A invenção da associação livre, a técnica terapêutica mais “mineirinha” de todas

Você sabe como Freud estabeleceu a associação livre como principal ferramenta de trabalho na Psicanálise?

Foi mais ou menos assim:

Admitindo não ser um bom hipnotizador e considerar a hipnose uma técnica meio mística, Freud passou a praticar o método catártico inventado por Breuer sem hipnotizar seus pacientes.

Em vez disso, ele apenas pedia insistentemente aos doentes que se lembrassem dos seus traumas, crente de que eram plenamente capazes de fazer isso.

Não deu muito certo.

Alguns pacientes se lembravam, outros não.

Ao invés de trazerem à consciência as memórias reprimidas, muitos doentes começavam a falar de outras coisas que não tinham relação direta com seus problemas emocionais.

Ou seja, por não conseguirem se lembrar daquilo que supostamente era o mais importante (os traumas), tais doentes acabavam comunicando ao médico O QUE LHES PASSAVA PELA CABEÇA NO MOMENTO.

Freud até tentou dirigir a atenção desses pacientes para o “foco”, ou seja, o resgate das lembranças reprimidas, mas… não teve jeito:

Em vez do relato do trauma, o que vinham eram só esses “pensamentos despropositados”, como ele os chamou.

Houve até uma paciente que pediu explicitamente para que Freud parasse de lhe fazer perguntas e a deixasse falar livremente.

Dessa vez, o obstinado médico vienense teve que dar o braço a torcer.

Assim, ao invés de ficar insistindo vigorosamente para que seus pacientes se lembrassem dos traumas, Freud começou a a pedir a eles que apenas falassem o que lhes viesse à mente.

— Uai, Lucas, mas e o conteúdo reprimido? Freud simplesmente desistiu de buscá-lo?

Não, não.

Como bom cientista, o pai da Psicanálise acreditava firmemente no pressuposto do determinismo psíquico, segundo o qual nenhum pensamento acontece por acaso.

Assim, passou a trabalhar com a hipótese de que por mais APARENTEMENTE aleatória que fosse a verbalização do paciente, ela certamente teria ALGUMA RELAÇÃO com as memórias reprimidas.

Portanto, o objetivo do tratamento continuou a ser ajudar o paciente a reintegrar o conteúdo reprimido.

Só que agora, essa meta seria alcançada de modo mais “mineirinho”, comendo-se pelas beiradas, com terapeuta e paciente viajando juntos de pensamento em pensamento…


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[Vídeo] Histeria e Psicanálise: ENTENDA TUDO | Aula 01

Este é o primeiro vídeo da série “Histeria e Psicanálise” na qual pretendo explicar o que é a histeria, como se formam os sintomas histéricos e os traços constitutivos da estrutura histérica de personalidade. Nesta primeira aula, falo sobre o encontro de Freud (e de Breuer) com as histéricas do final do século XIX e as primeiras descobertas pré-psicanalíticas relativas à gênese dos sintomas histéricos.

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Por que o psicanalista não utiliza a hipnose?

article-new_ehow_images_a04_qt_th_become-hypnosis-practitioner-800x800Estamos no século XIX. Em um escritório sombrio abarrotado de móveis austeros um homem faz movimentos pendulares com um relógio diante de uma jovem que, de olhos fechados, lhe narra suas mais íntimas lembranças. Quem não se impressionaria com uma cena como essa? Muito provavelmente essa pergunta retórica deve ter sido feita por muitos produtores do cinema e da televisão. Afinal, não raro vemos essa mesma cena em filmes e seriados, adaptada ou não para os dias atuais. Na sociedade do espetáculo, as representações de um tratamento hipnótico são excelentes embalagens para determinados produtos da indústria cultural. As pessoas têm sua curiosidade despertada e acreditam tratar-se de um procedimento místico, secreto…

Com alguma frequência tenho me deparado com pessoas que compartilham dessa espécie de “representação social” da hipnose. São indivíduos que encaram o tratamento hipnótico como uma modalidade psicoterapêutica mais “profunda” do que, por exemplo, a psicanálise. Para eles, a hipnose alcançaria determinadas regiões do psiquismo às quais a terapia psicanalítica jamais colocaria os pés. Por conta disso, acreditam que a psicanálise e as demais psicoterapias baseadas essencialmente na interação verbal entre terapeuta e paciente seriam indicadas para o tratamento de casos mais leves de adoecimento emocional. A hipnose seria a única técnica capaz de intervir de maneira eficaz no tratamento de patologias mais graves.

