Há algumas semanas uma notícia advinda do segmento policial-sensacionalista reativou em mim algumas reflexões de outros tempos a respeito do aborto. Tratava-se do suposto aborto espontâneo que teria ocorrido com a ex-amante do goleiro Bruno, Fernanda Gomes de Castro. Ela, que no momento habita as dependências nada confortáveis do sistema prisional, apresentou sangramentos no domingo (08/08) e foi levada para uma maternidade para que se verificasse o que de fato havia acontecido em seu corpo. A hipótese do aborto espontâneo foi aventada, mas na segunda-feira (09/08) os médicos já diziam ser pouco provável que isso tenha efetivamente ocorrido.
Para nossos propósitos, no entanto, não importa se o aborto ocorreu ou não. As reflexões que tal notícia me recordou giram a respeito da expressão “aborto espontâneo”. Sempre a considerei muito curiosa, porquanto paradoxal. Geralmente utilizamos o termo “espontâneo” para caracterizar um comportamento ou ação que emanam do próprio ser, de sua própria natureza, ou seja, atos que não sofrem a coação de nenhum fator externo. Nesse sentido, o termo espontaneidade está atrelado à idéia de uma escolha relativamente livre. Ora, quando se fala em “aborto espontâneo” no contexto da medicina, as coisas se passam de modo diferente, pois em tal circunstância a pessoa que sofre o aborto em tese não escolheu perder o filho, isto é, não se trata de um aborto provocado. Foi o organismo que “decidiu” expulsar o feto à revelia do suposto desejo da pessoa de ter um filho. Logo – sigam meu raciocínio – não há nada de espontâneo nesse aborto, pois não foi a pessoa que o escolheu. Com efeito, ela supostamente sofreu a ação de seu próprio organismo.
Todavia, mesmo com essa contradição aparente, o uso do termo se mantém e a meu ver isso ocorre por uma razão específica. Como parece óbvio, o uso do termo “espontâneo” não diz respeito à pessoa, mas sim ao organismo. O organismo sim, espontaneamente, iniciou um processo de expulsão do feto. Logo, a divisão entre abortos provocados e abortos espontâneos só pode fazer sentido dentro de uma concepção de homem que tome a pessoa e o organismo como duas entidades distintas. Essa concepção, no entanto, esbarra em alguns problemas. Um deles é a constatação incontestável de que não é possível conceber a pessoa sem o organismo. Isso implica em dizer que quando uma mulher toma uma determinada substância assim chamada “abortiva” não é a pessoa da mulher apenas que age. Ela age com o seu organismo. Por que, então, insistimos em dizer que a contrapartida não é verdadeira, ou seja, que pode haver a ação do organismo sem a pessoa?
A meu ver, isso pode ser atribuído ao modo como a sociedade ocidental, principalmente a partir da modernidade, passou a pensar o corpo. Volta e meia é possível observar nosso modo de conceber a corporeidade nas palavras de profissionais de saúde e/ou biólogos, por exemplo. “O corpo humano é uma máquina perfeita!”, dizem eles repetindo Descartes. Não se trata apenas de um delírio médico. De fato, nós, filhos da Revolução Industrial, ao atentarmos, por exemplo, para o modo como o corpo trata os alimentos que ingerimos, utilizando algumas substâncias (nutrientes) e expelindo outras inúteis na forma de fezes e urina, não podemos deixar de ver no corpo humano a imagem de uma máquina muito bem elaborada. Não obstante, não devemos confundir o real com seu simulacro. A idéia de que o corpo é uma máquina orgânica não emerge do próprio corpo, mas é injetada no nosso olhar sobre ele a partir do momento em que fomos capazes de construir máquinas, engrenagens e mecanismos. Vemos a máquina no corpo por extensão de pensamento, da mesma forma que uma criança que está aprendendo a falar chama qualquer animal com asas de “passarinho”.
O que distingue nosso corpo de uma mera máquina sofisticada é justamente sua ligação com a “pessoa” ou, em termos mais filosóficos, com o “sujeito”. Isso significa que da mesma forma como não é possível conceber uma ação subjetiva sem o organismo, também não é possível conceber nenhum comportamento do organismo em que não entre em jogo a pessoa.
