Quando o analista não se apaga (parte 2)

SmoochesSándor Ferenczi, analista húngaro cuja obra tem sido injustamente pouco valorizada nos cursos de psicologia do Brasil, foi certamente um dos pioneiros no questionamento da neutralidade do analista. Esse questionamento se deu, sobretudo, em virtude dos efeitos colaterais produzidos pela aplicação do que Ferenczi chamou de “técnica ativa”, uma tática clínica que pretendia radicalizar o princípio de abstinência freudiano. A técnica ativa consistia basicamente em exortar o paciente a adotar certos comportamentos (como enfrentar diretamente uma fobia através da aproximação ao objeto fóbico, por exemplo) e proibi-lo de executar outros (como certas manias ou tiques, hábitos considerados equivalentes à masturbação). O objetivo era impedir que o paciente utilizasse suas inibições ou comportamentos, principalmente no setting analítico, como meio de descarga pulsional. Ferenczi observava que, ao ter sua tensão psíquica aumentada dessa maneira, o doente não poderia evitar o trabalho de rememoração e elaboração dos conteúdos recalcados, acelerando o processo analítico. Vale lembrar que, ao formular o princípio de abstinência segundo o qual o analista não deve atender a nenhuma demanda do paciente, Freud tinha em mente a mesma intenção: aumentar a tensão psíquica através da frustração da demanda e, com isso, facilitar o aparecimento do material recalcado. O aspecto inovador da técnica ativa proposta por Ferenczi foi a constatação de que, a despeito de não poder utilizar o analista, o paciente poderia encontrar outros meios de descarga pulsional, como os ganhos secundários dos sintomas e certos comportamentos de caráter masturbatório. Portanto, seria preciso estancar também essas vias de descarga a fim de evitar que a análise estagnasse.

Do ponto de vista do objetivo clássico do tratamento psicanalítico, qual seja, promover a rememoração e integração psíquica dos conteúdos recalcados, a aplicação da técnica ativa proporcionou resultados bastante positivos. De fato, quando o paciente se submetia às injunções e proibições do analista, a análise que até então parecia estagnada e girando em círculos, apresentava um significativo avanço. O material recalcado passava a se manifestar de modo menos tolhido e o trabalho de elaboração adquiria um novo impulso. Contudo, do ponto de vista da relação entre paciente e analista, a técnica ativa produzia efeitos de natureza iatrogênica. O terapeuta inevitavelmente acabava ocupando o lugar de mestre – posição que Freud sempre considerou contrária aos objetivos da psicanálise – e o paciente, em contrapartida, colocava-se numa posição de submissão a qual, como o próprio Ferenczi percebeu, frequentemente era utilizada para esconder sentimentos de desconfiança, incredulidade e hostilidade em relação ao analista.

A partir da constatação desses efeitos colaterais da técnica ativa e de uma reflexão renovada sobre o papel do da fator traumático na causação das neuroses, Ferenczi chegaria à conclusão que o faria questionar o princípio de abstinência e a neutralidade do analista. Ferenczi notou que esse lugar de sujeição ao terapeuta que o paciente era obrigado a ocupar pela aplicação da técnica ativa era análogo à posição de uma criança vítima de um trauma. Assim como um bebê que é forçado precocemente a abrir mão de sua espontaneidade para se sujeitar à realidade dura do ambiente à sua volta que não o compreende, na técnica ativa o paciente é forçado a se submeter às regras ditadas pelo analista. Quando o terapeuta proíbe o paciente de executar determinadas ações ele se comporta como um pai ou uma mãe que vê seu filho brincando com seu órgão genital e o proíbe terminantemente de fazê-lo. Assim como a mãe ou o pai acreditam que tal comportamento não é adequado, o analista também se fundamenta no pressuposto de que determinados comportamentos podem ser inadequados para o alcance dos objetivos psicanalíticos. Em ambos os casos, as proibições apresentam um caráter moralizante. Podemos, ademais, nos questionarmos acerca da própria natureza dos comportamentos que a técnica ativa proibia. Eles representariam de fato uma descarga pulsional, ou seja, seriam a expressão deslocada da sexualidade tal como vivenciada pelo adulto? Não seriam, talvez, equivalentes à manipulação lúdica que a criança faz de seus órgãos genitais, manipulação que evidentemente provoca prazer, mas um prazer diverso daquele em jogo na sexualidade adulta, que visa ao orgasmo?