Neste artigo pretendo demonstrar por que essa concepção é inteiramente equivocada e por quais razões os praticantes da psicanálise não fazem uso da hipnose ao tratarem seus pacientes. Para isso, será preciso explicar primeiramente, ainda que de modo esquemático, o que é a hipnose.

O que é hipnose?

Embora hipnose seja empregada em outras especialidades do campo da saúde, como por exemplo, na odontologia, em que o profissional coloca o paciente em estado hipnótico a fim de ele não se sinta ansioso diante de determinados procedimentos, a técnica hipnótica é utilizada com maior frequência como estratégia psicoterapêutica. Com essa finalidade, o terapeuta (hipnotizador) induz o paciente, utilizando diversas técnicas (dentre elas, o movimento pendular de algum objeto) a uma condição psicológica semelhante ao sono. Ao cair nesse estado, o doente se coloca numa posição de completa passividade e total disponibilidade às injunções e comandos do terapeuta. Por essa razão, o profissional é capaz de solicitar do paciente a narrativa de determinados fatos que, em estado de vigília, não seria capaz de recordar.

O elemento central desse tipo de tratamento não é o estado psicológico peculiar em que se encontra o paciente, mas sim o poder que ele concede ao terapeuta sobre seu corpo e seu psiquismo. Em outras palavras, o doente não narra suas mais secretas memórias ao profissional apenas porque se encontra numa condição psicológica privilegiada para tal, mas, sobretudo, porque o terapeuta mandou.

Freud e a hipnose

Por influência de Charcot e de outros grandes neurologistas do século XIX, dentre os quais Joseph Breuer (à época seu amigo pessoal), os quais faziam uso da hipnose no tratamento da histeria, Sigmund Freud inicialmente utilizou a técnica hipnótica para cuidar de suas pacientes histéricas. E foram justamente os impasses que encontrou no emprego desse método que levaram o jovem médico vienense a inventar uma nova técnica psicoterapêutica que viria a batizar de psicanálise.

Vale dizer que Breuer e Freud faziam um uso assaz específico da hipnose, distinto da maneira como Charcot e os demais médicos utilizavam o procedimento. Para utilizar uma nomenclatura que atualmente é familiar para a maioria de nós, o médico francês empregava o hipnotismo apenas como uma maneira de fazer com que o paciente tivesse “adesão ao tratamento”. Dito de outro modo, a hipnose funcionava para Charcot como um tratamento sugestivo. Se uma paciente apresentasse, por exemplo, uma cegueira histérica, bastava colocá-la em estado hipnótico e ordenar a ela que voltasse a enxergar quando fosse despertada. De fato, ao sair da hipnose, a doente voltava a enxergar. Contudo, os motivos pelos quais ela havia temporariamente perdido a visão permaneciam ocultos.

Breuer e Freud, por seu turno, aprenderam na prática que a melhor maneira para eliminar os sintomas da histeria era fazendo com que o doente descarregasse toda a tensão psíquica que ele havia reprimido em determinado momento de sua história. A hipnose era utilizada com a finalidade de fazer com que o paciente “regredisse” a esse momento (à época chamado de “trauma”) e pudesse “ab-reagir” ao acontecimento, ou seja, responder novamente a ele, descarregando a tensão acumulada ao longo do tempo e que vinha sendo descarregada através dos sintomas. Chamavam esse procedimento de “método catártico” por considerarem que ele se baseava numa espécie de “purgação” da alma (catarse).

