O Inconsciente nos obriga a encenar as peças que nós mesmos escrevemos

O Inconsciente é constituído basicamente por ideias, pensamentos, raciocínios.

Mas são pensamentos relacionados a quê? Quais são os assuntos que servem de tema para as “cogitações” do Inconsciente?

Esses assuntos são as nossas FANTASIAS INFANTIS INCONSCIENTES. Trata-se de determinadas “crenças” que construímos na infância sobre algo que aconteceu e/ou que necessariamente acontecerá.

Por exemplo: uma mulher pode ter construído na infância a fantasia de que jamais seria capaz de se destacar porque sua irmã ocupou todo o espaço disponível diante do olhar dos pais. Essa mulher sente que não há lugar para ela no palco, apenas na plateia. Por isso, reprime o prazer de se exibir, de se destacar, de aparecer e passa a gozar com o tesão voyeur de ficar contemplando invejosamente a vida da irmã. Ela não se maquia, não se arruma, está sempre se escondendo, querendo passar desapercebida pela existência. Por quê? Porque, inconscientemente, ela nutre a fantasia de que somente a irmã pode ser protagonista.

Outro exemplo: um homem pode ter desenvolvido a fantasia de que não pode retirar a mãe do lugar de “mulher principal” da vida dele, pois, do contrário, o que seria dela, pobrezinha? Em função dessa fantasia, o indivíduo não consegue se relacionar com apenas uma mulher; ele nunca consegue ser fiel a nenhuma das suas parceiras. Não se trata apenas de uma falha moral. A questão é que, ao trair suas namoradas e esposas, ele deixa claro PARA SI MESMO que nenhuma delas é suficientemente especial para destronar a mãe, a única mulher a quem é, de fato, fiel.

As fantasias inconscientes, portanto, condicionam nossa realidade, funcionando como uma espécie de enredo escrito por nós mesmos e que somos obrigados a ENCENAR.

Refletindo sobre os exemplos acima, você consegue especular sobre alguma fantasia que possa estar direcionando sua vida? Se sim, coloque uma piscadinha 😉 nos comentários.


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Travessia da fantasia: tornar-se o que se era

A experiência psicanalítica evidencia que nós não vivemos na realidade objetiva, ou seja, aquela que independe do que pensamos, desejamos e imaginamos. Somos capazes de supor a existência de uma realidade objetiva (pois não sabemos se de fato ela existe) porque percebemos a insuficiência da realidade em que vivemos. Algo nela sempre falta ou sobra. Há sempre alguma coisa que não fecha, uma inconsistência, um defeito, que nos faz suspeitar de sua fidedignidade: “Será que posso mesmo confiar que a realidade seja assim como eu acho que é?”.

Quando essa pergunta começa a se tornar mais frequente e a gerar angústia, as pessoas costumam procurar terapia. Alguns métodos de tratamento ajudam o paciente a “remendar” o tecido de sua realidade que começou a se romper e a revelar os buracos que o constituem. São métodos que trabalham com exercícios, reorganização do pensamento, autocontrole etc. e que têm um valor inegável, embora se baseiem numa concepção um tanto ingênua da realidade.

Por saber que nós não vivemos na realidade objetiva, mas numa realidade que Freud chamou de “psíquica”, a Psicanálise trabalha de outra forma. O fato de nossa realidade ser fundamentalmente psíquica significa que ela é estruturada por fantasias e, mais especificamente, por uma “fantasia fundamental” (conceito inventado pelo psicanalista francês Jacques Lacan). O objetivo da Psicanálise não é o de eliminar essa fantasia com a suposta justificativa de fazer o sujeito “encarar a realidade”. Não! Se a fantasia fosse destruída, o paciente cairia justamente naquilo que está para-além da nossa realidade, o Real, dimensão com a qual não podemos lidar diretamente.

