desenvolvimento dos filhos. Obviamente essa situação vem se modificando há algumas décadas – e é ótimo que se modifique; os filhos agradecem! Cada vez mais, os pais vêm se conscientizando do seu papel por assim dizer “maternante”. No entanto, ainda vigora lado a lado com essa versão pós-moderna o modelo tradicional em que o pai surge unicamente “para botar as coisas nos eixos”, do jeitinho que Freud e Lacan pensavam…

Por que fiz toda essa digressão quando na verdade deveria estar falando da moralidade em Winnicott? Justamente porque essa concepção do analista inglês sobre as funções de pai e mãe faz toda a diferença quando vamos investigar como Winnicott entende o nascimento da moralidade no indivíduo. Se não há de um lado uma mãe afetuosa cuja função é apenas a de gerar fantasias edípicas e do outro um pai castrador, cuja função é apenas a de “botar ordem na casa”, temos que, para Winnicott, a moralidade não nasce a partir de uma intervenção regulatória de uma Lei transgeracional. Para o pediatra, quanto a isso a Lei é supérflua. Dá quase para colocar as palavras do apóstolo Paulo na carta aos Gálatas na boca de Winnicott: “Olha, essa coisa de Lei é para imaturos. Imaturos é quem precisam de um tutor para dizer a eles tudo o que elas devem fazer. Nós cristãos, amadurecemos. A fé em Deus nos basta para que não façamos o mal.”

Winnicott vai dizer, com outras palavras, o mesmo conteúdo só que ao falar de teoria do desenvolvimento individual e não de cristianismo. Mas a idéia é a mesma: a Lei só é necessária para quem não contou com um ambiente suficientemente bom! E mesmo assim a Lei não resolve as coisas. Pelo contrário: ela piora (e os exemplos que Winnicott dá são ótimos: crianças “agressivas, “rebeldes” etc. A punição, ou seja, o exercício da Lei, não funciona para elas; o que elas precisam é de um ambiente que as acolha, que as entenda e que ajudem a elas próprias a renunciar à agressividade.). A graça cristã pode ser compreendida, assim, por analogia, através do conceito de “ambiente suficientemente bom”.

Para Winnicott, herdeiro do pensamento de Melanie Klein, no início da vida todos nós convivemos imaginariamente com duas mães. Sim, DUAS mães: uma que nos faz muito feliz ao nos amamentar na hora em que sentimos fome, aquela que nos dá carinho, aconchego quando sentimos que as coisas vão mal, que nos dá calor quando a temperatura começa a cair, enfim, aquela mãe que está na hora certa no lugar certo fazendo a gente se sentir plenamente satisfeito – essa é a mãe boa. Mas também há a mãe má, protótipo das bruxas e madrastas dos contos de fada: é a mãe que não vem quando a gente chora de fome, aquela que às vezes não nos dá toda a segurança de que necessitamos no momento, a que nos deixa assando ao demorar em trocar as fraldas, enfim, é a mãe que falha, que não aparece na hora certa, que demora, que mete os pés pelas mãos às vezes. Obviamente, trata-se de DUAS mães apenas na cabecinha maniqueísta da criança. Na realidade, as duas mães são de fato dois aspectos de uma mesma mãe, justamente porque é existencialmente impossível que se possa ser uma mãe totalmente presente e satisfatória o tempo todo. Mas o bebê ainda não entende isso e a forma dele lidar com essa angústia é cindindo a mãe em duas: uma boa e outra má, da mesma forma como nós, às vezes, imaturamente pensamos que as coisas não estão indo bem porque Deus está nos castigando e que quando as coisas vão bem é porque estamos fazendo tudo o que Deus quer. O modelo dessa cisão entre um Deus que pune e um Deus que agracia está aí no precoce maniqueísmo infantil.

Acontece que há ainda outro complicador. Pelo fato de mãe e criança estarem, nos primeiros momentos da vida do bebê, em um estado que poderíamos descrever como de contigüidade psíquica, a famosa “simbiose” ou díade de Françoise Dolto, o bebê não consegue se reconhecer como constituindo uma existência separada e distinta da existência da mãe, de tal modo que o que ocorre do lado da mãe é imediatamente repercutido do lado da criança. Portanto, se o bebê imagina existirem uma mãe boa e outra má, logo existirão um eu bom e outro mau. Essa correspondência entre os campos da mãe e do bebê se dá através dos mecanismos psíquicos que Melanie Klein tão brilhantemente descreveu, a saber a introjeção e projeção: a criança, ao mesmo tempo em que se reconhece a partir de características extraídas da mãe/ambiente, também expele para fora de si determinados atributos passando a reconhecê-los como sendo próprios da mãe. Há, portanto, um intercâmbio de representações e sentimentos contínuo entre mãe e bebê sem que as fronteiras entre um lado e outro sejam delimitáveis.