Um autor que elaborou seu pensamento sobre essas bases foi Georg Groddeck, o que o fez formular a idéia de que a doença não é um mal que acomete o organismo, mas, sim, uma criação do próprio sujeito. Para pensar assim, Groddeck foi obrigado a não mais trabalhar em termos de pessoa/organismo, psiquismo/corpo. O autor resgatou o termo impessoal “Isso” (Das Es) presente na obra de Nietzsche e utilizou-o no sentido de caracterizar a totalidade individual que é tão pessoa quanto organismo, tão psiquismo quanto corpo.
Com o conceito monista de Isso, Groddeck criou uma alternativa teórica para solucionar o impasse dicotômico entre sujeito e organismo, impasse que faz com que fiquemos todos sem resposta ao questionarmos a medicina com perguntas do tipo: “Por que o corpo daquela gestante aniquilou o feto?”, “Ah, ele considerou o feto como um corpo estranho? Mas por que o fez?”. Sabem por que não temos resposta? Porque o corpo é considerado pela medicina como uma máquina cega, que age mecanicamente. As almas bondosas dos hospitais, clínicas e ambulatórios, sequer se lembram dos textos de certo Sigmund Freud que demonstrou por a + b como muitos atos para os quais não encontramos explicação aparente possuem sua razão de ser em correntes de pensamento inconsciente. Por essa falha mnemônica, sequer lhes passa pela cabeça que o tal “aborto espontâneo” pode ter sido realmente espontâneo, no sentido literal dessa palavra. Em outros termos, não lhes vêm à mente que o aborto pode ter sido desejado ainda que a gestante diga, crendo estar sendo sincera, que queria muito aquele filho. Nesse momento, o conceito de Isso é bastante útil, pois nos impede de cair nas armadilhas do psicologismo. A partir da noção de Isso já não se trata de um desejo proveniente do psiquismo incidindo sobre o corpo, mas sim de um movimento que emerge da totalidade individual. Assim, podemos pensar que talvez o Isso dessa gestante, guardião de sua história subjetiva, tenha visto no aborto uma forma de resolver um conflito emocional bastante antigo, cujas raízes estão bem fundadas na infância, mas que só agora, nesse momento de gravidez, foi novamente despertado.
Ao pensarmos assim, o termo “espontâneo” aplicado ao aborto “não-provocado” é correto. No entanto, a idéia que a medicina passa da expressão “aborto espontâneo” é oposta à significação original de espontaneidade. Só poderemos apreciar a significação correta de “aborto espontâneo” quando renunciarmos à dicotomia entre sujeito e organismo. É por insistirmos nessa dicotomia que muitas vezes não compreendemos mulheres que apresentam uma série de abortos espontâneos embora possuam todos os órgãos do aparelho reprodutor intactos e plenamente saudáveis.
Não estou, obviamente, querendo produzir uma espécie de terrorismo psicanalítico, formulando a idéia de que por trás de todo aborto espontâneo oculta-se um desejo inconsciente de efetivamente abortar. Minha intenção, seguindo a trilha aberta por Freud e, especialmente, por Groddeck é de colocar em questão essa espécie de dogma da medicina moderna segundo o qual o corpo pode se comportar isoladamente, sem que a subjetividade esteja implicada. E com “subjetividade” quero dizer precisamente aquilo que está para-além da consciência e que, com o corpo, forma uma só totalidade.
Meu desejo inicial era o de encerrar este texto com o parágrafo anterior. No entanto, tenho a impressão de que ainda não me fiz claro ao expressar minhas idéias. Em função disso, tentarei sintetizá-las agora: (1) O termo “aborto espontâneo” é utilizado para se referir a um tipo de morte fetal em tese não provocada pela gestante ou por outrem. A idéia é de que o próprio organismo da gestante “espontaneamente” matou o feto. (2) O problema que vejo nessa conceituação é de que o vocábulo “espontâneo” não é utilizado em seu sentido original, o qual pressupõe um exercício de uma vontade livre, já que não se atribui voluntariedade alguma ao corpo. Sua ação se daria por unicamente por princípios mecânicos. (3) Essa concepção do corpo só é possível entendendo-o como essencialmente distinto do psiquismo, sede da vontade. (4) Minha tese, apoiada principalmente no conceito de “Isso” de Groddeck é o de superar essa dicotomia, pensando o corpo como indissociável do psiquismo. (5) A partir dessa nova concepção, o “aborto espontâneo” pode ser de fato visto como espontâneo, isto é, parcialmente derivado de um desejo, de algo que vem da própria natureza do ser que aborta.
Excelente texto, veio de encontro a um questionamento que havia feito sobre o tema.
Obrigada!
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Que ótimo, Bianca! Grande abraço!
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