Aliás, a fantasia fundamental é justamente a tela que nós construímos para nos protegermos do Real. O problema é que, enquanto não tomamos consciência da fantasia, enquanto fingimos que ela não existe, somos dominados por ela, tal como uma marionete nas mãos do titereiro. Em outras palavras, sofremos, não conseguimos sair do lugar, mas não sabemos o motivo. Por isso, a Psicanálise não busca fazer remendos na realidade psíquica do paciente, pois isso implicaria em mantê-lo assujeitado à fantasia. Entendemos que todas as fantasias são furadas mesmo — e é bom que seja assim… 😉

A proposta da Psicanálise é a de ajudar o paciente a “atravessar” sua fantasia. O que significa isso? Significa ajudá-lo a responsabilizar-se pelo próprio desejo, ou seja, sair do lugar de objeto e tornar-se sujeito de sua realidade, o que implica em conseguir lidar criativamente com sua fantasia e não submeter-se passivamente a ela . Como disse Freud em sua célebre máxima no final da conferência “A Dissecção da Personalidade Psíquica”, o objetivo da Psicanálise é que “Wo Es war, soll Ich werden”, ou seja, que nos tornemos o que já éramos.

[Vídeo] Psicossomática e Psicanálise V: Pierre Marty

Psicossomática e Psicanálise V: Pierre Marty

A psicossomática é uma estrutura clínica específica, distinta da neurose, da psicose e da perversão ou indivíduos neuróticos, psicóticos e perversos também podem empregar a doença orgânica como defesa? Essa é a principal pergunta que o psicanalista francês Pierre Marty (1918-1993) procurou responder através de seus estudos com pacientes psicossomáticos. Insatisfeito com as idéias veiculadas nos EUA pelo psicanalista húngaro Franz Alexander na década de 30 acerca das relações entre o inconsciente e doenças somáticas, Marty, juntamente com alguns colegas, fundaram aquela que ficou conhecida como Escola Francesa de Psicossomática. Alexander havia propagado nos EUA uma tese que acabou se tornando parte do senso comum segundo a qual conflitos inconscientes muitos intensos gerariam um estado de tensão tamanha que, ao se tornar crônico, acabaria por prejudicar o funcionamento de determinados órgãos.

Marty discordava dessa idéia, pois suas experiências clínicas lhe mostravam que não havia essa relação mecânica direta entre conflitos inconscientes crônicos e doenças orgânicas. Ele notou que, conquanto muitos pacientes apresentassem conflitos dessa natureza, apenas alguns deles somatizavam, de modo que era preciso supor a existência de outro fator para explicar porque isso acontecia.

O paciente jornalista

Fazendo, a partir da clínica, um minucioso estudo comparativo sobre os pacientes que somatizavam, Marty chegou à conclusão de que tais indivíduos possuíam características específicas que os diferenciavam dos demais pacientes. Foi inevitável, portanto, constatar a existência de uma estrutura psicossomática, com modos de manifestação e defesas singulares. A característica mais explícita do comportamento desses pacientes, observada por Marty e seus colaboradores era o modo como eles faziam uso das palavras durante a análise. Enquanto os neuróticos usavam e abusavam da regra da associação livre para “viajarem”, empregando voluntária e involuntariamente metáforas para falarem sobre suas experiências e dedicavam a maior parte do tempo de análise para falarem de si, de suas fantasias, medos, sentimentos etc., os pacientes somatizantes apresentavam um discurso mecânico, controlado, carente de metáforas e essencialmente voltado para a descrição da realidade externa. Eram uma espécie de jornalistas de seu cotidiano. Já tive contato com pacientes assim: todas as sessões eles te trazem um resumão do que aconteceu na semana anterior, numa linguagem “behavioristicamente” fria. Enfim, para utilizar uma analogia, é como se, na análise, os neuróticos fizessem poesia e prosa e os somatizantes uma mera reportagem.