Ocorre, no entanto, que todos nós possuímos uma tendência inata para a integração, isto é, uma potencialidade a reconhecermos nossa identidade como algo inteiro, total, ainda que apresentando aspectos conflitantes. É a realização dessa tendência que faz com que possamos nos reconhecer como uma mesma pessoa ao longo do tempo. Quando as condições ambientais não são favoráveis a que tal potencialidade se efetive, surgem problemas da ordem da identidade como os famosos casos de psicose em que o sujeito possui o que se chama de “múltiplas personalidades” sem um eixo que as organize.

Para que a tendência à integração se torne ato, como já dissemos, faz-se necessário um ambiente suficientemente bom, o que, em termos práticos significa um ambiente que proporcione um mínimo de estabilidade de maneira a partir que o bebê reconheça que o “eu bom” e o “eu mau” são de fato um único eu. O que resulta dessa síntese operada dentro de um ambiente minimamente bom é o sentimento de responsabilidade que descrevemos no último post dessa série associando-o ao arrependimento cristão. O bebê percebe que as “más ações” vêm dele mesmo e não de outro eu.

Não obstante, como já vimos, nessa fase em que o bebê depende quase que absolutamente da presença da mãe, tudo o que ocorre do lado do bebê, apresenta uma correspondência, na vida imaginativa da criança, do lado da mãe. Assim, se há uma síntese do eu bom e do eu mau do bebê, haverá também, para a criança, uma síntese entre a mãe boa e a mãe má! E, vejam é justamente essa última síntese que, para Winnicott, marca o nascimento da moralidade no ser humano. Por quê? Porque a partir do momento em que a criança começa a reconhecer que a mãe má é a mesma pessoa que a mãe boa, ela se conscientiza de que todos os pensamentos, fantasias e ações agressivas dirigidas contra a mãe má, que frustra, que falha, eram também dirigidas contra a mãe boa, que gratifica, que alimenta, que dá carinho! Essa consciência, esse insight é um acontecimento de grandes proporções no psiquismo da criança, pois o primeiro sentimento que ele gera é o de culpa, afinal o bebê começa a perceber que estava agindo e desejando mal para aquele ser que ele mais amava! Melanie Klein, ao reconhecer a força do impacto dessa consciência na mente da criança, chamou a fase em que a criança tem essa constatação de “posição depressiva”, pois para a psicanalista o sentimento de culpa geraria um estado deprimido perene que, nos casos de melancolia (depressão) estaria exacerbado, mas que em todas as pessoas persistiria em maior ou menor grau em estado latente. Ou seja, para Melanie Klein, seguindo Freud, todos nós estaríamos condenados ao fado de carregar uma culpa latente que, por sua vez, geraria uma constante depressão também latente!

Winnicott não pensava assim. Para ele havia solução para o sentimento de culpa e a posição depressiva. E essa solução não passava, como queriam Freud e Lacan, pela incidência da Lei na subjetividade. Para o psicanalista inglês, nós nos livramos da culpa por termos ultrajado nosso maior objeto de amor, apenas pela consciência de termos feito mal a quem amamos. Parece tautológico, redundante, mas não é, pois a compreensão desse processo muda todo nosso entendimento da moralidade. No esquema tradicional freudiano, nós abdicaríamos de fazer o mal apenas para não sermos punidos pela Lei. Já em Winnicott, nós deixaríamos de fazer o mal por termos nos conscientizado de que, em primeiro lugar, ao fazermos o mal estamos agredindo a quem amamos e, em segundo lugar, que nós também temos o mal em nós (síntese entre o “eu bom” e o “eu mau”).

Ora, não é exatamente essa compreensão ética que Jesus nos traz em oposição à Lei judaica? Ele diz: “Olha, você não devem fazer o mau a seu irmão não porque a Lei proíbe mas porque seu irmão também é filho de Deus e Deus não deixa de fazer o bem a ele em nenhum momento não obstante ele aja mau.” E também através do mandamento “Faça aos outros o que você quer que façam a você”. Ao reconhecer que o “eu bom” e o “eu mau” são uma mesma pessoa, o bebê percebe que também é capaz de fazer o mal. Obviamente, ele não vai querer que lhe revidem o mal que fez. Assim, do mesmo modo, não irá retribuir ao ambiente o mal que esse possa ter feito. Além disso, ao reconhecer que a mãe boa e a má são uma única e mesma mãe, o bebê não mais a agredirá, não por obediência ao mandamento “Não matarás”, mas por compreender que ao agredir a mãe má ele está agredindo também a mãe boa. Assim também, o cristão não faz mau ao próximo por reconhecer que o próximo por pior que seja é tanto quanto ele próprio amado por Deus, de tal modo que se ele agride o próximo, por tabela ele está agredindo a Deus, justamente Aquele a quem mais ama. Da mesma forma, o cristão não julga o próximo pelo fato de reconhecer que ele próprio não é inimputável, por reconhecer que traz as potencialidades do pecado do próximo em si.

