Para que adoecemos?

Suponho que a pergunta acima deva ter produzido nos leitores um leve estado de confusão. Afinal, a pergunta correta não seria: “Por que adoecemos?” em vez de “para que”? De fato, admito que não temos tido a experiência cotidiana de pensarmos nossas doenças como sendo destinadas a alguma finalidade. Por outro lado, não nos furtamos a atribuir a quase todas as nossas demais ações alguma motivação, ou seja, alguma intenção subjacente. Quando nos perguntam coisas como: “Para que você está trabalhando?” não titubeamos para fornecer uma série de razões: conseguir dinheiro, ajudar a família, sustentar um lar etc. Do mesmo modo ocorre com inúmeros outros comportamentos que emitimos no dia-a-dia: temos motivos para comer, para sair à noite, para estudar, para acessar o Facebook, para ir à academia etc. Recorri a tais exemplos apenas com o intuito de mostrar que boa parte da nossa vida é feita de ações que praticamos tendo em vista um objetivo final, um sentido, um propósito.

O que Freud explica

Essa dimensão da existência se tornou ainda mais larga a partir do final do século XIX quando Freud descobriu através do método psicanalítico que uma série de atos psíquicos e comportamentos que, até então, eram vistos como não sendo dotados de significado, se revelou prenhe de intenções e finalidades. Depois da psicanálise, se nos tornou impossível pensarmos os sonhos, os esquecimentos, os lapsos de escrita e todos os tipos de atos-falhos como não sendo carregados de intenções subjacentes, capazes de serem reveladas a partir de uma investigação metódica. Freud, portanto, ampliou ainda mais a esfera da experiência humana em que a subjetividade se faz presente. A partir de então, até os detalhes mais ínfimos da vida cotidiana passaram a receber a atenção dos psicanalistas com vistas à descoberta de tácitos desejos inconscientes.

O que Freud não quis explicar

Todavia, conquanto o maior êxito de Freud tenha sido o de levar a hipótese do inconsciente para a clínica psiquiátrica – o que o permitiu trabalhar com as neuroses a partir da concepção de que os sintomas possuiriam um sentido – a subjetividade encontrou aí, no campo das doenças psicológicas, sua fronteira. Em outras palavras, a psicanálise derrubou os limites da consciência a fim de submeter todas as manifestações psíquicas ao determinismo psíquico, o que só poderia acontecer pela admissão da hipótese do inconsciente. Entretanto, o corpo permaneceu do lado de fora do campo da subjetividade. Nesse sentido, depois de Freud todo acontecimento que está relacionado ao psiquismo possui sentido, finalidade, ou seja, pode ser interpretado a fim de que suas motivações sejam descobertas. Tudo o que diz respeito ao corpo, não obstante, permanece sem significação, submetido unicamente às leis da causalidade física. Dito de outro modo, Freud não avançou a ponto de fazer a subjetividade ultrapassar as fronteiras do psíquico e passar a englobar o corpo.

O modelo biomédico e seu dualismo

É por isso que a pergunta que figura no título deste texto nos parece tão desarrazoada. Acostumamo-nos, mesmo nós, psicanalistas, a pensar a doença a partir do ponto de vista do modelo biomédico, que é a racionalidade que fundamenta a medicina moderna, herdeira dos pressupostos modernos da ciência. Aliás, Freud sempre se manteve fiel a esse modelo, por mais revolucionário que fosse o pai da psicanálise.

Um dos pressupostos que estão na base do modelo biomédico é a separação entre corpo e psiquismo, a qual dá origem à conhecida distinção entre doenças somáticas e psíquicas, com o nebuloso campo psicossomático figurando entre um grupo e outro. Esse dualismo na biomedicina, ao entranhar-se no pensamento comum, nos leva a conceber como sendo impossível uma união indissociável entre subjetividade e corpo. O máximo que conseguimos admitir ainda hoje é que fatores emocionais podem ocasionar somatizações. Mas não é disso que eu estou falando. Não estou me referindo a incidências do psiquismo no corpo, pois, para admitir fenômenos dessa natureza, é preciso supor previamente que as duas instâncias que interagem estão originalmente separadas.

Quando falo de união indissociável entre subjetividade e corpo, estou pensando numa concepção que me permita pensar, por exemplo, que eu posso ficar resfriado não apenas por conta da entrada de um vírus no meu aparelho respiratório, mas para atender a determinados propósitos subjetivos como, por exemplo, evitar certos tipos de cheiros que me recordem lembranças desagradáveis, o que seria possível em função do entupimento do nariz, que é um dos sintomas do resfriado.

