Atos falhos: você nunca se engana por acaso

Toda vez que me pedem uma indicação de livro introdutório sobre Psicanálise, eu recomendo “A Psicopatologia da Vida Cotidiana”, do Freud.

Por quê? — Porque o requisito fundamental para que uma pessoa comece a estudar Psicanálise é a constatação de que o Inconsciente é uma suposição indispensável para a compreensão do comportamento humano.

E “A Psicopatologia da Vida Cotidiana” é a obra freudiana mais convincente em relação a isso.

Nela, o pai da Psicanálise reúne centenas de exemplos de esquecimentos, lapsos, pequenos erros, ou seja, tudo aquilo que a gente costuma chamar de “atos falhos” e mostra que eles só podem ser explicados se admitirmos a existência de pensamentos inconscientes.

Tomemos um exemplo clínico “baseado em fatos reais”:

Durante um encontro casual, uma jovem se desespera ao verificar que a data de validade do preservativo utilizado por seu parceiro era dois anos atrás.

No dia seguinte, mais calma, ela pega novamente a embalagem do produto e constata que, na verdade, 2023 era a data de fabricação e não de validade.

Aqueles que se recusam a enxergar a realidade poderiam argumentar que esse engano acontecera simplesmente porque a moça estava distraída ou ansiosa.

É óbvio que tais estados psíquicos podem ter FACILITADO a ocorrência do erro, mas não podem ser tomados como a CAUSA do ato falho.

Se fosse assim, nós só cometeríamos lapsos e enganos quando estivéssemos distraídos, com sono ou emocionalmente perturbados.

Mas a experiência mostra que é perfeitamente possível, por exemplo, trocar o nome de uma pessoa pelo de outra estando suficientemente alerta e tranquilo.

E mesmo se os atos falhos só acontecessem quando nossa atenção estivesse prejudicada, ainda restariam duas perguntas sem resposta:

1. Por que, então, eles NÃO ocorrem SEMPRE que estamos com a atenção comprometida?

2. Por que, num lapso de fala, por exemplo, trocaríamos o nome da pessoa X pelo da pessoa Y e não das pessoas A, B, C ou D?

Percebe? Não há como explicar os atos falhos sem supor que certos pensamentos inconscientes se colocam entre a intenção do sujeito de fazer X e o ato propriamente dito.

No caso do exemplo mencionado acima, podemos inferir que, na hora em que a jovem olhou para a inscrição “Fabricação: mês tal de 2023”, certos pensamentos inconscientes de natureza autopunitiva distorceram sua percepção, de tal modo que ela foi levada a concluir equivocadamente que aquela era a data de validade do preservativo.

Se você conhecesse a paciente em questão e soubesse o quão problemática e culposa é a relação dela com a própria sexualidade, essa explicação pareceria tão óbvia para você quanto é para mim.

Concluindo: os atos falhos mostram (até mais do que os sonhos, na minha opinião) que a existência do Inconsciente, tal como descrito pela Psicanálise, não é uma especulação dispensável, mas uma suposição absolutamente necessária para a compreensão do comportamento humano.


🔎 Os atos falhos não são simples distrações.

Eles são janelas para aquilo que você tenta esconder de si mesmo.

E a Psicanálise é a chave para entender o que se passa por trás desses pequenos “erros”.

Na Confraria Analítica, mergulhamos fundo nessas questões.

Toda semana, novas aulas ajudam você a compreender conceitos como este, de forma clara, organizada e aplicada à clínica.

🎓 Se você quer realmente entender o que Freud quis dizer quando falou de Inconsciente, está na hora de dar o próximo passo.

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O sadismo nosso de cada dia

Nós geralmente temos um olhar bastante pejorativo sobre o sadismo.

Via de regra, quando qualificamos uma pessoa como sádica, estamos acusando-a de ser cruel e insensível.

E ao fazer isso, assumimos tacitamente que o sadismo seria um atributo presente apenas em ALGUMAS pessoas, não em todas.

Mas será que é assim mesmo?

Será que apenas uma parcela dos indivíduos sente prazer com a dor alheia?

A experiência mostra que não.

Eu duvido muito, por exemplo, que você nunca tenha rido de alguém que cometeu um erro ou vivenciou algum revés.