As limitações da hipnose

Apesar de os dois médicos terem realizado diversos tratamentos bem-sucedidos utilizando esse método, Freud não estava muito satisfeito. Afinal, embora conseguisse através da hipnose levar o paciente até os pontos de sua vida em que os “traumas” haviam acontecido, a questão referente aos motivos pelos quais o doente permanecia impedindo que tais eventos fossem rememorados permanecia sem resposta. Em alguns casos, a resistência do paciente a algumas lembranças era tanta que, nem mesmo sob hipnose, o paciente era capaz de se lembrar delas.

Essa foi a grande limitação que Freud encontrou no método hipnótico: ele passa por cima das resistências, deixando o terapeuta e o próprio paciente sem o discernimento dos motivos pelos quais determinados eventos são considerados pelo psiquismo como “altamente perigosos”. Em outras palavras, a hipnose não é capaz de detectar a resistência.

Diante dessa justificativa, muitas pessoas podem dizer algo do tipo “Ah, mas o importante é que os sintomas desapareciam. E daí que as resistências nunca fossem descobertas?”. Impressiona-me, aliás, a semelhança entre essa alegação e aquela que defende o uso de psicoterapias conhecidas como “cognitivo-comportamentais”. A ênfase é posta sobre a eliminação de sintomas, como se o objetivo de um tratamento psicoterapêutico fosse meramente esse.

Berta Pappenheim, ou Srta. Anna O. – sem dúvida a paciente mais famosa da história da psicanálise e considerada quase uma co-inventora do método psicanalítico – costumava dizer a Breuer (que foi quem a tratou) que as sessões de hipnose que ela fazia com ele eram uma espécie de “chimney-sweeping” (“limpeza de chaminé”, em inglês). Creio que essa expressão descreve com exatidão as limitações da técnica hipnótica. Trata-se efetivamente de uma simples limpeza de chaminés psíquicas, um procedimento cujo alcance é temporário, ou seja, até o momento em que a chaminé volte a ficar suja. E se a chaminé precisa ser periodicamente lavada é justamente porque ela acumula sujeira.

É óbvio que a psicanálise não previne neuroses. Contudo, por não negligenciar a resistência, mas, pelo contrário, procurar encontrá-la, o método psicanalítico, diferentemente da hipnose, evita que existam chaminés para serem lavadas de tempos em tempos. A técnica inventada por Freud trabalha não apenas com a sujeira, mas com a própria chaminé, questionando a própria existência dela. Em outras palavras, a hipnose é capaz de eliminar sintomas, mas sequer se aproxima dos “gatilhos” dos sintomas, que não são os traumas, mas justamente os conflitos psíquicos que se expressam na forma de resistências. Freud descobriu que a melhor estratégia para tratar não apenas dos sintomas, mas, sobretudo, dos seus “gatilhos” é pedindo ao paciente que fale tudo o que lhe vier à mente, sem qualquer tipo de censura.

“Faz de mim o que quiseres”

Para-além da incapacidade da hipnose de detectar a resistência, há uma justificativa ética para que o psicanalista não utilize o método hipnótico. Como disse no início do texto, a eficácia da hipnose reside no poder que o paciente concede ao terapeuta sobre seu corpo e sua alma, de modo que as mudanças acontecem por determinação do profissional e não do doente.

O terapeuta, portanto, é colocado numa posição de controle e maestria sobre o paciente que, nesse caso, acaba se pondo como um objeto a ser moldado de acordo com o “desejo de saúde” do profissional. Existem muitas pessoas que são efetivamente incapazes de entrarem em estado hipnótico. Isso acontece não porque possuam uma condição neurológica específica, mas porque não são capazes de se colocar em posição de tamanha passividade diante do terapeuta. A hipnose requer, portanto, como Freud bem analisa em um dos capítulos de “Psicologia das Massas e Análise do Ego”, que o paciente “se apaixone” de certo modo pelo terapeuta. Afinal, só os apaixonados estão de tal modo vulneráveis ao desejo do outro.

O outro pai da psicanálise

Baden-Baden, Alemanha, 1909.