Georg Groddeck e a doença como criação

O único autor que, até hoje, vi admitir expressamente tal possibilidade foi Georg Groddeck, que, embora tenha se inserido no campo da psicanálise, não precisou do método psicanalítico para começar a pensar dessa forma. Diferentemente de Freud, que via no inconsciente (e, posteriormente, na pulsão) o link perdido entre corpo e psique, Groddeck não via a necessidade de haver um link! Afinal, corpo e psiquismo eram para ele tão-somente linguagens distintas que o Isso, a totalidade individual, utilizava para se expressar. Em outras palavras, para Groddeck, nós não seríamos seres divididos em uma parte psíquica e outra somática, mas sim indivíduos e, como a própria palavra já indica indivisíveis, integrais, singulares, que ora escolhem as manifestações do corpo, ora as da psique para exprimirem suas intenções.

É essa matriz de pensamento que permitiu a Groddeck pensar todo e qualquer tipo de doença como sendo marcado pela subjetividade, ou seja, como tendo propósito e sentido. Nesse ponto, o leitor pode me inquirir: “Ok, eu admito que, em alguns casos, nós podemos adoecer para atingirmos determinados fins, mas na grande maioria das vezes isso não ocorre. Vide os casos, por exemplo, de tuberculose, que são causados pelo bacilo, ou seja, independem das nossas intenções.”

A finalidade não é a causa única da doença

Respondo a esse questionamento com um argumento utilizado pelo próprio Groddeck: ora, qualquer pesquisador sério sabe que não basta a presença do bacilo de Koch para que alguém contraia a tuberculose. Os bacilos estão por aí, em milhares de corpos que jamais tiveram qualquer sintoma da doença. Por que, então, apenas alguns indivíduos contraem a enfermidade? A explicação que Groddeck propõe e que de forma alguma pretende esgotar o campo dos fatores etiológicos da doença, é de que os indivíduos que adoecem encontram algum propósito no adoecer, intenção que, evidentemente, é de qualidade inconsciente. Atentem para isso: Groddeck não está dizendo que a finalidade, o motivo que o sujeito encontrou para ficar doente é a causa da doença. Groddeck, aliás, abdica de qualquer tentativa de tentar solucionar o problema da causalidade das patologias. O autor não está dizendo que sem o bacilo e apenas com o propósito de ficar doente, é possível contrair tuberculose. O que ele está propondo é que em qualquer tipo de doença, o elemento subjetivo estará presente como um dos fatores em jogo no processo de eclosão da enfermidade.

As palavras e o corpo

O ponto nevrálgico do posicionamento de Groddeck repousa em uma constatação óbvia, que qualquer pessoa que já tenha chorado na vida é capaz de averiguar: trata-se da capacidade que têm as palavras, isto é, o mundo simbólico, de nos impactar, levando-nos à produção de determinadas reações orgânicas. Mencionei o exemplo do pranto: quantas vezes na vida nosso choro não foi desencadeado apenas por termos ouvido determinadas palavras ou pensado em outras? Ora, se as palavras exercem tal poder sobre nosso organismo, levando à produção de lágrimas, porque deveríamos suspeitar da possibilidade de que em outras condições, reações patológicas possam ser produzidas associadas a elementos simbólicos?

Dito de outro modo, Groddeck acerta ao propor que vejamos a doença não apenas como um distúrbio orgânico, mas, sobretudo, como uma criação individual, porque o ser humano se encontra totalmente imerso no universo simbólico. Embora seja na dimensão psíquica que os símbolos se manifestem de modo mais visível, todos nós temos a experiência cotidiana de perceber que nosso corpo reage a eles. Em decorrência, trata-se de um grave equívoco pensar que o simbólico, isto é, o campo em que os fenômenos são dotados de sentido, de propósitos, de “para quê”, engloba apenas o conjunto de nossas manifestações psíquicas.

Quando modificamos o modo tradicional que temos de pensar o corpo, qual seja, como uma máquina, um objeto que funciona dissociado dos meus processos psicológicos, e passamos a adotar o ponto de vista segundo o qual somos uma totalidade simbólica, que está imersa no universo da linguagem, nossa relação com a doença muda completamente. Basta um simples exercício de começar a verificar as conseqüências produzidas em seu cotidiano após o advento de uma doença. O que você teve que deixar de fazer? O que foi obrigado a fazer? Como as pessoas à sua volta passaram a se comportar depois que você adoeceu? O que o órgão sobre o qual a doença incidiu significa para você? Alguém que lhe é importante já ficou doente desse mesmo órgão? Ao se fazer tais perguntas e outras a elas associadas sempre que adoecer e respondê-las com sinceridade, você ficará surpreso ao perceber a funcionalidade que a patologia teve em seu cotidiano, mesmo lhe causando sofrimento.

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5 comentários sobre “Para que adoecemos?