Muitas cenas de filmes de comédia são construídas justamente em torno de personagens que sofrem quedas, tropeços ou são ridicularizados.

Mas me parece que não há espaço onde o sadismo nosso de cada dia se manifeste de forma mais explícita do que nos esportes, especialmente no futebol.

Todo bom cruzeirense, como eu, vibra não só com as (incontáveis) conquistas do seu time, mas também com os (inúmeros) fracassos do Atlético, seu maior rival.

Em 2006, nos jogos entre as duas equipes, nossa torcida entoava, a plenos pulmões, o seguinte cântico:

“Ei, você aí, 2003 eu vi [o Cruzeiro ser campeão brasileiro], 2005 eu ri [com a ida do Atlético para a Série B]”.

Às vezes, é mais gostoso ver o Galo tomando uma goleada do que assistir à Raposa obtendo uma vitória protocolar contra um time pequeno qualquer.

Evidentemente, o mesmo acontece do lado dos torcedores alvinegros:

No Brasileirão de 2019, por exemplo, o Atlético ficou apenas na 13ª colocação, mas sua torcida explodiu em felicidade com o rebaixamento do Cruzeiro.

Ora, em todas essas situações, assistimos a manifestações indiscutivelmente sádicas: a satisfação de um grupo está sendo causada pelo sofrimento do outro.

Isso mostra que todos nós temos uma inclinação natural para o sadismo.

Reconhecê-la é o primeiro passo para não deixá-la se transformar em violência.

Quando temos consciência de nosso sadismo, podemos rir, torcer e até jogar com ele, sem machucar ninguém de verdade.

Portanto, o problema não é ter prazer com a dor do outro, mas fingir que não temos.

Quando assumimos esse lado, ganhamos a chance de transformá-lo em algo criativo, e não destrutivo.


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[Vídeo] As 4 características principais do Inconsciente


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Freud é Freud, Lacan é Lacan

Quando estamos estudando o pensamento de um autor, é muito importante separarmos o que ele efetivamente disse das RELEITURAS propostas por seus comentadores.

Em que pese o fato de ter formulado uma nova e robusta matriz teórica em Psicanálise, Jacques Lacan pode ser considerado um grande comentador da obra freudiana, talvez o maior de todos.

Ao exercer esse papel, Lacan muitas vezes expôs discordâncias em relação a certos pontos da teoria de Freud.

Muitos analistas, no entanto, seduzidos pela brilhante retórica lacaniana, acabam recalcando tais discordâncias e passam a achar que o que Lacan está propondo corresponde exatamente ao que Freud disse.

Isso acontece, por exemplo, na questão do desenvolvimento psicossexual.

Lá no Seminário XI, o analista francês faz questão de dizer: Freud acredita na maturação da pulsão sexual; eu, não.

Sabe esse negócio de fase oral, fase anal, fase fálica, período de latência e fase genital?

Então… Tem gente que acha que essa caracterização do desenvolvimento psicossexual em fases é irrelevante na obra de Freud porque Lacan não está de acordo com ela.

Quem pensa assim acredita que Lacan conseguiu extrair uma suposta “verdade verdadeira” que estaria implícita no texto freudiano.

Trata-se, a meu ver, de um baita engano!

Lacan não está para Freud como Paulo de Tarso está para Cristo.

Apesar dos evidentes pontos de confluência, trata-se de concepções teóricas distintas.

Sobre essa questão das fases do desenvolvimento psicossexual, não resta a menor dúvida de que Freud a considerava como um elemento importantíssimo em sua teoria.

Tanto é assim que num de seus últimos textos, o “Esboço de Psicanálise”, ele dedica um capítulo inteiro para falar do desenvolvimento da função sexual, entendendo-o como um processo de maturação biológica com começo, meio e fim.

Freud pensava assim. Lacan, não.

Você não é obrigado a concordar com Freud e pode preferir a leitura lacaniana, mas é preciso ter a honestidade intelectual de admitir que um fala uma coisa e o outro fala outra.

Quem está na CONFRARIA ANALÍTICA receberá ainda hoje uma pequena aula especial sobre essas diferenças entre as visões de Freud e de Lacan sobre o desenvolvimento da sexualidade.


