Continuando nossa discussão do post anterior a respeito das duas facetas do amor, a saber, como afeto e como ação, traremos à baila agora dois teóricos cujos apontamentos conceituais permitem pensar nessas duas dimensões do amor dentro da teoria psicanalítica. São eles: Freud e Winnicott.
Todo aquele que já deu pelo menos uma lida rápida em qualquer livro de introdução à psicanálise, sabe que por conta de suas descobertas na clínica, Freud estabeleceu uma hipótese preliminar de trabalho segundo a qual todas as ações humanas em que o psiquismo estivesse envolvido teriam como pano de fundo a busca pela satisfação sexual. Mais tarde, a partir de 1920, com a introdução do conceito de pulsão de morte, Freud reviu um pouco tal concepção, mas em linhas gerais, permaneceu a idéia de que não só os sintomas neuróticos, como os sonhos, os atos falhos, os mitos, os contos de fada e todo tipo de construção cultural serviriam como formas de tratar a sexualidade recalcada.
Um corolário dessa hipótese geral é que também as relações entre os seres humanos se estabelecem sob o manancial da sexualidade recalcada. Tanto é assim que em determinado ponto de sua obra, Freud chega a dizer que em todo relacionamento, seja ele entre amigos, entre aluno e professor, entre pais e filhos, enfim, em todos os tipos de relacionamento, uma pessoa toma a outra como objeto sexual. Obviamente, Freud não está dizendo que todas as relações implicam em um envolvimento erótico patente, o que poderia ser refutado a olho nu. O que o pai da psicanálise afirma é que o inconsciente (ou o id, na segunda tópica) não tipos de relacionamento. A tarefa de distinguir entre um relacionamento entre pai e filho de um relacionamento entre namorado e namorada é função do ego. Para o inconsciente, a outra pessoa envolvida na relação não passa de mais um objeto sobre o qual é possível uma descarga parcial de excitação sexual. Digo parcial porque, na medida em que a descarga não ocorre pelas vias originárias, ou seja, através de uma relação sexual propriamente dita, diz-se que a pulsão foi inibida em seu objetivo. Assim, num relacionamento entre um filho e seu pai, como a satisfação não poderia ser alcançada pelas vias “normais” em função do fato de que isso constituiria uma relação homossexual e, principalmente, porque a cultura não admite relacionamentos dessa natureza entre pai e filho, então no lugar da excitação sexual surgiriam os sentimentos ternos e filiais entre pai e filho.
Vê-se, portanto, que Freud toma todas as espécies de amor sob a égide de eros. Tanto filos quanto storge são apenas formas inibidas de eros. E o mais interessante é que não há lugar para o amor caritas/ágape em Freud. Isso porque, tendo como base a lógica freudiana, um tipo de amor que tolerasse aquele que faz mal ao sujeito só poderia ser concebido como masoquismo. Nesse caso, o sujeito fruiria satisfação sexual da dor e do desprezo, ou seja, eros continuaria vigente. Em outra situação, não sendo o sujeito um masoquista, passaria ele a odiar o objeto que lhe fez mal, que não lhe permitiu sequer a satisfação sexual inibida – o amor nesse caso se converteria em como reação a uma frustração.
Essa dificuldade do velho Freud em conseguir dar conta conceitualmente do amor agape/caritas está relacionado à sua insistência em pensar as relações humanas apenas como relações objetais. Winnicott ultrapassará a Freud nesse sentido ao propor o conceito de “mãe ambiente” como complementar à mãe como objeto em Freud.
Para Freud, desde o início da vida, a mãe se configuraria para o bebê como um mero objeto sexual, o primeiro e que, portanto, serviria de protótipo para a busca dos demais. As duas funções principais da mãe para com o bebê em Freud seriam: saciar o bebê tanto no que diz respeito a suas necessidades fisiológicas quanto no que concerne a suas necessidades sexuais.
Winnicott, a partir de sua experiência clínica com bebês (experiência que Freud não tinha), vai dizer: “Tá, eu entendo que o bebê possa tomar a mãe como objeto sexual, afinal ela lhe dá prazer, mas será que a mãe só serve para isso ? Será que ela não contribui em nada para a formação do bebê enquanto ser?” A resposta, óbvia, de Winnicott será “não”. Para ele, que era um pediatra e sabia que a mãe era essencial na formação do bebê, era simples perceber que a ela não funcionava apenas como objeto sexual, mas também como o ambiente necessário para que o bebê pudesse desenvolver suas potencialidades. Seria impossível a qualquer um de nós nos organizarmos enquanto pessoas se não tivéssemos contado com um ambiente que nos fornecesse sustentação quando éramos bebês.
Mas o que será que significa realmente sustentação e por que estamos falando disso num texto referente ao amor?
É que sustentar significa não só possibilitar que alguém possa ficar de pé. Sustentar implica em permitir que esse alguém caia, visto que haverá quem o segure. E é exatamente assim que a mãe age para com o bebê. Basta observarmos uma cena bastante comum em que uma criança está começando a andar e, de repente, vacila e cai. Logo vem a mãe e a segura novamente, permitindo que ela continue sua caminhada.