Penso que Ferenczi respondeu afirmativamente a essa última pergunta, já que o abandono da técnica ativa é contemporâneo das reflexões sobre as diferenças entre os pontos de vista dos adultos e das crianças que o analista húngaro faz em um de seus textos mais conhecidos: “Confusão de língua entre os adultos e a criança”. Nesse artigo, Ferenczi defende a tese de que a expressão da sexualidade na criança é bastante distinta da manifestação da sexualidade entre os adultos. Diferentemente da sexualidade adulta, a sexualidade infantil não visaria o prazer final (orgasmo). Permaneceria, portanto, nos limites daquilo que Freud chamou de “pré-prazer”, isto é, daqueles comportamentos que, na sexualidade adulta, servem como preliminares à penetração. O pré-prazer seria suficiente para satisfazer a criança e sua expressão não comportaria a seriedade e o caráter apaixonado presente na sexualidade adulta. A sexualidade infantil se manifestaria através da ternura e apresentaria um caráter lúdico. Nesse sentido, em termos de sexualidade, crianças e adultos falariam dois idiomas completamente diferentes: a linguagem da ternura e a linguagem da paixão.

CONTINUA

Você é o profeta do seu próprio sofrimento?

JóA auto-vitimização é um traço que aparece com muita frequência no discurso dos pacientes que atendemos em psicoterapia. Com exceção, talvez, dos deprimidos que, em vez de se considerarem vítimas, enxergam a si mesmos como algozes do mundo, a maioria de nossos pacientes tende a apresentar a fantasia de que não são responsáveis por nenhuma parcela do próprio sofrimento. A mudança dessa posição subjetiva, aliás, é uma das primeiras tarefas a serem levadas a cabo num tratamento psicoterapêutico. Essa mudança acontece, sobretudo, através de um processo de elaboração psíquica que leva o doente a se dar conta de como ele próprio contribui para a manutenção do seu padecimento.

Como inicialmente veem a si mesmos apenas como vítimas das ações cruéis de outras pessoas, muitos pacientes não percebem que eles próprios, de uma forma inconsciente e amiúde não-verbal, acabam estabelecendo as condições para que lhes aconteça exatamente aquilo que não gostariam que acontecesse. Em psicologia, esse fenômeno recebeu o nome de “profecias auto-realizadoras”.

Tomemos uma ilustração clínica: uma paciente vem ao consultório queixando-se de que as pessoas com as quais convive na faculdade e no ambiente de trabalho sistematicamente a rejeitam por considerarem-na chata. A fim de compreender melhor a lamentação da moça, o terapeuta pergunta a ela se alguma daquelas pessoas já lhe disse explicitamente que ela era chata. A paciente diz que não, que, na verdade, ninguém nunca lhe disse isso, mas ela consegue perceber que é essa a visão que as pessoas têm dela. Notando uma boa oportunidade para uma intervenção, o terapeuta diz: “Então não são as pessoas que lhe veem como chata. É você que imagina que elas pensam isso de você.”. Ao se perceber flagrada em sua auto-vitimização, a paciente tenta se defender, mas acaba se denunciando novamente: “Não! Isso não é coisa da minha cabeça! Eles realmente me acham chata. Por isso, eu quase não converso com ninguém. Povo metido…”.

Segunda ilustração: um jovem de trinta e poucos anos afirma ter procurado tratamento psicoterapêutico por ter dificuldade em relacionar-se com o sexo oposto. Quando perguntado pelo terapeuta acerca da natureza da dificuldade, o sujeito responde que “as mulheres nunca dão bola para mim; só me dão foras!”. Observando a atitude auto-vitimizadora do paciente, o terapeuta decide repetir a pergunta colocando ênfase na palavra “sua” como forma de retificar sua posição subjetiva: “Mas qual é a natureza da sua dificuldade com as mulheres?”. O paciente, então, responde que não sabe e que procurou ajuda justamente para descobrir o que ele tem de errado.