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“Os histéricos sofrem de reminiscências”

A frase que dá título a esta postagem foi enunciada por Freud como uma fórmula conclusiva a respeito da origem dos sintomas dos primeiros pacientes histéricos que ele e Breuer atendiam lá no fim do século XIX.

Freud constatou que os sintomas físicos apresentados pelos histéricos eram uma espécie de monumento erguido em homenagem a um trauma emocional vivido há meses ou mesmo há anos. Os sentimentos que outrora não haviam sido expressos encontravam na doença uma forma de serem repetidamente descarregados.

Pensar o adoecimento emocional como resquício de um passado mal digerido é uma das principais contribuições da Psicanálise para a Psicopatologia. Afinal, quando olhamos ingenuamente para alguém em sofrimento, tendemos a pensar que se trata de uma resposta do sujeito a coisas que estão acontecendo atualmente com ele. De fato, as circunstâncias presentes são fatores importantes e devem ser levados em conta, mas o que aprendemos com a Psicanálise é que, na maioria dos casos, o que acontece no presente funciona apenas como um GATILHO para a evocação de traumas do passado.

Uma pessoa pode, por exemplo, desenvolver um episódio depressivo após ter sido demitida do trabalho. Isso não significa, contudo, que foi a demissão o fator que efetivamente causou a depressão. É muito mais provável que o fato de ter sido mandado embora tenha ATUALIZADO para esse sujeito outras “demissões” sofridas por ele na adolescência ou na infância e das quais nunca conseguiu de fato esquecer, como o período em que ficou distante da mãe e fantasiou que ela o havia abandonado.

Um dos objetivos da Psicanálise é alterar o modo como o paciente se relaciona com seu passado. Afinal, quem procura a ajuda de um analista o faz justamente por não suportar mais sofrer as consequências de viver fugindo da própria história. No divã, o paciente é convidado a integrar o passado, único caminho possível para evitar que ele continue se presentificando.

O que é esse tal de gozo em Psicanálise?

Quando a gente pensa na palavra “gozo”, imediatamente somos remetidos à esfera sexual. Afinal, essa palavra é mais frequentemente utilizada no discurso comum como sinônimo de orgasmo.

Numa acepção um pouco mais jurídica, por assim dizer, gozo designa também o uso ou o desfrute de algo, como quando se diz que um trabalhador está “em pleno gozo de suas férias”.

O conceito de gozo em Psicanálise tem relação com esses dois sentidos da palavra, embora não possa ser reduzido a nenhum deles.

Esse termo foi escolhido por Lacan para nomear uma experiência que Freud descreveu, mas não batizou. Refiro-me à experiência da SATISFAÇÃO SEXUAL INCONSCIENTE.

Quem aqui conhece um pouquinho de Psicanálise, sabe que Freud descobriu que muitos dos nossos problemas emocionais são, na verdade, a expressão disfarçada de impulsos sexuais reprimidos. Dito de forma mais simples, a gente se satisfaz sexualmente por meio da doença.

Talvez você esteja se perguntando: “Uai, Lucas, mas como assim? Quando estamos emocionalmente doentes, o que sentimos é dor e sofrimento e não prazer. Como, então, Freud pode dizer que estamos satisfazendo impulsos sexuais por meio da doença?”.

É aí que entra o conceito de gozo. Deixa eu te explicar: como a gente reprime certos impulsos sexuais, não podemos experimentá-los conscientemente. Justamente por isso é que só conseguimos descarregá-los disfarçadamente por meio dos sintomas. Logo, a satisfação desses impulsos é feita de forma inconsciente. Conscientemente sinto dor e sofrimento, mas inconscientemente estou… gozando!

O conceito de gozo serve, portanto, para designar tanto essa experiência de “orgasmo” que a gente experimenta sem saber por meio do sofrimento quanto o próprio uso/desfrute dos problemas emocionais para a obtenção de satisfação sexual. É por isso que os psicanalistas costumam dizer coisas como “Essa pessoa está gozando com esse relacionamento doentio”.

De fato, essa é uma das descobertas mais revolucionárias da Psicanálise: a de que podemos gozar com gemidos tanto de prazer quanto de dor.

[Vídeo] O que é o ego em Psicanálise?

Neste vídeo você entenderá de uma vez por todas o conceito de ego em Psicanálise.

