Nem toda falta deveria existir

Na aula ao vivo da última segunda-feira eu falei com os alunos da CONFRARIA ANALÍTICA sobre os dois tipos de falta que, do meu ponto de vista, podem estar em jogo na experiência humana.

Trata-se da FALTA TRAUMÁTICA e da FALTA ESTRUTURAL.

Essa é uma ideia que tenho desenvolvido ultimamente e que vai de encontro ao que me parece ser um grave equívoco cometido por muitos psicanalistas.

Com efeito, tradicionalmente, nós somos ensinados em Psicanálise que só existe um único tipo de falta: a falta ESTRUTURAL.

Vocês conhecem a ladainha: todos nós somos seres estruturalmente faltosos porque não existe um objeto capaz de saciar plenamente nosso desejo e blábláblá…

Tudo isso é verdade.

O problema é achar que, quando um paciente se queixa dos efeitos nefastos da negligência REAL que ele sofreu por parte da mãe, o que está em jogo é essa falta estrutural.

Não é.

Trata-se de um outro tipo de falta: uma falta que NÃO DEVERIA EXISTIR e que, de fato, não existe para a maioria das pessoas — uma falta… TRAUMÁTICA.

A falta estrutural de um objeto plenamente satisfatório é INEVITÁVEL e um dos nossos desafios na vida é aprender a conviver com ela.

Já a falta traumática só vai acontecer se o sujeito não receber aquilo que LHE É DE DIREITO na infância, a saber: um ambiente amoroso, acolhedor e pacífico.

Quando não fazemos essa diferenciação, podemos acabar retraumatizando nossos pacientes.

Imagine, por exemplo, uma mocinha que passe uma sessão inteira se queixando das surras violentíssimas que recebia por parte do pai na infância.

Se o analista admite as diferenças entre as duas faltas, entenderá que essa paciente sente FALTA do pai amoroso e não violento que ela REALMENTE DEVERIA TER TIDO.

Ou seja, essa paciente não está ansiando por um objeto idealizado, como um neurótico típico que se queixa da namorada que não o satisfaz plenamente.

Se o analista só trabalha com a ideia de falta estrutural, pode confundir as bolas e acabar achando que essa paciente precisa parar de idealizar a figura paterna.

Assim, sem perceber, ele estará “passando pano” para o ambiente hostil que a moça vivenciou na infância e a levará a pensar que a raiz do problema está exclusivamente… nela mesma.


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Você está fixado em uma atitude de espera?

No finalzinho da quarta de suas “Cinco Lições de Psicanálise”, Freud diz o seguinte:

“Podem descrever o tratamento psicanalítico, se quiserem, como simplesmente uma continuada educação que visa superar os resíduos infantis.” (tradução da editora Cia. das Letras).

Esses “resíduos infantis” aos quais o autor se referia naquele contexto são as fixações dos pacientes neuróticos a formas de prazer sexual pré-genitais.

No entanto, à luz de descobertas posteriores de outros autores da Psicanálise como Ferenczi e Winnicott, podemos ampliar o alcance dessa noção de “resíduos infantis”.

Com efeito, além do erotismo pré-genital, existem outros elementos próprios da infância que podem permanecer em nós na vida adulta produzindo adoecimento psíquico.

Um desses elementos é o que eu chamaria de ATITUDE DE ESPERA.

Como já disse em algumas aulas lá na CONFRARIA ANALÍTICA, a condição do bebê ao nascer é análoga à de um adulto que acaba de chegar em um país estrangeiro sem saber falar o idioma local.

Certamente, o processo de adaptação a esse novo contexto seria facilitado se esse adulto pudesse contar com pessoas que o acolhessem e lhe dessem suporte.

É exatamente isso o que o bebê, esse pequeno forasteiro, ESPERA de seus pais: acolhida, apoio, segurança etc.

Todavia, seus genitores podem não se comportar como bons anfitriões. Resultado: a criança fica de mãos abanando.

O problema é que o bebê não tem autonomia suficiente para se desligar dos pais e procurar outras pessoas que o recepcionem no mundo da maneira como precisa (e merece).