  1. Virgínia.

    Olá, Lucas, interessante seu artigo. Todavia, se Freud, ao seu ver, se limitou a psique, outros depois dele, se detiveram ao corpo como, por exemplo, Wilhelm Reich.
    Também sou psicanalista, e na minha prática, posso perceber os efeitos da psique sobre o corpo, simultaneamente. Porém, para quem não possui essa experiência – clínica – nem sempre pode ser fácil ou mesmo tranquilo percebê-lo.

    Parabéns, pelo artigo.

    Virgínia.

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  2. Lucas Nápoli

    Olá Virgínia! Muito obrigado pelo comentário!

    De fato, Reich foi um dos poucos psicanalistas, assim como Groddeck, que ousaram pensar o corpo no campo psicanalítico. Conheço pouco de sua obra, mas sei que muitas de suas contribuições são férteis.

    Acho que mesmo fora da clínica, nossa experiência vivencial nos fornece a constatação de que somos um todo psicossomático. Penso que, em função da prevalência dos modelos conceituais da biomedicina, acostumamo-nos a pensar o corpo como uma máquina dissociada do restante de nossa experiência subjetiva.

    Um grande abraço e apareça sempre!

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  3. Boa tarde Lucas! Como vai? Espero que bem! Meu querido amigo, gostaria de tecer alguns comentários a respeito do seu post um tanto inusitado. Não há o que negar na asserção de que corpo e mente não devem ser vistos de forma divisível, nem de que há nas doenças todo um caráter simbólico que se assemelhe a algo parecido com “a psicopatologia da vida cotidiana” de Freud, mas de fato meu questionamento é em relação ao significado que uma patologia corporal tem. Tenho tido um pouco de contato com a teoria bioniana através de um psicanalista que tem formação médica, e algo que sempre discutimos é a questão do tal significado das doenças. A questão é que o tal médico, que foi oncologista e viveu próximo à doença que mais se caracteriza como doença psicossomática, o câncer, não usa essa ideia de que há uma significação por trás das doenças, e sim de que a doença é nada mais que a única alternativa (neste caso constitucionalmente falando) daquele indivíduo de lidar com as questões que envolvem a apreensão da realidade. Embasado na teoria bioniana, a qual considero excessivamente cartesiana, e que por isso talvez se encaixe tão bem ao pensamento biomédico atual, onde a realidade captada pelo individuo necessita ser simbolizada mentalmente, ele propõe (o médico psicanalista) que caso a realidade experienciada não seja simbolizada mentalmente, essa “energia sináptica” pode recorrer ao corpo e suas constituições genéticas para então dar um caminho aquela energia, sendo que torna-se improvável a presença de algo simbólico na patologia orgânica propriamente dita, uma vez que a tal “energia” vai dispor das condições genéticas mais propícias e presentes organicamente falando para representar a parcela da realidade não apreendida. Depois do exposto eu na verdade gostaria de saber qual sua opinião com relação a essa ideia, visto que ela também vê corpo e mente como algo indivisível, porém talvez numa relação um pouco diferente. Grande abraço Lucas!

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  4. Lucas Nápoli

    Olá Renan! Muito obrigado pelo pertinente comentário, que fornece a ocasião para esclarecer alguns aspectos do texto.
    Essa visão que você explanou acerca do transtorno psicossomático é a teoria clássica da psicossomática, que concebe o sintoma orgânico como a única forma que o sujeito encontrou de descarregar a intensidade pulsional que não encontrou escoamento por vias simbólicas.
    Minha dificuldade em aceitar essa proposta não é tanto de ordem prática, mas teórica. De fato, trata-se de uma hipótese bastante útil clinicamente, mas quando ela é trabalhada conceitualmente, teoricamente, ela se torna problemática pois a oposição entre corpo e mente ou entre natureza e cultura de alguma forma permanece, mesmo que sutilmente por detrás das idéias de pulsão e simbólico. Assim, uma decorrência natural desse posicionamento é pensar que o corpo entregue às suas próprias intensidades produz doença e que é necessário o simbólico (a razão) para organizar a experiência e impedir que o adoecimento emerja. A hipótese do Isso, a meu ver, elimina tais dificuldades sem prescindir da ideia de que o sintoma orgânico pode ser uma espécie de única saída encontrada pelo sujeito. A diferença é que para Groddeck não é possível concebê-lo como uma formação a-simbólica, pois isso equivaleria a separar a dimensão corporal da dimensão psíquica à qual se associa tradicionalmente o simbolismo.

    Não sei se conseguir expressar de forma clara meu posicionamento. Podemos continuar conversando.
    Um forte abraço!

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  5. Pingback: O eu é uma ilusão | Lucas Nápoli

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