Winnicott nos fornece, portanto, com sua teoria do desenvolvimento da moralidade no homem a partir do relacionamento da criança com a mãe/ambiente, um modelo teórico que nos auxilia a compreender a ética cristã, o modo como o cristão lida com dilemas morais. Jesus bate o martelo e diz: “Olha, não importa o que dizem os outros mandamentos. Se vocês observar apenas esse: ‘Amarás a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo’ você não precisam mais observar nenhuma regra”. Agora substitua o termo Deus por mãe e você terá nesse único mandamento de Cristo toda a teoria do desenvolvimento da moralidade de Winnicott. O bebê, no estado de dependência absoluta, não só ama como tem a necessidade de amar a mãe sobre todas as coisas pela simples razão de que, naquele momento, a mãe é, de fato, TODAS AS COISAS para o bebê. Quem dera se nós agíssemos para com Deus como o bebê age para com a mãe, tendo-a como essencial para sua sobrevivência, sabendo que vive nela, com ela e para ela. Além disso, o bebê, como no mandamento, ama à mãe como ele mesmo justamente por reconhecer que não há diferença entre ele e a mãe. A partir do momento em que reconhecemos que entre nós e o próximo não há nenhuma diferença aos olhos de Deus, que independente do que ele ou nós façamos, todos estão marcados pela potencialidade do mal, do pecado e que todos são alvo da graça de Deus, que faz a chuva cair “sobre justos e injustos”, nós não fazemos o mal ao próximo, pois, com efeito, “com a mesma medida que julgardes sereis julgados e aqueles que tiverem misericórdia, alcançarão misericórdia”.

Certamente, muitos de vocês podem se perguntar “Mas por que Freud não pensava assim? Por que ele insistia na necessidade do superego e da lei (interpretação lacaniana)?”. Eu tenho uma hipótese: Freud não pensava assim porque era judeu, e porque como judeu, mesmo renegando a fé, ele não conseguia entender a novidade cristã. Por isso, ele não concebia que a moralidade pudesse advir desse processo de metanóia, de renovação do entendimento que o bebê experimenta no desenvolvimento e o cristão na conversão. Freud, como judeu, pensava como judeu, ou seja, que para que façamos o bem se faz necessária uma Lei que nos diga o que é o bem e como fazê-lo. Ora, não é exatamente isso o que fez Moisés ao proclamar para o povo a Lei?

O que faremos então? Ignoraremos Freud, reconhecendo-o como tendo uma concepção de moralidade caduca? De forma alguma! A concepção de Freud será sempre atual – e para a grande maioria das pessoas. Ela só não explica a ética cristã, o modo como os cristãos lidam com o problema da ética. No entanto, ela explica como todo o resto do mundo lida. Por que todo o resto do mundo só não faz o mal por obediência a leis. E não estou falando apenas da lei judaica ou das leis e códigos civis de direito. Estou falando também de leis filosóficas, sociológicas, políticas, religiosas. Tem gente que não faz o mal porque segue a ética de Aristóteles ou de Kant. Isso significa que a ética dessa pessoa está apartada da Lei? De maneira nenhuma. Ele só está seguindo uma lei diferente: a lei de Kant ou Aristóteles. É só a ética de Jesus de Nazaré a que traz uma libertação de fato de qualquer tipo de Lei. E a minha tese é de que a teoria winnicottiana nos oferece um modelo teórico de entendimento, uma analogia bastante útil para compreendermos essa libertação.

Mas Freud continua valendo para todos os não-cristãos. E é por isso que a psicanálise ainda faz sucesso e nunca será extinta. E é também por isso que a análise não funciona e é completamente desnecessária para um cristão efetivamente convertido. Mas quantos há que ainda não o são…

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Winnicott e o cristianismo II – o sentimento de continuidade do ser e a Redenção

Um dos critérios que definem um bom texto é a preocupação do autor em fornecer ao leitor todos os pressupostos e postulados que fundamentam a argumentação que será desenvolvida ao longo de seu escrito. É exatamente isso o que vou procurar fazer nesses primeiros parágrafos para que você, caro leitor deste blog, possa saber o ponto de partida de minhas demonstrações.