Nesses dois exemplos é possível observar com certa clareza que as queixas dos pacientes é verbalizada inicialmente com o único propósito de justificar a fantasia de que são inocentes vítimas do comportamento perverso de outras pessoas. Em outras palavras, é como se implicitamente estivessem dizendo ao terapeuta: “Eu sofro porque o mundo me faz sofrer. O mundo tem que mudar, não eu.”. As intervenções do terapeuta visam justamente levar o paciente a converter esse discurso auto-vimizador em um questionamento acerca do que ele próprio precisa mudar em seu comportamento.

Nesse processo, fica claro que tanto a moça que reclama de ser considerada chata quanto o rapaz que se queixa do desprezo das mulheres, contribuem de uma forma muito significativa para que suas queixas se mantenham. A moça não percebe que ela própria se exclui das relações com as pessoas e não o inverso. E ela se exclui por imaginar que os outros a consideram chata, sendo que ninguém jamais lhe disse isso. Pode-se concluir, portanto, que ela própria, antes dos outros, se vê como chata. Trata-se de um auto-julgamento que provavelmente já faz com que ela se coloque frente às outras pessoas de um modo tímido e receoso – atitude que, naturalmente, não favorece ninguém nas relações interpessoais.

No caso do rapaz, as coisas se passam de modo semelhante. Quando o terapeuta repete a pergunta acerca da natureza de sua dificuldade com as mulheres, ele responde com uma fantasia que certamente influencia o modo como se relaciona com o sexo oposto. Ele diz que veio à psicoterapia para descobrir “o que tem de errado” consigo. Nesse momento, o paciente evidencia que vem estabelecendo um juízo moral sobre si mesmo. Ele ainda não formula uma demanda de mudança; quer apenas encontrar essa espécie de “pecado original” que carrega consigo e que lhe impede de obter sucesso com as mulheres. É bastante provável que nas ocasiões em que tem a oportunidade de iniciar uma paquera, o paciente se apresente de modo inseguro e hesitante por considerar de antemão que possui “algo de errado”. Essa insegurança e hesitação, por sua vez, provavelmente acabem transmitindo às mulheres uma impressão negativa a seu respeito e fazendo com que elas se afastem.

Nos dois casos, a expectativa que os pacientes apresentam em relação ao comportamento do outro, isto é, a profecia de que sempre serão rejeitados, inevitavelmente se realiza. Isso não acontece, contudo, porque sejam, como Jó, alvos de um acordo maroto entre Deus e o diabo, mas sim porque eles próprios, sem perceberem, se encarregam de cumprirem a profecia. Um dos objetivos da psicoterapia, como dissemos acima, é justamente o de levar o paciente a perceber que frequentemente exerce o papel de profeta do próprio infortúnio e que a saída para o abandono das profecias auto-realizadoras está na quebra das fantasias de auto-vitimização.

[Vídeo] Trauma

No senso comum a palavra “trauma” costuma ser associada a eventos extraordinários como acidentes, catástrofes, tragédias e abusos. No entanto, quando nos debruçamos sobre o sentido original do conceito de trauma na teoria psicanalítica, nos damos conta de que o aspecto que define um evento como traumático não é sua natureza mais ou menos impactante, mas sim a capacidade do indivíduo de lidar com uma determinada experiência.

Cursos Online na Área de Pedagogia

[Vídeo] Psicanálise prática

Em psicanálise, o alívio do sofrimento experimentado pelo paciente é apenas um efeito “extra” do tratamento ou deve ser o seu objetivo primordial?

Affectus #003 – “Não consigo dizer ‘Não’!”

O post desta semana seria a parte final do artigo “Questionando o ‘óbvio’: a falta é a causa do desejo?”, mas, como o último segmento é, na verdade, um “adendo” e não propriamente uma conclusão resolvi adiar sua publicação para a semana que vem.

Hoje apresentarei o terceiro episódio de “Affectus“, um projeto audiovisual que tem o objetivo de colocar em pauta dificuldades e problemas emocionais do cotidiano, apontando possibilidades de compreensão e enfrentamento sem, todavia, propor soluções. Trata-se, na verdade, de pílulas de provocação, prescritas para incomodar e mobilizar o espectador rumo ao questionamento e à reflexão e quem sabe, produzir como efeito colateral a procura de ajuda psicoterapêutica.