Assim, a criança se vê obrigada a nutrir a esperança de que um dia seja finalmente tratada com o cuidado necessário.

No entanto, essa expectativa amiúde não é satisfeita.

Consequência: com alguma dose de sorte, a criança cresce, se desenvolve, mas chega na vida adulta ainda carregando a esperança de ser acolhida, respeitada, compreendida.

O sujeito acabará, então, preso a vínculos insatisfatórios porque, fixado a essa ATITUDE DE ESPERA, não consegue se apropriar da autonomia que agora possui como adulto.

No Inconsciente, ele ainda continua sendo aquela pobre criança que ainda nutre a vã expectativa de ser bem acolhido pelos pais.


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Uma Psicanálise que não retraumatiza o sujeito

Este é um pequeno fragmento do material de apoio da nossa aula ao vivo de hoje da CONFRARIA ANALÍTICA.

Há dez semanas estamos estudando minuciosamente o texto “Confusão de língua entre os adultos e a criança”, de Sándor Ferenczi.

Um dos feedbacks que mais tenho recebido dos alunos pode ser sintetizado na frase: “Não sabia que se podia fazer Psicanálise dessa forma”.

Essa maneira diferente de trabalhar diz respeito às inovações clínicas propostas por Ferenczi.

Para o autor, o processo terapêutico em Psicanálise não visaria apenas a decifração do Inconsciente e a responsabilização, mas a reconquista da capacidade de confiar, perdida em função de experiências traumáticas.

Para o alcance desse último objetivo, o analista precisa sair de sua posição clássica de espelho e apresentar-se como uma PESSOA sensível e confiável.

Se você quiser conhecer mais sobre os fundamentos dessa proposta clínica diferenciada, é só se juntar às mais de 700 pessoas que já estão na nossa comunidade.

Te espero lá!


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Você sofre da Síndrome do Penetra Existencial?

Muitos de vocês me pediram para falar um pouco mais sobre pessoas que parecem se sentir o tempo todo como se fossem penetras numa festa.

Em consideração a esse anseio, deixarei o tema que abordaria hoje para semana que vem e comentarei em mais detalhes como se constitui o que eu chamaria de “Síndrome do Penetra Existencial”.

Quero começar com uma citação do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, que se encontra no artigo “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte”.

Comentando os casos de dois pacientes nos quais detectara tendências inconscientes de autoextermínio, Ferenczi diz o seguinte:

“Quando vieram ao mundo, os dois pacientes foram hóspedes não bem-vindos na família. […] Todos os indícios confirmam que essas crianças registraram bem os sinais conscientes e inconscientes de aversão ou de impaciência da mãe, e que sua vontade de viver viu-se desde então quebrada” (p. 57 do vol. 4 das Obras Completas).

Como é possível deduzir dessa passagem, toda criança nasce com o desejo de viver assim como Laura anseia participar da festa de aniversário de sua amiga, Bárbara.

No entanto, se Laura não for convidada, seu anseio se transformará em decepção, amargura e até culpa (“O que será que eu fiz para que Bárbara não me quisesse na festa?”).

Laura pode acabar arrumando um jeito de entrar na festa como penetra, mas, evidentemente, não se sentirá à vontade no lugar, pois SABE que não é bem-vinda.

Da mesma forma, uma criança que, por inúmeras razões, não é bem recebida no ambiente em que nasce, tenderá a não se sentir à vontade — só que NA VIDA.

Se, nos primeiros anos de vida, eu percebo que os anfitriões da “festa” na qual me colocaram (papai e mamãe) não têm muito tempo para mim, me tratam de forma indiferente ou com impaciência e hostilidade, qual será a conclusão que se produzirá em minha cabecinha infantil?

Óbvio: a de que eu NÃO DEVERIA ESTAR AQUI, ou seja, a de que, nessa festa, eu sou um PENETRA.

Quer saber mais sobre os sintomas da “Síndrome do Penetra Existencial” e os princípios que orientam o tratamento dessa condição?

Então venha conferir a AULA ESPECIAL que será disponibilizada ainda hoje para quem está na CONFRARIA ANALÍTICA.