Por exemplo, falarei aqui de aspectos essenciais do pensamento essenciais do pensamento de D. W. Winnicott. Todavia, para que eles sejam apreciados em toda a sua amplitude e você possa compreender as analogias que farei com o cristianismo, é preciso explicitar o que os postulados de Winnicott significaram para o todo da teoria psicanalítica.

Winnicott, em seu humilde respeito ao pioneirismo de Freud, inicialmente pretendia apenas preencher algumas lacunas do saber psicanalítico com alguns dos conhecimentos que ele extraiu da sua experiência de pediatra com bebês. De fato, nem Freud nem a maior parte dos analistas daquela época possuía tal experiência. Assim, Winnicott dizia que o cerne da teoria de Freud estava na idéia de conflitos intrapsíquicos derivados do relacionamento do sujeito com seus objetos (pessoas), sendo o complexo de Édipo a matriz desse relacionamento. No entanto, para Winnicott, Freud já tomava como dado que o sujeito existia. Nas suas análises de neuroses infantis a partir de neuroses adultas, como no caso do Homem dos Lobos, Freud já dava como pressuposto que a criança se reconhecia como pessoa, sabia diferenciar seu mundo interno do mundo externo e se relacionar com pessoas vistas como pessoas inteiras (não-fragmentadas).

A tarefa da qual Winnicott vai se encarregar é justamente a de mostrar que até chegar a esse estágio (que Freud já dava como estabelecido) houve todo um processo; e que esse processo, para ser bem sucedido, dependia de condições externas, mais especificamente de um ambiente que fosse bom o bastante para facilitá-lo. Assim, Winnicott vai desenvolver suas teses no sentido de evidenciar a trajetória trilhada pelo bebê (com sua mãe) até reconhecer-se como uma pessoa. É aí que a teoria de Winnicott perderá o mero estatuto de complemento da teoria psicanalítica e passará a constituir uma verdadeira revolução paradigmática no interior da Psicanálise. É que Winnicott dirá que a maior tarefa da mãe/ambiente durante os momentos iniciais da vida da criança, é auxiliá-la a manter o sentimento de continuidade do ser. É difícil para nós, adultos, compreendermos tal sentimento, porque nós não nos lembramos mais da extrema confusão em que estávamos imersos no início de nossa vida. Hoje não temos dúvida, ao acordarmos, de que somos a mesma pessoa que dormiu. O bebê não. Ele ainda não conta com esse eixo que agrupa e organiza as sensações. É aí que entra o ambiente. Se o ambiente for bom o suficiente, ele permitirá ao bebê reconhecer-se como uma única pessoa, embora experimente diferentes sensações e aja diferencialmente. Além disso, o sentimento de continuidade do ser tem um aspecto mais profundo que foi justamente o ponto de partida da mudança paradigmática de Winnicott: é o problema da identidade. Quando o ambiente não auxilia o bebê a sentir-se como existindo em meio ao fluxo da vida, isto é, quando o ambiente permite que o fluxo da vida, isto é, a fome, as idas e vindas da mãe, etc. sejam tão fortes ao ponto de fazer com que o bebê se sinta a ponto de ser aniquilado, esse, não vendo saída, passa a se identificar com o próprio fluxo da vida com vistas a permanecer existindo (“Se não pode com eles, junte-se a eles”). Assim, ele tenta manter o sentimento de continuidade do ser à custa de seu próprio ser, na medida em que deixa de ser si próprio para se identificar com o fluxo da vida.

Por que isso significou uma mudança paradigmática na psicanálise? Porque até então, os analistas trabalhavam tendo como paradigma interpretativo do sujeito o modelo freudiano de aparelho psíquico. Ora, Freud considerava que a principal função do psiquismo era o tratamento das excitações vindas do mundo externo e interno. Tal tratamento era feito através dos mecanismos de defesa: recalque, projeção, formação reativa, sublimação, etc. Ou seja, para Freud, a tarefa humana par excellence era lidar com as excitações, mais especificamente com a pulsão, visto que há meios não-psicológicos de combater as excitações externas. É evidente que há uma herança judia nessa formulação freudiana. Afinal, não são os judeus que, não querendo contar com a graça de Cristo, ainda vivem sob a Lei, a qual não faz nada mais que detectar, prevenir e expiar os pecados? O mesmo que faz o aparelho psíquico com a pulsão?

Para Winnicott, no entanto, a principal tarefa do ser humano é conseguir manter o sentimento de continuidade da existência. E é só com a elaboração desse sentimento em um ambiente suficientemente bom que o sujeito poderá vivenciar de forma saudável os conflitos interpessoais e lidar com a pulsão não como algo perigoso, ameaçador, pecaminoso, mas como uma fonte de vida, como algo que o impulsiona.