Este é o segundo episódio da série em que explico a segunda tópica do aparelho psíquico de Freud. P. S.: Houve um pequeno problema de sincronização entre o áudio e o vídeo a partir do minuto 12, mas isso não comprometeu a explicação. Desculpem!

[Palestra completa] Caia no Real: a arte de viver sem expectativas

[Vídeo] Psicanálise: questionando o óbvio há mais de 100 anos

[Vídeo] Recado Rápido #11 – Formação reativa

Freud deu o nome de formação reativa a um mecanismo de defesa que consiste na expressão de sentimentos, atitudes, pensamentos e comportamentos cujo conteúdo é diametralmente oposto àquele que foi recalcado. O exemplo mais clássico dessa operação subjetiva é do sujeito que faz uso do moralismo excessivo para compensar “do lado de fora” as intensas fantasias eróticas inconscientes que se manifestam “do lado de dentro”. Neste 11º recado rápido, faço um breve comentário sobre esse curioso mecanismo.

Quando o analista não se apaga (parte 2)

SmoochesSándor Ferenczi, analista húngaro cuja obra tem sido injustamente pouco valorizada nos cursos de psicologia do Brasil, foi certamente um dos pioneiros no questionamento da neutralidade do analista. Esse questionamento se deu, sobretudo, em virtude dos efeitos colaterais produzidos pela aplicação do que Ferenczi chamou de “técnica ativa”, uma tática clínica que pretendia radicalizar o princípio de abstinência freudiano. A técnica ativa consistia basicamente em exortar o paciente a adotar certos comportamentos (como enfrentar diretamente uma fobia através da aproximação ao objeto fóbico, por exemplo) e proibi-lo de executar outros (como certas manias ou tiques, hábitos considerados equivalentes à masturbação). O objetivo era impedir que o paciente utilizasse suas inibições ou comportamentos, principalmente no setting analítico, como meio de descarga pulsional. Ferenczi observava que, ao ter sua tensão psíquica aumentada dessa maneira, o doente não poderia evitar o trabalho de rememoração e elaboração dos conteúdos recalcados, acelerando o processo analítico. Vale lembrar que, ao formular o princípio de abstinência segundo o qual o analista não deve atender a nenhuma demanda do paciente, Freud tinha em mente a mesma intenção: aumentar a tensão psíquica através da frustração da demanda e, com isso, facilitar o aparecimento do material recalcado. O aspecto inovador da técnica ativa proposta por Ferenczi foi a constatação de que, a despeito de não poder utilizar o analista, o paciente poderia encontrar outros meios de descarga pulsional, como os ganhos secundários dos sintomas e certos comportamentos de caráter masturbatório. Portanto, seria preciso estancar também essas vias de descarga a fim de evitar que a análise estagnasse.

Do ponto de vista do objetivo clássico do tratamento psicanalítico, qual seja, promover a rememoração e integração psíquica dos conteúdos recalcados, a aplicação da técnica ativa proporcionou resultados bastante positivos. De fato, quando o paciente se submetia às injunções e proibições do analista, a análise que até então parecia estagnada e girando em círculos, apresentava um significativo avanço. O material recalcado passava a se manifestar de modo menos tolhido e o trabalho de elaboração adquiria um novo impulso. Contudo, do ponto de vista da relação entre paciente e analista, a técnica ativa produzia efeitos de natureza iatrogênica. O terapeuta inevitavelmente acabava ocupando o lugar de mestre – posição que Freud sempre considerou contrária aos objetivos da psicanálise – e o paciente, em contrapartida, colocava-se numa posição de submissão a qual, como o próprio Ferenczi percebeu, frequentemente era utilizada para esconder sentimentos de desconfiança, incredulidade e hostilidade em relação ao analista.