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Você se sente um penetra na existência?


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[Vídeo] Winnicott: noções introdutórias

[Vídeo] A lição de Ferenczi

Quando o analista não se apaga (parte 3)

ep-101-jesse-1024Ferenczi observou que o choque entre a linguagem da ternura expressa pela criança e a linguagem da paixão manifesta pelo adulto é inevitavelmente traumático. Afinal, assim como a criança é ainda incapaz de compreender uma sexualidade que ultrapasse os limites do pré-prazer lúdico, o adulto também não tem condições de abandonar completamente a linguagem da paixão e identificar-se de forma plena com o modo infantil de amar. Em decorrência, um ponto de incompreensão marcaria desde o início as relações entre os adultos e as crianças. Contudo, para Ferenczi, essa fator só se tornaria efetivamente um trauma desestruturante e fonte de adoecimento emocional se o adulto negligenciasse a diferença entre o seu modo de amar e o modo de amar infantil e impusesse a linguagem da paixão sobre a criança. No texto “Confusão de língua entre os adultos e a criança”, Ferenczi cita especificamente o exemplo do abuso sexual, em que essa imposição se dá de modo flagrante. No entanto, podemos inferir, à luz dos desenvolvimentos teóricos de outros autores, como Winnicott, que, ao falar do potencial traumático das imposições do adulto sobre a criança, Ferenczi não estava fazendo referência apenas a casos de abusos sexuais.

O que Ferenczi parece querer acentuar – e as modificações que ele fará no plano da técnica evidenciam isso – é o papel que o ambiente exerce na etiologia do adoecimento emocional. De fato, com o abandono da chamada “teoria da sedução” e a valorização da fantasia, Freud passou a dar menos importância aos fatores externos na formação das neuroses, enfatizando muito mais os mecanismos de defesa e as fantasias inconscientes. Foi justamente esse enfoque eminentemente intrapsíquico do adoecimento emocional que deu origem ao enquadre terapêutico clássico proposto por Freud, no qual o analista é uma figura passiva, que funciona basicamente como um endereço para as projeções do paciente. Em outras palavras, se o ambiente externo não exerce papel importante na etiologia das neuroses, a pessoa do analista é igualmente irrelevante. Assim como, no plano teórico, o ambiente externo não teria levado ao surgimento da doença, no plano da técnica, o comportamento do ambiente externo (analista) também não contribuiria para o resgate da saúde.

Ferenczi, por seu turno, ao se dar conta dos efeitos deletérios da aplicação da técnica ativa e refletir sobre o potencial traumatogênico dos comportamentos do adulto em relação à criança, chegou à conclusão de que o ambiente externo poderia, sim, ser fonte de adoecimento emocional. Muitos pacientes, em especial os que apresentavam patologias mais graves, não teriam adoecido apenas em decorrência de conflitos intrapsíquicos mal elaborados, mas em função de traumas provocados por comportamentos invasivos, opressivos ou negligentes do ambiente externo. Nesse sentido, o tratamento desses pacientes não poderia mais ser concebido como um processo exclusivamente intrapsíquico, como queria Freud. Se o comportamento de determinadas pessoas foi determinante para o surgimento da neurose, assim também o comportamento do analista seria igualmente determinante para o sucesso do tratamento. Ferenczi fará, então, fortes questionamentos em relação ao lugar clássico do analista.

Do ponto de vista ferencziano, o comportamento clássico do analista, marcado por certa frieza emocional, objetividade e neutralidade, é bastante semelhante à atitude geral de um ambiente que pode traumatizar uma criança. Com efeito, a criança espera encontrar à sua volta um ambiente terno, afável, acolhedor, que a compreenda e no qual ela possa confiar para continuar simplesmente existindo, sem se preocupar com os perigos do mundo. Esses desejos, contudo, são expressos na linguagem da ternura, ou seja, a criança não tem a expectativa de ser satisfeita pelo adulto com uma relação sexual propriamente dita. Exercitando sua aguda perspicácia clínica, Ferenczi observará que muitos pacientes, ao longo do processo terapêutico, começam a fazer essas mesmas demandas infantis. Diferentemente de outros analisandos que expressavam desejos de efetivamente terem uma relação amorosa com o analista, esses pacientes faziam demandas que eram bem características da linguagem da ternura. Em outras palavras, eles não queriam transar com o analista, mas encontrar nele acolhimento e confiabilidade – elementos com os quais não teriam podido contar na infância.