Será que não é algo análogo o que a graça de Cristo opera no cristão? Pois, ao experimentar o perdão dos pecados, o crente passa a não mais temer o pecado, como o judeu, pois o pecado, em Cristo, perdeu o seu poder destrutivo, qual seja, o poder de envenenar a alma e fazer com que o sujeito não mais se reconheça como alguém criado à imagem e semelhança de Deus. Ou seja, tal como a pulsão não é vista como algo potencialmente aniquilador para quem elaborou seu sentimento de continuidade do ser num ambiente suficientemente bom, assim também o pecado não é mais visto pelo cristão como um monstro, pois o seu ser foi resgatado por Cristo. O grande dilema de quem não aceita a graça de Cristo é que ele não conta com um Redentor. Assim, todo pecado permanece fonte de morte, pois, como diz o apóstolo Paulo, “o salário do pecado é a morte”. O cristão, pelo contrário, caminha seguro, pois sabe que se cair terá Quem o levante. Em outras palavras, se pecar terá Quem o perdoe. Não que ele queira pecar ou tenha deleite nisso. Mas ele pode pecar, pois não se desesperará por isso. Afinal, esperança é o que não lhe falta…

Assim, a energia do pecado que escravizava o homem, passa a servir como força propulsora de amor a Deus. Na carta aos Romanos, Paulo diz: “Nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de iniqüidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça.”

Compreendemos, portanto, que, assim como para Winnicott, para o cristão a questão primordial da vida é o ser. E é só quando o meu ser foi roubado de mim, pelo ambiente insuficiente ou pelo diabo, é que eu encaro a pulsão ou o pecado como potencialmente aniquiladores. No entanto, quando há um Redentor que resgata meu ser e me faz sentir seguro tal como a mãe suficientemente boa com seu bebê, eu posso lidar com o pecado sem medo, convertendo a força que outrora me prendia a ele, em energia que me leva a viver plenamente (cf. “Eu lhes darei vida, e vida em abundância”).

Agora vem a pergunta: como é que posso ter a certeza de que meu ser foi resgatado? Ou: o que faz com que esse sentimento de continuidade do ser não seja abalado pelas vicissitudes da vida? No próximo post veremos finalmente as analogias entre a fé e a confiança no ambiente.

O amor como afeto e o amor como ação: Freud com Winnicott (parte 1)

Há cerca de uma semana atrás, caiu-me nas mãos uma obra cuja leitura muitos dos que me conhecem e até eu mesmo há duas semanas não recomendaria sequer como companhia para as noites de revolução intestinal, em que nos transformamos dum salto em reis. Trata-se de um best-seller traduzido para diversas línguas e lido por alguns dos maiores empresários do mundo: “O Monge e o Executivo: uma História sobre a Essência da Liderança” da autoria do administrador de empresas James Hunter. É bom que se diga que as razões de minha não-indicação à leitura do livro não eram de fato razões, uma vez que não se fundavam nem em uma mera leitura rápida do texto, mas apenas na temática geral da obra: a tal liderança, assunto que geralmente se encontra no rol dos tópicos trabalhados nos chamados “treinamentos” de psicólogos organizacionais ou administradores de empresas, o cúmulo da mediocridade intelectual em minha opinião. Além disso, o opúsculo era catalogado nas livrarias juntamente com escritos chamados comumente de “auto-ajuda”, cuja ineficácia foi tão bem comentada em um post recente pelo amigo e psicólogo behaviorista Igor Madeira.

Nota-se, portanto, que minha não-recomendação se baseava unicamente em preconceitos. Esses, como bem se sabe, podem tornar-se conceitos se seu conteúdo for efetivamente confirmado após um empreendimento analítico ou empírico, ou refutados caso tal confirmação não ocorra. Foi essa última possibilidade a que se concretizou a partir de minha leitura de “O Monge e o Executivo”. A princípio relutante, devorei o livro em uma semana tão clara era a articulação das idéias do autor e tão saborosa sua originalidade. Não vou me deter aqui nos diversos aspectos que me fizeram considerar a obra de boa qualidade, mas apenas em um ponto em que o autor me fez pensar em alguns vínculos com a teoria psicanalítica.

Em determinado momento, Hunter, inspirado pelos Evangelhos, discute a importância do mandamento do amor cristão expresso em máximas como “ama ao próximo como a ti mesmo” e “ama a teu inimigo” para o bom exercício da liderança. Segundo ele, o cristianismo radicaliza uma concepção de amor que encontra suas raízes no vocábulo grego “ágape” – uma das quatro acepções do amor na língua grega; as demais, como muita gente sabe, são storge (geralmente associado à amizade), filos (o amor que faz o bem, altruísta) e eros (amor da paixão romântica, relacionado também à sensualidade e ao sexo).