Nesse terceiro episódio o tema é a dificuldade que muitas pessoas enfrentam para recusar demandas provenientes do outro, a qual frequentemente se expressa pela impossibilidade de dizer “não”. No vídeo, defendo a tese de que tal dificuldade é apenas o sintoma de um padrão de relacionamento interpessoal marcado pelo medo do sujeito de se responsabilizar pelo próprio posicionamento.

O psicanalista deve fazer anotações durante as sessões?

Todos os iniciantes na prática da psicanálise possuem uma série de dúvidas de ordem prática e operacional que geralmente não são sanadas nos cursos de formação. Uma das perguntas mais frequentes de quem está começando a atender pacientes diz respeito à realização ou não de notas durantes as sessões.

Não se trata de uma indagação para a qual se tenha uma resposta óbvia. Afinal, muitas informações que se encontram no discurso do paciente precisam ser registradas, pois podem ser úteis na construção de um relato clínico ou mesmo para a própria compreensão mais clara da história clínica do paciente. Em certos casos clínicos de Freud é possível verificar, por exemplo, o quanto certos dados cronológicos foram extremamente relevantes para o entendimento da doença do paciente.

Vemos, portanto, que os registros escritos são de fato muito importantes tanto para a elaboração de um relato do caso quanto para a própria condução do tratamento. Por outro lado, sabemos também que nem todos os analistas são dotados de uma alta capacidade de memorização e, além disso, as próprias questões inconscientes do analista podem acabar influenciando suas lembranças relativas às sessões. Isso coloca em xeque as anotações que são feitas após o encerramento da sessão, já que o analista pode simplesmente não se lembrar das informações de que precisa.

Dada essa dificuldade, o que fazer? Anotar durante as sessões?

Quando anotar?

Num texto de 1912, chamado “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, Freud nos dá algumas dicas de como solucionar esse problema. Vejamos o que o pai da psicanálise diz:

1. NÃO SE DEVE ANOTAR TUDO O QUE O PACIENTE DIZ.

Lembre-se: você é um psicanalista e não um estenógrafo! Não dá para tratar um paciente e escrever ao mesmo tempo. Ninguém consegue realizar duas atividades ao mesmo tempo. Logo, se você está preocupado em anotar tudo o que o paciente diz, sua tarefa de fazer a análise acontecer será deixada de lado. Além disso, a grande maioria dos pacientes se sente desconfortável, intimidada e, frequentemente, percebe que você deixou de lado a análise e está focado apenas em anotar o que fala. Outra razão pela qual você não deve anotar integralmente o que o paciente diz é que a anotação exige um tipo de concentração que é inteiramente contrária à atitude que um analista deve adotar durante a sessão. Essa atitude, que Freud chamou de “atenção flutuante” deve permitir ao analista se deixar levar pela associação-livre do paciente e captar os momentos propícios a uma pontuação ou interpretação. Portanto, se você está preocupado em anotar o que paciente diz, sua atenção ficará presa apenas ao discurso em si do paciente e não estará livre para perceber as incoerências, lapsos, atos-falhos e outras eventualidades que não devem jamais passar despercebidas.

2. FAÇA APENAS ANOTAÇÕES EVENTUAIS

Datas são informações que, pela reduzida possibilidade de associação consciente, tendem a ser facilmente esquecidas. Por outro lado, são altamente relevantes para a compreensão do caso, pois muitas vezes são significantes que estão intimamente associados a eventos cruciais da história do paciente. Logo, talvez seja interessante ter um caderninho de notas por perto para poder anotar alguns delas.

Determinados sonhos e eventos da história clínica fornecem uma espécie de “radiografia” tão precisa da situação do paciente ou de uma fantasia inconsciente que, caso não sejam registrados, correm o risco de serem perdidos como informação para a confecção de um relato clínico. Nas ocasiões em que tais elementos aparecerem, anotá-los pode ser indicado, afinal o valor a longo prazo da informação compensará os poucos minutos de intervalo da atenção flutuante.

