Continuando, outra manifestação patente do retorno do transcendente na atualidade é o sucesso experimentado por fábulas modernas como Harry Potter, O Senhor dos Anéis e a mais recente, a saga “Crepúsculo”. Dos três, a que posso falar com mais propriedade é certamente Harry Potter visto que li, se não me engano, os quatro primeiros livros da série quando ainda estava no colegial. Os outros eu nem sequer folheei, mas pelos comentários na imprensa, julgo incidirem de maneira análoga à da história de J. K. Rowling na sociedade contemporânea.
Harry Potter resgata, para utilizar um termo de Jung bastante apropriado para este caso, todos os arquétipos da tradição mitológica que andavam amortecidos pelos dramas hollyoodianos e por toda uma série que começa lá com “E O Vento Levou”. Na fábula de J. K. Rowling, delineia-se a trajetória de um herói que lida o tempo todo com sua sombra, personificada pelo vilão Voldemort, o que coloca a série como sendo estruturalmente polarizada em torno de uma luta perene entre o Bem e o Mal, sem dúvida alguma os emblemas máximos da transcendência. Não é à toa que um dos partidários da valorização da imanência, Nietzsche, propõe uma moral para-além do bem e do mal.
Parto sempre do princípio de que as modificações experimentadas dentro de uma sociedade, mesmo que sejam apenas no nível de sua produção cultural, possuem um direcionamento funcional, isto é, que elas sempre advém com a finalidade de atender a necessidades e demandas (ignoro a distinção lacaniana neste ponto) surgidas a partir das pessoas. Nesse sentido, se histórias de bruxos, vampiros e mundos paralelos começam a surgir aos montes e a fazer sucesso nas livrarias e cinemas, é sinal de que as pessoas estão necessitando desse tipo de produto cultural. E a justificação dessa necessidade é bastante óbvia: após pouco mais de quatro décadas em que o sentido foi relegado ao segundo patamar das preocupações humanas, nada mais compreensível que buscá-lo superlativizado.
No entanto, há algo de novo no retorno das histórias fantásticas que as impede de alcançar um estatuto análogo às das tragédias do mundo grego (até porque seria uma insanidade comparar o gênio de um Sófocles ou um Eurípides com o esforço talentoso de um Tolkien). A peculiaridade que tenho em vista é a íntima relação que se estabelece entre o enredo fabuloso das histórias e a vida cotidiana. Nem Harry Potter nem os personagens de Crepúsculo são figuras nascidas de um “Era uma vez…”. São todos pessoas com dilemas, preocupações e amenidades como os leitores! Em meio às agruras para descobrir seu destino, o menino Potter tem que se ver às voltas com a preguiça em fazer as lições de casa ou com seu amor disfarçado pela colega de classe.
Vemos, portanto, que o retorno do transcendente não traz consigo um desprezo ou um distanciamento da imanência, mas apenas o resgate de uma visão transcendental da vida. Os aspectos peculiares da vivência cotidiana ainda se revestem de grande importância. No entanto, passam a ganhar um sentido vindo de fora, um aspecto trágico – não no sentido das tragédias gregas em que se buscava o sentido nas origens – mas uma tragicidade que se expressa em íntima conexão com a experiência imanente.
Essa dimensão de relacionamento entre imanência e transcendência também fica evidente no nosso último exemplo de retorno do transcendente que também foi responsável pela venda de milhões de exemplares de livros: é o revival da famosa idéia do pensamento positivo, isto é, de que se você acreditar firmemente que vai conseguir algo, você pode, pela força do pensamento, modificar as forças em ação no universo de modo a fazer com que seu desejo seja atendido. Essa é a tese de base de livros como “O Segredo” e seus derivados. Tais obras sinalizam o retorno da idéia de que existe uma ordem transcedental em ação. A novidade é que essa ordem, diferentemente da astrológica, pode ser alterada de acordo com o que se passa aqui embaixo, mais especificamente na cabeça de quem tem os pensamentos positivos.
Concluindo: o retorno do transcedente se dá operando a transcedência não mais como distante do mundo vivencial, mas estando em franca conexão com ele, seja na transformação da imanência num espetáculo transcendente, na criação artística de um mundo transcedente que não se dissocia do imanente ou na postulação de uma interrelação entre uma ordem trancendental e a imanência.