Tal concepção de amor distinta da habitual está relacionada muito mais ao campo da ação do que do afeto. Tradicionalmente tendemos a ver o amor como um sentimento derivado de uma relação com outra pessoa, coisa, animal etc. Sentimos amor por nossas esposas, maridos, amigos, bichos de estimação, casas. É uma visão do amor como algo que nos afeta e que, portanto, não nasce de uma escolha ou de um engajamento subjetivo. O modelo paradigmático desse ponto de vista é o arrebatamento experimentado pelo sujeito ao se apaixonar. Essa pequena loucura da qual nenhum exemplar da espécie escapa foi sempre ilustrada pela tradição como resultado de um encantamento proveniente de fora, haja vista a célebre imagem de Cupido jogando suas flechas.

O que James Hunter propõe, e que em sua esteira discutirei com a ajuda de dois autores da psicanálise, é que essa é apenas uma das facetas do amor, que não é a mesma do amor ágape (ou caritas) cristão. Esse se constitui na verdade em um comportamento, em uma ação e não em um afeto. É por isso que é difícil para muitos compreender o mandamento de Jesus de amar também aos inimigos, pois está para-além dos limites do ser humano não sentir ódio de quem lhe maltrata, lhe faz mal. Isso está no plano do necessário e Jesus sabia disso, pois também se fez humano e passou por todas as intempéries experimentadas pelos filhos de Adão. O que Ele propõe, no entanto, é que, não obstante o ódio, amemos, pois esse tipo de amor (ágape/caritas) não está no mesmo nível nem do ódio originado pelo maltrato do outro nem do amor sentido por quem nos agrada; está no nível da vontade, do engajamento, da deliberação enfim. É por isso que Jesus, ao enunciar o mandamento, o contrapõe à prescrição judaica de “Odiar os inimigos”. Ora, odiar o inimigo não seria o sentimento que tenho após o mesmo proferir-me um insulto? Não. Esse ódio sentido é um afeto e, como tal, desencadeado pelas circunstâncias, sem passar pelo plano da vontade. O “odiar” de que Jesus fala é o comportamento que utiliza o ódio como motivo, ou seja, no nosso exemplo, revidar o insulto ou se vingar de outra forma do inimigo. Essa ação, sim, passa no nível da vontade e da deliberação, pois posso escolher insultar ou não, mas não posso escolher sentir ódio ou não.

Assim, amor no sentido cristão, expresso pela palavra grega ágape é uma ação cujo paradigma maior é o acolhimento, uma atitude de total aceitação do outro como ele é em todas as suas idiossincrasias, mesmo quando essas me provocam ódio e me fazem não gostar do outro, ou, nas palavras do apóstolo Paulo, “o que tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (Cf. 1Cor 13).

Vê-se bem, portanto, que amar é completamente distinto de gostar, não pelo fato do primeiro ser mais “profundo” que o segundo, mas pelo fato de que gostar é simplesmente o prazer – portanto afeto – que sinto por alguém cuja companhia me traz uma satisfação narcísica: gosto de quem me faz bem ou como dizem alguns, “gosto de quem gosta de mim”. Já o amor implica num ultrapassamento do narcisismo. Como veremos, Freud (e também Lacan) conseguiu vislumbrar apenas a primeira faceta do amor, o amor como afeto, daí sua visão particularmente pessimista do fenômeno amoroso e sua ênfase no eros. O teórico que, a meu ver, apresentou teses que possibilitam pensar o amor ágape/caritas em ternos analíticos foi Winnicott. No próximo post faremos falar os dois autores.

As teses freudianas e a revelação cristã

A meu ver, é possível compreender as teses freudianas à luz da revelação cristã. O que Freud faz é descrever a vida daquele que o apóstolo Paulo chama de “homem velho”, homem que segundo o próprio apóstolo dos gentios é ainda prisioneiro dos “instintos egoístas”. Ora, o que seriam tais “instintos” senão a pulsão sexual de que fala Freud? Pois, para o pai da Psicanálise, a pulsão não possui um objeto pré-determinado, fixo. A única coisa que pode se dizer certa na pulsão é o que ela visa: a satisfação. A busca pelo apaziguamento do acúmulo gerado pela excitação pulsional é o elemento comum a todas as vicissitudes da pulsão. Foi também para a satisfação e o gozo do mundo que Deus chamou o homem à existência (Cf. Gn 1, 26: “Então Deus disse: ‘Façamos o homem a nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra.’”). É possível, então, pensar na hipótese de que enquanto o homem vivia na presença de Deus, em comunhão com ele – o que a Bíblia figurativamente narra como sendo a estada de Adão e Eva no paraíso – a pulsão não existia no homem, pois o próprio Deus era o objeto fixo e pré-determinado para o ser humano. A pulsão passa a existir justamente quando, por influência do diabo, o homem passa a se ver como distante de Deus e, por conseguinte, como menor do que Ele, pois é nisso que consiste a afirmativa da serpente de que ao comer do fruto da árvore do Bem e do Mal, homem e mulher se tornariam COMO deuses.