A partir da constatação desses efeitos colaterais da técnica ativa e de uma reflexão renovada sobre o papel do da fator traumático na causação das neuroses, Ferenczi chegaria à conclusão que o faria questionar o princípio de abstinência e a neutralidade do analista. Ferenczi notou que esse lugar de sujeição ao terapeuta que o paciente era obrigado a ocupar pela aplicação da técnica ativa era análogo à posição de uma criança vítima de um trauma. Assim como um bebê que é forçado precocemente a abrir mão de sua espontaneidade para se sujeitar à realidade dura do ambiente à sua volta que não o compreende, na técnica ativa o paciente é forçado a se submeter às regras ditadas pelo analista. Quando o terapeuta proíbe o paciente de executar determinadas ações ele se comporta como um pai ou uma mãe que vê seu filho brincando com seu órgão genital e o proíbe terminantemente de fazê-lo. Assim como a mãe ou o pai acreditam que tal comportamento não é adequado, o analista também se fundamenta no pressuposto de que determinados comportamentos podem ser inadequados para o alcance dos objetivos psicanalíticos. Em ambos os casos, as proibições apresentam um caráter moralizante. Podemos, ademais, nos questionarmos acerca da própria natureza dos comportamentos que a técnica ativa proibia. Eles representariam de fato uma descarga pulsional, ou seja, seriam a expressão deslocada da sexualidade tal como vivenciada pelo adulto? Não seriam, talvez, equivalentes à manipulação lúdica que a criança faz de seus órgãos genitais, manipulação que evidentemente provoca prazer, mas um prazer diverso daquele em jogo na sexualidade adulta, que visa ao orgasmo?

Penso que Ferenczi respondeu afirmativamente a essa última pergunta, já que o abandono da técnica ativa é contemporâneo das reflexões sobre as diferenças entre os pontos de vista dos adultos e das crianças que o analista húngaro faz em um de seus textos mais conhecidos: “Confusão de língua entre os adultos e a criança”. Nesse artigo, Ferenczi defende a tese de que a expressão da sexualidade na criança é bastante distinta da manifestação da sexualidade entre os adultos. Diferentemente da sexualidade adulta, a sexualidade infantil não visaria o prazer final (orgasmo). Permaneceria, portanto, nos limites daquilo que Freud chamou de “pré-prazer”, isto é, daqueles comportamentos que, na sexualidade adulta, servem como preliminares à penetração. O pré-prazer seria suficiente para satisfazer a criança e sua expressão não comportaria a seriedade e o caráter apaixonado presente na sexualidade adulta. A sexualidade infantil se manifestaria através da ternura e apresentaria um caráter lúdico. Nesse sentido, em termos de sexualidade, crianças e adultos falariam dois idiomas completamente diferentes: a linguagem da ternura e a linguagem da paixão.

CONTINUA

Entenda a regra da abstinência de Freud (final)

Cena do filme "Um Método Perigoso"No post anterior, vimos que do ponto de vista freudiano a neurose é resultado de um conflito entre o recalcado (pensamentos, lembranças e desejos que jogamos para debaixo do tapete de nosso psiquismo) e o ego (a imagem que temos de nós mesmos e que, a princípio, seria maculada pelo recalcado). Vimos também que a neurose tem início quando sofremos uma frustração amorosa, a qual faz com que a nossa libido volte a investir os pensamentos que foram recalcados, levando o ego a se sentir ameaçado. A neurose seria, então, um acordo de “paz” selado entre o ego e o recalcado em que o primeiro permite que o último se manifeste desde que de forma disfarçada.

Pois bem. Se o recalcado só foi “reativado” porque a libido não pôde ser satisfeita com objetos da realidade externa (frustração), isso significa, portanto, que se um novo objeto se apresentar para a pessoa e essa passar a amá-lo, grande parte da sua libido tenderá a investir o novo objeto e abandonará os pensamentos recalcados. O que acontecerá então com eles? Serão novamente jogados para debaixo do tapete do psiquismo e permanecerão preparados para se manifestarem novamente caso uma nova frustração amorosa aconteça. Em outras palavras, o recalcado se comportará como um vírus que aguarda a ocasião em que o organismo estará debilitado ou com a imunidade baixa para poder agir.

Qual seria a saída para que o sujeito não ficasse tão vulnerável assim à ação do recalcado? Freud dirá: fazendo com que os pensamentos recalcados não sejam mais recalcados! Não entendeu? Eu explico: a única diferença entre os pensamentos que estão recalcados, ou seja, estão no inconsciente, e os que não estão é que os primeiros não podem, a princípio, ser objetos da consciência. Nesse sentido, fazer com que os pensamentos recalcados não sejam mais recalcados significa permitir que eles possam adentrar os salões da consciência – o que só será possível se o sujeito não se sentir ameaçado por eles. E como o sujeito poderá lidar com o recalcado sem se sentir ameaçado? Em primeiro lugar, aprendendo a ter uma imagem de si mesmo (ego) que não seja tão rígida e idealizada. Em segundo lugar, olhando para o recalcado de frente e se dando conta de que objetivamente eles não oferecem perigo algum. Esses dois processos sintetizam o que acontece durante um tratamento psicanalítico.