Além desse, há um outro aspecto um pouco mais obscuro, mais discernível a partir da análise, que Winnicott descobriu em seus tratamentos de crianças. O psicanalista inglês observou que muitas vezes os bebês e as crianças realizam atos comumente chamados de “malcriação” não como forma de retaliar e se vingar do objeto sexual mãe que não os satisfez. Não. Elas se comportam de forma malcriada justamente para saber se mesmo diante desses atos a mãe irá permanecer com eles. É como se elas estivessem testanto o ambiente para saber se podem errar. A mãe comum, a que não provoca patologias e que Winnicott denomina de “mãe suficientemente boa”, ou seja, que não faz nada aquém ou além do necessário, é aquela que sobrevive às “malcriações” da criança e que a faz se sentir segura de seu amor.
Ora, o amor ágape/caritas não implica justamente nisso? De dizer que mesmo que a pessoa erre, continuar-se-á a amá-la? Que se ela cair, não sentir-se-á ódio dela, mas, pelo contrário, que ela será socorrida. Pois bem, por que então Freud não conseguiu alcançar esse tipo de amor? Porque ele ficou preso a um modelo de relações humanas veiculado pelo discurso neurótico e, além disso, por não ter tido acesso à experiência dos bebês com suas mães. Talvez seja também por conta disso que Freud não conseguiu entender o Deus cristão que perdoa os pecados, que faz esse papel de mãe suficientemente boa, capaz de permanecer fiel e conceder o perdão ao mais vil pecador. O Deus com o qual ele estava acostumado é o Deus da tradição judaica, que pune, que se sujeita a barganhas, ou seja, um Deus que está sujeito aos afetos.
Já Winnicott, um “protestante por natureza” como disse certa vez um analista, conseguia perceber com naturalidade que o amor que a mãe deve sentir por seu filho, de modo a facilitar seu desenvolvimento, não deve estar sujeito ao vai e vém dos afetos, mas deve se concretizar através da ação de sustentar o bebê e de sobreviver a seus ataques. E é talvez por isso que Winnicott, em nenhum momento de sua obra, quis fazer ataques à religião.
Em breve, postarei aqui mais algumas idéias visando desenvolver a analogia entre o Deus cristão e a mãe suficientemente boa de Winnicott. Aguardem.
Continuação correspondentemente genial.
Me fez lembrar, em associação ao conceito de Deus como mãe, no sentido do conceito da operação desta função. O que me suscitou seu texto. De duas passagens que representam uma pequena dinâmica da lei a graça, e nessa uma síntese do deus-na-história. As duas trabalham não só a sua idéia, mas acredito que darão mais “pano para a manga”. O Deus encarnado olha para Jerusalém e sofre, porque como uma galinha que quis recolher os pintinhos a segurança das asas, assim ele quis recolher a amada cidade (Mt 23:37). Claramente é uma demonstração de amor storge/eros, o simbolismo do contato físico materno como centro da segurança da criança, uma amor posto no estético, envolvendo a imediatez dos sentidos. Mas também vemos um amor ação/vontade, uma operação das intenções e estas de um pensamento. Aliás, é a questão da graça, um Deus que ama de todas as formas, sendo do seu amor ágape, emanando todos os outros amores. A outra passagem fora a que o Deus de Israel, em antagonismo a sua figura beliscisante diz a Israel que ainda que uma mãe de peito esquecesse seu neném, ela não se esqueceria de seu povo amado (Is 49:15). O pathos de Jesus fora a operação de uma síntese à Hegel de duas formas de amor, o que faz e o que sente, o que ama e o que gosta, enfim…
Que o Lucas trabalhe nisto, este é seu carisma, embora ele não perceba, embora ainda tarde em decidir-se.
Um grande abraço!
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Post muito bem escrito, Lucas.
Queria só acrescentar que Winnicott situa a relação mãe-bebê em três fases: 1) O bebê e a mãe são um só, pois a mãe está em estado de devoção, ocupa-se integralmente de se adaptar às necessidades do bebê; 2) O bebê brinca e cria o seio onde a mãe é capaz de oferecê-lo, criando uma área intermediária entre o objeto interno e a realidade compartilhada; 3) A mãe desadapta-se aos poucos, transformando a dependência absoluta em relativa. A fase 2 é naturalmente a dos fenômenos transicionais.
Eu diria que Winnicott torna o amor de mãe algo extremamente complexo, já que a mãe tem que “adoecer” numa condição de entrega no primeiro momento até alcançar um estado tal de sensibilidade e cuidado que permita o filho alcançar um estado de identidade baseado na confiança (self verdadeiro). E isso pode ser resumido no sentido de sustentação, bem descrito por você.
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Pingback: Winnicott e o cristianismo I – A kénosis e o devotamento materno « Lucas Nápoli
Que sabedoria Divina revelada em sua criaçao… voces descreverao!!!!!!!!!!!!
Lucas Napoli e Vlandimir Melo.
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Muito obrigado pelo comentário, Jonatas! Um abraço!
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Mto boa a matéria.Parabéns!
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Que trabalho maravilhoso! não tenho duvidas de que és inspirado pelo Espirito Santo.
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