Para sustentar essa asserção, o demônio tem de lançar mão de duas premissas essenciais: a primeira é a de que o ser humano não é Deus. Essa postulação, por mais óbvia que seja, só adquire seu valor de uma humilde verdade, se for acompanhada de uma outra: a de que embora não sendo Deus, não estamos distantes dele. O diabo, não obstante, agrega a essa primeira premissa a idéia de que ser humano é ruim e que ser Deus é que é bom. Agindo assim, institui no coração do homem aquela que é a mãe de todas as invejas: a inveja da condição divina e, com ela, o primeiro reconhecimento da insatisfação. Até seu encontro com a serpente, o homem não se sentia insatisfeito, ou melhor, logo que os primeiros sinais de insatisfação brotaram em seu coração, Deus logo tratou de criar-lhe uma companheira. E esse estado de plena satisfação do homem não ocorria em função de uma possível cegueira humana para o que lhe faltava. É que a total comunhão com os desígnios de Deus lhe era suficiente (Cf. Gn 1, 31: “Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom”). Essa abertura promovida pelo diabo entre aquilo que o homem é e o que ele poderia ser é o que os psicanalistas chamam de hiância, falta, furo, etc. Vejam bem que essa hiância não nasce com o homem, mas é fruto da influência diabólica que induz o homem a se reconhecer como não pertencente à comunhão com Deus e, pelo contrário, querer se tornar como ele. Essa etapa, coincidentemente, é contemporânea do nascimento do ego no homem. Ora, Freud intuiu muito bem que o ego não é nada mais que a estrutura mental que condensa os ideais de totalidade e perfeição que o sujeito não aufere na realidade. No mito do Gênesis, a representação do ego é justamente a idéia de ser como Deus. O grande logro do demônio é fazer com que o homem vá buscar no fruto da árvore do Bem e do Mal, aquilo que ele já possui, pois qual não seria a maior perfeição do que permanecer no amor Daquele que o criou, isto é, ser Um com Ele?

Percebam também que a falta, a hiância, não surgem em função da incidência da Lei como pensaram alguns freudianos mais apressados. Até porque, no mito bíblico, até então não havia Lei. Pode-se até pensar no mandamento divino de não comer do fruto da árvore do Bem e do Mal como uma Lei, mas ela só adquire esse sentido a partir do discurso da serpente que mente acerca das conseqüências de sua transgressão. O aspecto essencial, portanto, para o advento da falta é a perspectiva de uma condição melhor. Isso adquire maior relevância tendo em vista que a constatação do homem como faltoso servirá a muitos filósofos e teólogos como atestado da existência de Deus, pois se o homem se vê como incompleto, é sinal de que ele concebe a possibilidade de ser completo, que corresponderia à idéia de Deus que, assim, não seria apenas uma idéia.

Assim, quando o homem, por influência do demônio, promove a abertura de uma distância entre seu estado real e um estado ideal, entre ele e Deus, todas as suas tendências que encontravam satisfação no Criador e no mundo por ele criado passam a ficar à deriva, pois nada disso mais satisfaz. Eis o nascimento da pulsão. A partir de então, ou seja, ao se afastar da presença de Deus, o homem passará a se ver às voltas com a terrível sensação de estar insatisfeito (Cf. Agostinho, Confissões, I, 1, 1: “Criastes-nos para Vós, e o nosso coração está inquieto, enquanto não descansa em Vós”) e de constantemente estar tentado a buscar satisfação nos objetos nos quais originalmente não deveria buscar, quais sejam, todos aqueles que a lei mosaica no Pentateuco interdita: animais, familiares, pessoas do mesmo sexo, etc. Como diz Paulo, a lei sistematizada por Moisés é uma manifestação patente do amor de Deus para com o homem, pois mesmo sabendo que o ser humano deixou voluntariamente de estar em comunhão com ele, Deus lhe dá um conjunto de prescrições para que mesmo estando fora de sua presença, ele possa caminhar de acordo com seus desígnios e viver uma vida feliz – é por isso que Paulo compara a Lei a um pedagogo.

