Todos os leitores familiarizados com os escritos e as transcrições das aulas do Seminário de Jacques Lacan sabem que a concisão não era um aspecto valorizado pelo grande analista francês. Lacan adorava dar voltas e voltas em torno de um tema, como se estivesse demonstrando em seu próprio discurso a incapacidade da linguagem de dar conta do real.
Apesar disso, o autor também era mestre em propor fórmulas, isto é, enunciados curtos, esquemáticos, que resumiam um conjunto de proposições e raciocínios. Algumas delas acabavam servindo como uma espécie de lamparina no interior de seu quase sempre obscuro castelo teórico. É esse o caso, por exemplo, de “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” e “o sintoma é o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito”, enunciados que funcionam como ótimas chaves de leitura para a primeira fase de seu ensino.
No entanto, algumas de suas fórmulas se apresentam como uma espécie de charada ou provocação, estimulando o leitor a continuar se aprofundando na esperança de que em algum momento ele irá explicá-las – o que geralmente não acontece. Esse é, por exemplo, o caso dos enunciados “a mulher não existe” e “o sujeito é aquilo que um significante representa para outro significante”, os quais já foram comentados aqui. A afirmação de que “a relação sexual não existe”, que me proponho a esclarecer agora, também me parece se encaixar nesse caso.
Não há encaixe
Primeiramente é preciso dizer que na frase original que Lacan proferiu em francês (“Il n’y a pas de rapport sexuel”), traduzida por alguns autores como “Não há relação sexual”, o analista francês utiliza a palavra rapport. Apesar de ser tradicionalmente traduzido em português por “relação”, na língua francesa esse termo possui uma conotação mais específica que nos ajuda a entender o que Lacan queria dizer com essa curiosa afirmação. De fato, a palavra rapport designa uma relação de complementariedade, de encaixe, onde os elementos são mutuamente proporcionais. Trata-se do tipo de relação que existe, por exemplo, entre um plugue de um aparelho doméstico e uma tomada. Nesse sentido, quando Lacan diz que “não há relação sexual”, o que ele está dizendo é que entre os seres humanos, no campo do amor, não existe relações de encaixe perfeito. Em outras palavras, ninguém é o plugue ou a tomada de ninguém!
Neste momento você pode estar pensando: “Puxa, mas é só isso? Achei que essa frase do Lacan guardasse um significado mais profundo. É óbvio que não há encaixe perfeito numa relação entre seres humanos! Qualquer pessoa que já tenha estado num relacionamento amoroso sabe disso”. Você está certo, caro leitor. Trata-se de uma constatação evidente. Mas, então, por que cargas d’água Lacan sentiu necessidade de enunciar essa fórmula já que se trata de algo tão óbvio? Ora, por que apesar de evidente e facilmente detectável, nós insistimos o tempo todo em tapar o sol com a peneira! Sim: a inexistência da relação sexual significa que não existe, não existirá e nunca existiu um conhecimento, um saber, um manual que seja capaz de nos ensinar o que fazer para termos relações amorosas harmônicas e plenamente satisfatórias para ambos os parceiros. Dito de outro modo, a natureza não nos presentou com a fórmula do amor. Em vez disso, ela nos deu a linguagem.
No entanto, é possível verificar no senso comum e até mesmo na ciência diversas tentativas de descobrir esse saber que irá proporcionar o encaixe perfeito entre os parceiros amorosos. Não acredita? Então faça o teste: abra agora mesmo o Google e coloque na barra de busca: “como ter um casamento feliz”. Se todos nós estivéssemos plenamente convencidos de que a relação sexual não existe, a única resposta que você talvez encontraria para essa demanda seria: “Vá se virar!”. Em vez disso, você irá se deparar com uma série de sites em que psicólogos, filósofos, médicos, padres, pastores, astrólogos etc. dizem quais são os 5, 10, 15, 20, não-sei-quantos passos para estabelecer uma relação de encaixe perfeito com seu parceiro amoroso. Em outras palavras, o que essas pessoas estão dizendo é que a relação sexual existe, sim, e elas sabem a fórmula!
A singularidade do desejo
Dizer que a relação sexual não existe significa dizer que o nosso comportamento afetivo-sexual não está submetido a ciclos biológicos pré-definidos, como acontece com a imensa maioria dos outros animais. No caso dos seres humanos, a inexistência de um instinto sexual faz com que a nossa maneira de desejar, de amar e de gozar seja construída de forma absolutamente singular. Nesse sentido, o encontro sexual entre duas pessoas significa um encontro entre dois mundos distintos, que não foram forjados para se complementarem. Utilizando o exemplo do plugue e da tomada como analogia, é como se eles tivessem sido elaborados de modo completamente independente, de sorte que o encaixe entre se torna impossível.
Então a fórmula “a relação sexual não existe” significa que nós nunca seremos felizes no amor? Sim, se por felicidade entendermos um estado de harmonia e completude na relação com o outro. Não estando submetido a um ciclo biológico padronizado, nosso desejo obedece a coordenadas próprias, singulares, ou seja, necessariamente incapazes de se encaixarem com perfeição nas coordenadas do desejo do outro, que é tão singular quanto o nosso. Por outro lado, se por felicidade entendermos a capacidade de nos sentirmos reais, espontâneos e criativos, a inexistência da relação sexual pode ser, inclusive, uma condição para a felicidade. A impossibilidade do encaixe abre espaço para a invenção, para a surpresa, para a construção de fórmulas provisórias, contingentes, singulares de amar, destituídas de idealizações e permanentemente abertas ao acaso. Como disse o poeta carioca,
“O nosso amor a gente inventa
Pra se distrair
E quando acaba a gente pensa
Que ele nunca existiu”
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