Neste ponto você pode estar pensando: “Ok. Até aí eu consegui entender. Mas você se propôs a explicar o princípio da abstinência defendido por Freud e até agora não falou muita coisa sobre isso.”. Não ouso discordar de você, caro leitor. De fato, era preciso estabelecer algumas bases antes de chegarmos ao ponto central desta explicação.

Disse no parágrafo anterior que a única forma de impedir que o recalcado se mantenha à espreita, como um vírus, seria fornecendo as condições para que ele pudesse se manifestar e entrar livremente no território da consciência. Ora, a neurose é justamente uma das condições que tornam isso possível! Afinal, os sintomas neuróticos nada mais são do que pensamentos recalcados se manifestando de forma disfarçada. Por outro lado, como frisamos, a neurose só aparece após uma frustração e pode muito bem desaparecer em função de uma nova ligação amorosa. Portanto, a condição sine qua non para que o recalcado possa ser reavaliado pelo indivíduo na análise é a abstinência de satisfações amorosas. Do contrário, isto é, se o indivíduo dirigisse sua demanda de ser amado ao analista e esse a aceitasse, a ligação amorosa entre o paciente e o terapeuta tomaria o lugar da neurose, impedindo a continuidade do tratamento. É por essa razão que, do ponto de vista freudiano, é preciso recusar a demanda de amor do paciente. É preciso manter o doente num estado de insatisfação suficientemente bom para que o recalcado permaneça se manifestando e possa se tornar objeto da consciência.

À guisa de conclusão, poderíamos dizer que a regra da abstinência é a diretriz técnica que torna possível tanto ao paciente quanto ao analista a descoberta e a análise do material recalcado. Como Freud costumava assinalar, é muito comum observarmos uma melhora súbita no quadro apresentado pelo paciente durante os primeiros meses de tratamento. Isso seria resultado da própria relação entre paciente e terapeuta, pois o primeiro investiria no segundo a libido que até então estava vinculada aos pensamentos recalcados. Essa melhora, contudo, não seria duradoura justamente porque o analista não forneceria ao paciente uma contrapartida a seu investimento libidinal. Assim, a libido do paciente não teria alternativa a não ser retornar para onde estava até então, a saber: no recalcado. Essa nova frustração amorosa sofrida pelo paciente produziria uma nova neurose que, dessa vez, estaria ligada à pessoa do analista.

Nesse sentido, ao manter o tratamento em abstinência, ou seja, recusando-se em atender a demanda de amor do paciente, o analista permite que a doença que teve origem fora do consultório possa ser atualizada no interior do setting analítico. Isso permite tanto ao paciente quanto ao analista trabalharem o recalcado e as formas que o ego tem de se defender contra ele não como resquícios de acontecimentos passados mas como fenômenos atuais.

Entenda a regra da abstinência de Freud (parte 1)

laura-week-two-1920Em 1915, no artigo “Observações sobre o amor transferencial”, Freud escreveu que “o tratamento [psicanalítico] deve ser levado a cabo na abstinência”. O público leigo poderia pensar que Freud estava apenas alertando os analistas para que jamais cedessem à tentação de terem algum envolvimento amoroso e/ou sexual com seus pacientes. O buraco, contudo, é mais embaixo. Para Freud, não se tratava de uma questão meramente ética, mas, sobretudo técnica. A abstinência em questão deveria ser mantida principalmente do lado do paciente.

Neste momento você pode estar se perguntando: “Como assim?”. Para entendermos porque Freud defendeu que o tratamento psicanalítico deve acontecer num estado de abstinência, é preciso levar em conta a forma como Freud entendia o surgimento de uma neurose, ou seja, do tipo de adoecimento psíquico que mais aparecia em sua clínica.