O diabo, no entanto, aproveitou a existência da Lei para manifestar suas duas facetas: a de tentador (que já havia sido vislumbrada no princípio) e a de acusador. A de tentador é óbvia. Já a de acusador é análoga ao nascimento do superego, como já havia dito há dois posts atrás. O superego não existe para gerar responsabilidade, ele existe para eliciar o sentimento de culpa, para fazer com que o sujeito se martirize por ter transgredido a Lei. Como até o nascimento do Messias ainda não havia o Advogado (Paráclito), o diabo triunfava, subvertendo a utilidade da lei, como o próprio Paulo diz em uma de suas cartas. A entrada em cena de Jesus representa um passo decisivo nessa dinâmica, porque a fé em Cristo torna a lei mosaica desnecessária porque Jesus veio manifestar com sua morte a vontade do Pai de se reconciliar com o homem, isto é, de restaurar a comunhão que havia sido rompida lá no Gênesis, por influência do demônio. E o mais interessante é que Deus faz isso reconhecendo que após a saída de sua presença o homem se tornou falho e, portanto, não tem condições de, por sua própria força, alcançar novamente a comunhão com Ele. Por isso, Deus vem em socorro do homem não mais com um novo código de normas, pois Ele já viu que a lei acaba servindo para que o demônio escravize o homem. O Pai, enviando seu Filho como sacrifício para o perdão dos pecados, liberta o homem do pecado. Isso significa que o homem não vai mais pecar? Claro que não! Significa que ele já não é mais uma criança que precisa de um rígido conjunto de normas para evitar o pecado, pois esse passa a ser um acidente de percurso – perene, obviamente, mas que não precisa mais ser temido, pois há um Deus que perdoa.

Perceberam que nesse último parágrafo eu falei apenas de religião, sem nenhuma analogia com a teoria psicanalítica? Não é coincidência. É que Freud, de fato, não alcançou a novidade cristã, justamente porque, sendo judeu, ele sabia descrever perfeitamente bem a relação do homem com a Lei e o pecado, ou seja, a dinâmica de vida do homem velho paulino, mas não a do homem novo renascido em Cristo. Talvez a maior realização não só de Freud, mas de toda a Psicanálise, foi ter descoberto que há um judeu escondido em todos os homens.

Voltando ao assunto, para que a comunhão com Deus seja restabelecida, é preciso que o homem, em contrapartida ao amor de Deus, institua um novo destino para a pulsão: tomar Deus como único objeto e o amor a Ele e ao próximo como únicas finalidades. Sim, ao próximo, porque o rebaixamento divino em Jesus trouxe o Deus de volta à imanência (Cf. Mt 25, 40: “Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.”. A partir de então, Deus não está mais distante do homem, mas se personifica em cada pessoa com a qual nos relacionamos. Esse novo destino da pulsão demanda um recolhimento de investimento libidinal de todas as outras coisas – é o que Jesus chamava de abandono do mundo. E é aí que a conversão beira a psicose, pois o que ocorre nessa psicopatologia, para Freud, é justamente o desligamento libidinal dos objetos e a introversão da libido para o ego. A diferença é que no caso da conversão, a libido se dirige para o Cristo e não para o eu. No entanto, se pensarmos como Agostinho, que concebia que Deus estava presente dentro do homem e, portanto, o afastamento de Deus implicaria um afastamento de si mesmo (Cf. Confissões, III, 6, 11: “De fato, tu estavas dentro de mim mais que o meu íntimo e acima da minha parte mais alta”), a distinção entre psicose e conversão deixa de existir. O próprio apóstolo Paulo ignora qualquer diferença (Cf. 1Co 1, 18: “Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.”; 1Co 1, 21: “Visto como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação.”; 1Co 1, 23: “Mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos.”)

Só para fazer mais uma analogia com a Psicanálise, quando Freud elabora a noção de pulsão de morte e com ela a idéia de que o prazer não basta para o homem, que ele busca uma satisfação que vai mais além, Freud sem saber intuiu uma realidade espiritual. Pelo fato do homem um dia ter estado ligado plenamente a Deus, ao buscar se satisfazer através da pulsão com os objetos ilícitos do mundo (na linguagem freudiana, os objetos parciais), o homem procurará repetir aquela plenitude primeira e invariavelmente fracassará. No entanto, como o pecado produz prazer, o homem insistirá nele pensando que poderá, na repetição, alcançar a satisfação pretendida – eis a compulsão à repetição de Freud.

É evidente que as analogias feitas neste texto possuem pouco rigor teológico e suas limitações são bastante claras: são apenas tentativas de estabelecer continuidades entre uma teoria bastante eficaz da condição humana e a verdade sobre tal condição e a relação do homem com Deus. Penso ser lícito tal empreendimento uma vez que muitos pais da igreja, de forma semelhante, fizeram uso de sistemas filosóficos como o aristotelismo e o platonismo como ilustração de suas teses teológicas. A meu ver, Freud evidenciou toda sua genialidade ao destrinchar a vida psicológica do homem que ainda não alcançou a fé cristã.