Ferenczi compreendeu, portanto, que esses pacientes haviam regredido para um ponto de seu desenvolvimento anterior à incidência do trauma, um ponto em que ainda eram capazes de esperar acolhimento, ternura e confiabilidade do ambiente externo. Se o analista, frente a essas demandas, se comportasse da maneira clássica, ou seja, frustrando-as e mantendo-se numa posição de neutralidade, ele estaria repetindo a mesma atitude traumatogênica do ambiente primário do paciente. Em outras palavras, podemos dizer que, em certos casos, o apagamento do analista não contribui para o sucesso do tratamento. Pelo contrário, favorece a continuidade e a intensificação do adoecimento.

Atento ao potencial “re-traumatogênico” da neutralidade analítica, Ferenczi irá propor que a técnica psicanalítica não seja mais padronizada, mas vem ao encontro das necessidades de cada paciente. Tomando emprestada uma expressão proposta por um de seus analisandos, Ferenczi defenderá uma “elasticidade da técnica psicanalítica”. Para o analista húngaro, se levarmos em conta que na clínica encontramos vários perfis de pacientes (alguns mais traumatizados que outros ou mais amadurecidos que outros, por exemplo), isso significa que nossa intervenção não pode ser a mesma para todos eles. O terapeuta precisaria modular sua posição clínica de acordo com as especificidades de cada caso. E como saber o tipo de abordagem que cada paciente precisa? Observando e classificando os sintomas? Lendo tratados de psicopatologia? Não, dirá Ferenczi. Para identificar as necessidades de cada paciente, o analista deverá fazer uso da empatia, ou seja, deverá colocar-se não mais numa posição de neutralidade e objetividade, mas de sintonia, sentindo com o paciente o que esse lhe dirige.

O amor como afeto e o amor como ação: Freud com Winnicott (parte 1)

Há cerca de uma semana atrás, caiu-me nas mãos uma obra cuja leitura muitos dos que me conhecem e até eu mesmo há duas semanas não recomendaria sequer como companhia para as noites de revolução intestinal, em que nos transformamos dum salto em reis. Trata-se de um best-seller traduzido para diversas línguas e lido por alguns dos maiores empresários do mundo: “O Monge e o Executivo: uma História sobre a Essência da Liderança” da autoria do administrador de empresas James Hunter. É bom que se diga que as razões de minha não-indicação à leitura do livro não eram de fato razões, uma vez que não se fundavam nem em uma mera leitura rápida do texto, mas apenas na temática geral da obra: a tal liderança, assunto que geralmente se encontra no rol dos tópicos trabalhados nos chamados “treinamentos” de psicólogos organizacionais ou administradores de empresas, o cúmulo da mediocridade intelectual em minha opinião. Além disso, o opúsculo era catalogado nas livrarias juntamente com escritos chamados comumente de “auto-ajuda”, cuja ineficácia foi tão bem comentada em um post recente pelo amigo e psicólogo behaviorista Igor Madeira.

Nota-se, portanto, que minha não-recomendação se baseava unicamente em preconceitos. Esses, como bem se sabe, podem tornar-se conceitos se seu conteúdo for efetivamente confirmado após um empreendimento analítico ou empírico, ou refutados caso tal confirmação não ocorra. Foi essa última possibilidade a que se concretizou a partir de minha leitura de “O Monge e o Executivo”. A princípio relutante, devorei o livro em uma semana tão clara era a articulação das idéias do autor e tão saborosa sua originalidade. Não vou me deter aqui nos diversos aspectos que me fizeram considerar a obra de boa qualidade, mas apenas em um ponto em que o autor me fez pensar em alguns vínculos com a teoria psicanalítica.