Uma nova paciente é encaminhada ao Sanatório Groddeck. Seu verdadeiro nome ninguém sabe. Srta. G, enigmático pseudônimo, é como a ela se refere o homem de orelhas pontudas e semblante grave que a recebe, Dr. Georg Groddeck. Nove anos antes, em companhia da esposa Lina, o médico especialista no tratamento de doentes crônicos adquirira aquele imponente edifício de arquitetura clássica e o transformara em reduto de doentes desenganados de todo o território germânico. Era para lá, onde se dizia que pacientes praticamente condenados à morte recuperavam a saúde, que muitos médicos encaminhavam os seus “casos perdidos”.

A Srta. G era um deles. Revelando imediatamente a gravidade de seu estado, logo ao primeiro exame realizado pelo próprio Groddeck, a paciente reage com copiosas hemorragias uterinas e intestinais. Nada que surpreendesse o experiente clínico, que já havia visto inúmeras vezes manifestações da mesma espécie.

O que de fato provocou-lhe espanto foram as peculiaridades presentes na fala da doente. Conquanto apresentasse um considerável nível de inteligência, o vocabulário da Srta. G era enigmaticamente reduzido. Não conseguia dizer o nome de determinados objetos, utilizando perífrases para se referir a eles. Por exemplo, em vez ‘armário’, dizia ‘aquela coisa de roupa’ ou, no lugar de panela, ‘aquela coisa de fazer comida’. Além disso, era incapaz de suportar certos gestos, como morder os lábios.

Contrariando a tendência da então nascente medicina científica de ater-se apenas à dimensão anátomo-fisiológica do doente, Groddeck não considerou aqueles excêntricos comportamentos como elementos irrelevantes para o tratamento. Oferecendo uma escuta atenta ao discurso da paciente, o médico foi gradualmente se dando conta dos motivos daquelas idiossincrasias.

Groddeck descobriu que os gestos e nomes de objetos que a Srta. G repudiava estavam associados em sua mente a determinadas imagens que lhe causavam muita angústia, pois eram de cunho erótico. Por exemplo, um forno aquecido poderia simbolizar para ela uma mulher ardente ou o próprio corpo em estado de excitação sexual, assim como um polegar levantado poderia evocar a imagem de um pênis ereto. Nesse sentido, o repúdio a certos gestos e nomes de objetos seria uma espécie de defesa inconsciente contra as imagens que esses elementos simbolizariam.

Ora, não fora exatamente esse mesmo processo psicológico que um certo neurologista chamado Sigmund Freud havia descoberto em Viena na Áustria, muitos anos antes, em meados dos anos 1890? Perfeitamente. O espantoso é que Groddeck jamais havia lido uma linha sequer das obras de Freud! Isso significa que Groddeck tivera acesso de forma independente e autônoma àquilo que Freud chamara de “o Inconsciente”. Nesse sentido, o Inconsciente não passou a existir apenas depois que Freud o nomeou, mas esteve sempre aí, à espera de um olhar, ou melhor, de uma escuta diferenciada, capaz de percebê-lo. Groddeck possuía essa escuta.

A doença como símbolo

Georg Walther Groddeck nasceu na cidade alemã de Bad Kösen, no dia 13 de outubro de 1866, dez anos após o nascimento de Freud. Seguiu a carreira médica por influência do pai, que também era médico. Na faculdade, tornou-se assistente de Ernst Schweninger, que se tornara famoso em toda a Europa por ter sido o único médico capaz de tratar do “intratável” chanceler alemão Otto von Bismarck.

Além de médico, Groddeck também se dedicaria intensamente à escrita e à literatura. Filho de uma grande admiradora de Goethe e Shakespeare e neto de August Koberstein, um dos maiores historiadores da literatura alemã, Groddeck escreveu romances, análises psicanalíticas de contos, fábulas e livros, além de dezenas de artigos sobre psicanálise e medicina. Avesso à ciência e à comunidade científica, preferia publicar seus textos em uma revista própria chamada “A Arca”, que circulava no interior de seu Sanatório, de modo que seus pacientes tinham pleno acesso a suas teses originais acerca do significado das doenças. O médico, aliás, considerava essa transmissão de conhecimento como um recurso terapêutico.