Vidas no real

Marty observou que esse tipo de discurso pobre era reflexo de um tipo de estruturação psíquica igualmente precária, que ele chamou de “pensamento operatório”, “funcionamento operatório” ou “vida operatória”. Trata-se de um tipo de psiquismo que faz uso das representações como meros instrumentos de descrição da realidade externa. Falta ali, por exemplo, a capacidade para falar e pensar numa caixinha de jóias como símbolo do órgão sexual feminino (Cf. o “Caso Dora” de Freud); uma caixinha de jóias é sempre uma caixinha de jóias nesse tipo de psiquismo. Com Freud, nós aprendemos que a significação sexual de determinado pensamento, fala ou comportamento é resultante do investimento de libido (energia sexual) nesses elementos com vistas à consecução de uma satisfação que não pôde ser levada a cabo na origem, isto é, nos elementos recalcados. Diz-se que a libido se desloca desses para aqueles.

Se, portanto, a fala e o pensamento dos pacientes somatizantes não servem à simbolização, ou seja, não recebem significação sexual, isso significa que tais elementos não são investidos de libido. Freud nos mostrou que a fantasia é o suporte que permite esses investimentos. Com efeito, do ponto de vista freudiano, a fantasia é a construção imaginária que o sujeito produz para se consolar de uma frustração. Lacan, por seu turno, nos fez ver que a nossa relação com o mundo (leia-se: desejo do Outro) é sempre frustrante, o que leva todos nós a erigirmos uma fantasia fundamental que passa a nos servir como uma espécie de viseira que nos impede de nos depararmos com essa frustração inerente à existência. É a partir da fantasia que são produzidas todas as formações do inconsciente (sintoma, atos falhos, lapsos, sonhos etc.) que passam, então, a ser encarregadas de veicular a libido cuja descarga total é sempre frustrada.

Marty notou acertadamente que nos pacientes somatizantes há uma “carência fantasmática”, ou seja, neles falta essa dimensão da fantasia para servir de escoadouro da libido. O que acontece, então, com a energia libidinal, já que ela não tem vazão pela fantasia?

Atuar e adoecer: destinos da libido

Ora, outra lição que Freud nos ensinou é a de que a pulsão sexual está imperativamente direcionada para a descarga, de modo que essa tem que acontecer de uma maneira ou de outra. Logo, se nos pacientes somatizantes a libido não é descarregada pela via fantasmática, isto é, através das representações psíquicas, isso significa que ela se encontra livre e pronta para ser descarregada por onde der. No caso dos pacientes somatizantes, o “gargalo” disponível será, evidentemente, o corpo.

No entanto, a descarga pela via do corpo não significa necessariamente uma doença psicossomática. Em vez da somatização, o sujeito pode fazer uso de uma defesa que Freud chamou de “acting-out”, isto é, uma atuação. Recordo-me de uma paciente com um modo de funcionamento explicitamente operatório que, um mês após ter conhecido pela internet um rapaz que morava num país distante, resolveu ir até ele ignorando completamente os riscos que corria ao fazer uma viagem internacional para encontrar alguém que mal conhecia. “Fui sem pensar”, disse ela. É exatamente essa ação desvinculada de um pensar prévio o que caracteriza a atuação. Essa, no entanto, não protege o sujeito contra a doença psicossomática, a qual se constitui na via privilegiada de descarga de libido nos pacientes de funcionamento operatório.

Concluindo

Para Pierre Marty a doença psicossomática é uma estratégia defensiva empregada por determinados pacientes como forma de se livrar do excesso libidinal que não encontrou descarga através da fantasia e das manifestações decorrentes dela. Tais pacientes não são nem neuróticos, nem psicóticos e nem perversos. Possuem uma estrutura psíquica específica caracterizada por uma carência fantasmática que enseja um funcionamento operatório manifesto em um discurso pobre em simbolização e voltado para a descrição da realidade externa.

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Se você quiser saber um pouco mais sobre as idéias de Pierre Marty, leia gratuitamente o excelente artigo escrito por Wilson de Campos Vieira, “A psicossomática de Pierre Marty” para a coletânea “Psicossoma: psicossomática psicanalítica”, clicando neste link.