Em determinado momento, Hunter, inspirado pelos Evangelhos, discute a importância do mandamento do amor cristão expresso em máximas como “ama ao próximo como a ti mesmo” e “ama a teu inimigo” para o bom exercício da liderança. Segundo ele, o cristianismo radicaliza uma concepção de amor que encontra suas raízes no vocábulo grego “ágape” – uma das quatro acepções do amor na língua grega; as demais, como muita gente sabe, são storge (geralmente associado à amizade), filos (o amor que faz o bem, altruísta) e eros (amor da paixão romântica, relacionado também à sensualidade e ao sexo).

Tal concepção de amor distinta da habitual está relacionada muito mais ao campo da ação do que do afeto. Tradicionalmente tendemos a ver o amor como um sentimento derivado de uma relação com outra pessoa, coisa, animal etc. Sentimos amor por nossas esposas, maridos, amigos, bichos de estimação, casas. É uma visão do amor como algo que nos afeta e que, portanto, não nasce de uma escolha ou de um engajamento subjetivo. O modelo paradigmático desse ponto de vista é o arrebatamento experimentado pelo sujeito ao se apaixonar. Essa pequena loucura da qual nenhum exemplar da espécie escapa foi sempre ilustrada pela tradição como resultado de um encantamento proveniente de fora, haja vista a célebre imagem de Cupido jogando suas flechas.

O que James Hunter propõe, e que em sua esteira discutirei com a ajuda de dois autores da psicanálise, é que essa é apenas uma das facetas do amor, que não é a mesma do amor ágape (ou caritas) cristão. Esse se constitui na verdade em um comportamento, em uma ação e não em um afeto. É por isso que é difícil para muitos compreender o mandamento de Jesus de amar também aos inimigos, pois está para-além dos limites do ser humano não sentir ódio de quem lhe maltrata, lhe faz mal. Isso está no plano do necessário e Jesus sabia disso, pois também se fez humano e passou por todas as intempéries experimentadas pelos filhos de Adão. O que Ele propõe, no entanto, é que, não obstante o ódio, amemos, pois esse tipo de amor (ágape/caritas) não está no mesmo nível nem do ódio originado pelo maltrato do outro nem do amor sentido por quem nos agrada; está no nível da vontade, do engajamento, da deliberação enfim. É por isso que Jesus, ao enunciar o mandamento, o contrapõe à prescrição judaica de “Odiar os inimigos”. Ora, odiar o inimigo não seria o sentimento que tenho após o mesmo proferir-me um insulto? Não. Esse ódio sentido é um afeto e, como tal, desencadeado pelas circunstâncias, sem passar pelo plano da vontade. O “odiar” de que Jesus fala é o comportamento que utiliza o ódio como motivo, ou seja, no nosso exemplo, revidar o insulto ou se vingar de outra forma do inimigo. Essa ação, sim, passa no nível da vontade e da deliberação, pois posso escolher insultar ou não, mas não posso escolher sentir ódio ou não.

Assim, amor no sentido cristão, expresso pela palavra grega ágape é uma ação cujo paradigma maior é o acolhimento, uma atitude de total aceitação do outro como ele é em todas as suas idiossincrasias, mesmo quando essas me provocam ódio e me fazem não gostar do outro, ou, nas palavras do apóstolo Paulo, “o que tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (Cf. 1Cor 13).

Vê-se bem, portanto, que amar é completamente distinto de gostar, não pelo fato do primeiro ser mais “profundo” que o segundo, mas pelo fato de que gostar é simplesmente o prazer – portanto afeto – que sinto por alguém cuja companhia me traz uma satisfação narcísica: gosto de quem me faz bem ou como dizem alguns, “gosto de quem gosta de mim”. Já o amor implica num ultrapassamento do narcisismo. Como veremos, Freud (e também Lacan) conseguiu vislumbrar apenas a primeira faceta do amor, o amor como afeto, daí sua visão particularmente pessimista do fenômeno amoroso e sua ênfase no eros. O teórico que, a meu ver, apresentou teses que possibilitam pensar o amor ágape/caritas em ternos analíticos foi Winnicott. No próximo post faremos falar os dois autores.