Para Freud, uma neurose, seja ela uma obsessão, uma histeria ou uma fobia, é sempre o resultado de um grave conflito psíquico. Conflito entre aquilo que o sujeito acredita que é (o que Freud chamou de ego) e determinados pensamentos, lembranças e fantasias que num primeiro momento lhe proporcionam muito prazer, mas que ele acaba mandando para o inconsciente porque não estão de acordo com a imagem que tem de si mesmo. Um exemplo bobo: uma moça criada em um contexto religioso muito severo acredita que não deve jamais fazer sexo oral com seu marido, pois isso a desqualificaria como mulher. Quando adolescente, no entanto, essa moça já teve fantasias de que fazia sexo oral em um professor. Como tais pensamentos eram incompatíveis com seu ego, a moça, embora sentisse muito prazer, recalcou-os no inconsciente.

Pois bem, a neurose, de acordo com Freud, poderá emergir justamente quando esses pensamentos que foram recalcados tiverem oportunidade de ser “reativados”. Se isso acontecer, o sujeito precisará se defender a fim de impedir que eles novamente se manifestem. Do contrário, terá de ver manchada a bela imagem que tem de si mesmo. Estabelece-se, então, uma guerra entre o ego e os pensamentos recalcados. Quem costuma vencer? Freud dirá: ambos! Ego e recalcado fazem uma espécie de “acordo”. O ego permite que o recalcado se manifeste desde que seja de forma disfarçada. A neurose é precisamente um desses disfarces! Na histeria, o recalcado se disfarça como sintomas corporais: dores, parestesias, formigamentos, vômitos etc. Na neurose obsessiva, o disfarce é constituído de pensamentos irrelevantes que não saem da cabeça do sujeito. E na fobia, o medo de um objeto, animal ou situação é a máscara adotada pelo recalcado.

E o que a abstinência tem a ver com tudo isso é o que você deve estar se perguntando. Ora, a questão que ficou em aberto acima é a seguinte: como é que os pensamentos, fantasias e lembranças recalcados entram novamente em ação? Freud responde: quando a libido, a energia sexual, retorna para eles. E como a libido retorna para eles? Quando ela não tem mais para onde ir. Não entendeu, né? Eu explico: quando estamos nos relacionando com alguém e nos sentimos satisfeitos com esse relacionamento, grande parte da nossa libido está investida na pessoa com quem estamos nos relacionando. Portanto, o recalcado não tem combustível para “subir” até as portas da consciência. Contudo, se por alguma razão, o relacionamento atual for rompido (seja pela morte da pessoa amada ou por uma separação mesmo) aquela libido que estava investindo o objeto de amor, acaba ficando livre, leve e solta. Como forma de compensar a frustração sofrida, ela vai reinvestir aqueles pensamentos que um dia nos provocaram satisfação. Que pensamentos são esses? Sim, os recalcados, que agora terão munição de sobra para entrarem em combate com ego novamente.

Em outras palavras, a neurose como “acordo” entre o recalcado e o ego só foi possível porque a realidade deixou o indivíduo num estado de… abstinência!

Leia a parte final

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[Vídeo] Ética, medo e confiança

Como nos tornamos seres morais? Essa questão que tradicionalmente foi objeto da filosofia, também foi abordada pela psicanálise. Para Freud, a moralidade seria necessariamente proveniente de fora do indivíduo já que “naturalmente” seríamos dotados apenas de pulsões. Do ponto de vista freudiano, os responsáveis por nos transmitir as regras e princípios morais seriam os pais ou cuidadores e o principal fator que faria com que introjetássemos a moralidade seria o medo de perder o amor dos pais. No vídeo abaixo faço uma crítica a esse raciocínio demonstrando que ele só tem validade para os casos de crianças emocionalmente doentes.

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[Vídeo] Recalque

Atualmente, a palavra “recalque” e suas correlatas “recalcado” e “recalcada” têm se feito presentes com muita frequência no linguajar popular, especialmente entre os mais jovens. Ao contrário do que se poderia pensar num primeiro momento, isso não significa que a juventude brasileira esteja lendo mais sobre psicanálise. Por reviravoltas que a só a linguagem é capaz de provocar, a palavra “recalque” é utilizada não em sua acepção original psicanalítica, mas como sinônimo de inveja ou ressentimento. Levando isso em conta, decidi falar no vídeo abaixo sobre o sentido preciso que o conceito de recalque possui na teoria psicanalítica.

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