Quais eram as teses defendidas por Groddeck? A partir do tratamento da Srta. G, o médico pôde observar a força que os símbolos e as associações entre eles exercem sobre a vida humana como um todo, ou seja, não só na mente, mas também no corpo. Assim, Groddeck foi notando que frequentemente os sintomas das doenças físicas, assim como a incapacidade da Srta. G de falar determinadas palavras, eram modos utilizados pelos pacientes para se defenderem de conflitos subjetivos.

Em outras palavras, para ele, todo sintoma, seja ele uma febre, uma dor nos olhos, uma hemorragia, um câncer, vômitos ou pedras nos rins, enfim, qualquer tipo de adoecimento, poderia ser visto como um símbolo! Seria sempre possível descobrir as raízes inconscientes da doença, ou seja, a função que ela exerceria na vida da pessoa doente.

***

Em 1917, Groddeck inicia uma correspondência com Freud que duraria em torno de 17 anos. Seria por influência de Groddeck, que o médico vienense introduziria na psicanálise o conceito de Id (“Es”, um pronome impessoal da língua alemã) que Groddeck já vinha utilizando há bastante tempo para se referir ao indivíduo. Freud era um entusiasta das ideias de Groddeck e exortou-o reiteradamente para que fizesse parte do movimento psicanalítico. Groddeck, por sua vez, preferindo a companhia dos pacientes no Sanatório, tentou durante muito tempo convencer Freud a visitá-lo em Baden-Baden, o que nunca aconteceu. Por isso, apesar das cartas trocadas, jamais saberemos o que poderia surgir de uma conversa face a face entre os dois pais da psicanálise.

***

Este artigo foi originalmente publicado em Benedita, ano 1, n. 1, junho de 2012.

O que é princípio do prazer?

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Como você lida com o seu passado? (final)

Vimos no post anterior que, de acordo com Vattimo, Nietzsche põe em oposição dois modos de se lidar com a história. O primeiro, que ele denomina “doença histórica” é a forma tradicional com a qual a cultura ocidental sempre encarou o passado, qual seja, como um emaranhado de eventos que devem ser conhecidos objetivamente sendo possível, para algumas cabeças pensantes (como Hegel, por exemplo) encontrar nessa concatenação de acontecimentos um sentido, isto é, um devir que se processa tendo em vista um objetivo final. A esse modo “doentio” de pensar a história, Nietzsche apresenta sua própria perspectiva, a qual não concebe a história nem como uma “verdade factual” que gradualmente descobrimos nem como uma fábula com final feliz. A história, para Nietzsche, é puro devir e os acontecimentos que se processam nesse devir alimentos que podemos recusar ou nos apropriar deles tendo em vista o quanto eles favorecem a nossa capacidade de agir e criar a qual é justamente aquilo que resiste à “hitoricização”.

Um passado traumático

O exercício da reflexão me leva a pensar que o processo de desenvolvimento da Psicanálise enquanto método de tratamento das neuroses experimentou dois momentos que podem dispostos analogamente aos dois modos de se pensar a história propostos por Nietzsche. Ainda que você, leitor, seja apenas superficialmente versado na teoria psicanalítica, provavelmente deve saber que antes de inventar a Psicanálise com a ajuda de suas brilhantes professoras histéricas, Freud utilizava a hipnose como técnica de tratamento. Ora, em que consiste o procedimento hipnótico? Supõe-se que para que o paciente seja curado de seus sintomas atuais ele precisa ser levado a reencontrar-se com as lembranças reais de seu passado relativas a eventos que foram a causa dos sintomas. Ao recordar o que o levou a produzi-los, o paciente poderia retroativamente reagir de maneira distinta aos eventos em questão e abdicar dos sintomas. Com efeito, esses haviam surgido porque o paciente havia reagido inadequadamente àqueles acontecimentos.

O encontro de Freud com o não-histórico

Por que Freud desistiu da hipnose e deu um jeito de inventar a Psicanálise? Porque ele foi se dando conta que freqüentemente a técnica hipnótica fracassava e isso porque parecia haver um fator que dificultava o acesso às lembranças, um elemento que impunha uma resistência ao trabalho terapêutico. Logo, a estratégia de invadir o território inimigo à força bruta com o auxílio da redução do limiar de consciência precisava ser revista, pois fortes muralhas se formavam no meio do caminho. Era preciso elaborar uma estratégia que contemplasse essas muralhas. Nasce, então, a Psicanálise como um método que vai buscar justamente compreender isso que bloqueia o acesso do sujeito à sua própria história.

