Muito além da inclusão: um olhar menos ingênuo sobre o tema da deficiência

Enquanto a discussão aqui no Brasil sobre o tema da deficiência se restringe à problemática da inclusão e da acessibilidade, nos Estados Unidos e na Inglaterra o assunto tem sido explorado há pelo menos uns 30 anos sob diferentes ângulos e focalizando aspectos os mais diversos, desde os critérios para considerar uma pessoa como deficiente até a formação de grupos identitários com base em atributos físicos tradicionalmente vistos como sinais de deficiência.

Esse campo de estudo é tão vasto naqueles países que há programas de pós-graduação stricto sensu especializados no tema da deficiência. Quem estuda nesses programas se torna mestre ou doutor em “Disability Studies”. Disability seria a palavra inglesa correspondente ao termo deficiência em português. No entanto, o significado da palavra tem sido tão problematizado que não se poderia fazer uma correspondência imediata entre os dois vocábulos. Isso porque aqui no Brasil estamos ainda longe do questionamento que os acadêmicos dos “disability studies” fazem quanto à origem e ao processo de produção do que nós chamamos de deficiência.

Por exemplo: quando vemos um cadeirante, isto é, alguém que utiliza uma cadeira de rodas por não poder se locomover com as pernas, nossa tendência é pensar de imediato: “eis um deficiente”. Os teóricos dos “disability studies” vão questionar justamente a fidedignidade desse pensamento. Eles colocariam a pergunta: “Por que deveríamos considerar o cadeirante como deficiente e não apenas como uma pessoa que se locomove de um modo diferente?” Ingenuamente poderíamos responder: “É óbvio: porque apesar de se locomover com a cadeira de rodas ele não possui o movimento das pernas. Logo, ele tem uma deficiência, algo lhe falta.” Nesse ponto o teórico treplicaria com uma distinção de conceitos que nos falta, mas que para os anglo-saxões já é um “bê-á-bá”: “Uma coisa é o fato de que o cadeirante não possui o movimento das pernas. Outra totalmente diferente é dizer que por conta disso ele é deficiente. No primeiro caso, trata-se de um impairment, isto é, uma lesão, uma anomalia. Esse impairment só se transformaria em uma deficiência caso o sujeito não pudesse contar com a cadeira de rodas ou, em contando com ela, não contasse com rampas e outras modificações de infra-estrutura que lhe permitissem se locomover para onde quisesse. Ou seja, a deficiência é produzida pela sociedade na medida em que ela não se adapta à condição diferenciada de alguns de seus membros. Portanto, um cadeirante só será deficiente numa sociedade com parcas adaptações como a brasileira. Mas nos países escandinavos, por exemplo, ele seria totalmente eficiente como qualquer pessoa que se locomove com as pernas.”

Viram só como é complicado traduzir disability por deficiência? É que para nós o conceito de deficiência se refere a uma determinada condição corporal, o que faria com que o termo estivesse mais próximo do impairment citado pelo nosso interlocutor virtual. O impairment é aquilo que a medicina diz que num determinado corpo destoa de uma anatomia ou uma performance padrão. Se essa anomalia vai acarretar uma disability que, portanto, poderia ser melhor traduzida por incapacidade, isso vai depender da sociedade. Se a sociedade se adapta à anomalia, essa não implicará em incapacidade. Esse é o argumento do chamado “modelo social da disability” que se contrapõe a um “modelo médico” o qual não faz diferenciação entre impairment e disability, pois considera que toda lesão é necessariamente incapacitante, ou seja, o cadeirante é incapacitado independentemente do contexto social ser adaptativo ou não. Ele é incapacitado, isto é, ele tem uma disability, porque ele não se locomove como uma pessoa normal.

É justamente essa categoria do normal que será o principal alvo de crítica do modelo social, pois seria ela que forjaria a naturalização da disability, isto é, faria com que essa não fosse entendida como um problema social e sim como algo inerente ao indivíduo. Como vemos o modo como a deficiência é encarada no Brasil está muito mais próxima do modelo médico do que do modelo social.

A primeira tentativa em terras tupiniquins de estudar de forma crítica o tema partindo justamente dessas contribuições dos autores de língua inglesa está sendo realizada atualmente no Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) por alguns nomes mais importantes das Ciências Humanas no país como Jurandir Freire Costa, Benílton Bezerra Jr. e Francisco Ortega. Desde o início do ano tenho acompanhado cursos dados por esses pesquisadores sobre o tema. Foi a partir desses cursos que extraí as informações que trouxe nesse post. Trata-se apenas da ponta de um iceberg que engloba questões mais profundas como as conseqüências da distinção entre impairment e disability para o tema da identidade. Em breve trarei novas reflexões a esse respeito.

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