E, pasmem, isso que o bloqueia é a própria vida! Não é a pulsão de morte, como muitos pensam. O ser não quer morrer. Pelo contrário, quer criar, se expandir, agir e só se torna apático, retraído e doente quando essa é a única forma de se defender daquilo que “aprendeu” a encarar como um perigo maior. A resistência, portanto, é a manifestação da vida em nós que resiste contra aquilo que considera um mal maior do que a dor do sintoma. Nesse sentido, quando Freud se depara com o fenômeno da resistência o que ele encontra é precisamente o que Nietzsche define como vida, isto é, como impulso para a criatividade e a ação. Parece contraditório, pois nos acostumamos a pensar a resistência apenas como um fator que dificulta o trabalho de análise. Mas quero chamar sua atenção para o fato de que ela só é um obstáculo para o alcance daquilo que para o sujeito é um mal maior.

A “doença histórica” na Psicanálise

Assim, poderíamos ver a fase pré-psicanalítica de Freud, com o uso da hipnose, como sendo o predomínio da “doença histórica” nietzschiana. Nesse momento o que se busca é a verdade dos fatos, escondida nos porões mentais das histéricas. Pergunta-se ao paciente quando começaram seus sintomas, quem estava lá, o que aconteceu, enfim, o objetivo é fazer uma historiografia do doente. Quando a vida irrompe na cena na forma da resistência, Freud se apercebe que não é possível fazer uma remontagem fria e objetiva da história. Ele nota que há algo ali que opta, afirmando ou negando determinadas realidades e que é preciso encarar o passado do doente tendo como guia esse elemento.

Torna-se preciso entender por que a vida negou determinado acontecimento e hoje insiste em não querer afirmá-lo. Via de regra, é por medo que ela o faz, como defesa contra uma realidade angustiante e imaginariamente aniquiladora. É justamente por não levar isso em conta que a hipnose fracassa, pois sua prática pressupõe que o simples encontro com a história é suficiente para eliminar o medo; é o pressuposto de que a história sendo a verdade objetiva é capaz por si só de devolver a saúde ao sujeito.

Muitos analistas hoje dizem que fazem Psicanálise, mas fundamentam sua prática nesse mesmo pressuposto: para eles é preciso mostrar a qualquer custo “a verdade” ao sujeito sem qualquer tipo de acolhimento que possa permitir ao doente se sentir seguro para conseguir lidar com sua própria história, isto é, sem o temor de ser aniquilado.

O que essa “doença histórica psicanalítica” (parafraseando Nietzsche) gera são sujeitos que se dizem analisados e conscientes de sua própria história (como provavelmente atestou uma banca de “passe”) e que continuam como os mesmos sintomas com os quais iniciaram a análise. Eles dizem que tais sintomas são “irredutíveis”, expressam seu modo de se relacionar com o mundo. Na verdade, não se trata de nada disso. Em geral, foram maltratados por analistas defensivamente silenciosos e continuam com os mesmos medos, com as mesmas defesas e, por não terem sido tratados corretamente, encontram uma saída na positivação de seus sintomas, considerando-os não mais como problemas, mas como “estilo”.

Portanto…

O pressuposto de uma psicanálise cujo modo de encarar o passado fosse análogo ao proposto por Nietzsche deveria vê-lo não como “a verdade do desejo”, mas sim como uma série de afirmações e negações feitas pela vida. É dessa dinâmica que emergem os sintomas e para levar o paciente a abdicar deles (na medida em que eles constituem formas restritas de vida) é preciso supor que há uma potência de vida guiando o enfrentamento do devir. Essa potência, que Nietzsche denomina de “força plástica”, precisa ser tornada consciente e fortalecida. Só assim o doente estará seguro o suficiente para estabelecer uma relação saudável com seu passado.