Conclusão

Não, não é recomendável que o psicanalista faça anotações regulares durante as sessões. Não se engane: se em reuniões e outros compromissos profissionais fazer anotações pode ser vista como uma atitude que indica profissionalismo e seriedade, na análise esse comportamento apenas provocará irritação e incômodo no paciente e tirará sua atenção dos reais objetivos do tratamento. Todavia, deixe sempre o bloquinho por perto. Datas relevantes, sonhos e outros eventos importantes podem ser exceções à regra.

Affectus #002 – Depressão: a retranca da vida

Affectus é meu novo projeto audiovisual. Trata-se de uma série de vídeos em que discuto temas ligados diretamente à clínica sobretudo as dificuldades e problemas emocionais que atualmente se apresentam com maior frequência em nossos consultórios.

Neste segundo episódio abordo a depressão a partir de um ponto de vista não-medicalizante, ou seja, que não encara a depressão como uma doença, mas sim como uma posição subjetiva. Utilizando uma analogia com o esporte mais popular do Brasil, o futebol, busco demonstrar no vídeo que a depressão é uma defesa empregada por determinados indivíduos para lidar com certos tapas na cara que a vida lhes dá.

Affectus #001 – Lidar com a ansiedade

Eis abaixo o primeiro episódio de “Affectus“, minha nova produção audiovisual voltada para a internet. Fazendo jus ao título do projeto (que é a tradução latina da palavra “afeto”) pretendo produzir em cada episódio uma reflexão sobre impasses e dificuldades emocionais vivenciadas pelos sujeitos na contemporaneidade. Como eu friso no primeiro vídeo, não se trata de nada semelhante à auto-ajuda. Pelo contrário, minha proposta é justamente a de evidenciar que não há uma fórmula mágica para a resolução de nenhum problema subjetivo e que em todos eles fatores irredutíveis ligados à condição humana se fazem presentes.

Ficaria muito feliz se vocês postassem reações ao vídeo nos comentários. Enjoy!

Psicossomática e Psicanálise VI: Jacques Lacan

Durante seu ensino, Jacques Lacan nunca tomou o fenômeno psicossomático como tema central de suas investigações. Nunca fez, por exemplo, um seminário dedicado ao assunto como o fez com as psicoses. As referências acerca da psicossomática na obra lacaniana são, portanto, pontuais e consistem essencialmente de comentários realizados em função de questionamentos feitos pelos ouvintes de suas conferências e seminários. Nesse sentido, não podemos exigir de Lacan uma abordagem profunda do tema, como o fizeram, com exceção de Freud, os demais autores que vimos até agora. Apesar disso, as pouquíssimas páginas que podem ser encontradas nos textos de Lacan sobre o fenômeno psicossomático são altamente instrutivas e dão sustentação a pesquisas mais minuciosas sobre o assunto dentro do enquadramento geral da teoria lacaniana. Exemplo disso são os estudos clínicos de Jean Guir, alguns deles publicados na coletânea “A psicossomática na clínica lacaniana”.

Seminário 2: o fenômeno psicossomático não é um sintoma

A partir de uma vista geral dos seminários, artigos e intervenções de Lacan, nota-se que o psicanalista francês abordou o problema da psicossomática em três momentos de seu ensino. No “Seminário 2” dedicado à temática do eu na teoria e na técnica da psicanálise, Lacan se limita a dizer que, diferentemente do sintoma neurótico, que se constitui a partir e no registro simbólico, o fenômeno psicossomático é da ordem do real e está relacionado com o autoerotismo. Lacan parece aqui estar seguindo uma inspiração ferencziana que, como vimos, concebia o fenômeno psicossomático como o investimento libidinal exacerbado no órgão doente. Ao dizer que a psicossomática é da ordem do real, Lacan já sinaliza que concebe tal afecção como estando mais próxima do problema das psicoses do que das neuroses, apontando talvez para a impossibilidade de uma decifração simbólica do fenômeno psicossomático pela via da interpretação.

A segunda referência lacaniana à psicossomática ocorre no “Seminário 11” no qual Lacan está interessado em formalizar os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Deixaremos para adiante a análise do que Lacan diz nesse momento, pois se trata, a nosso ver, da elaboração mais completa que Lacan fez a respeito do assunto e é nela que nos deteremos nesta explicação.

Conferência sobre “O Sintoma”: o fenômeno psicossomático é um hieróglifo

O terceiro momento em que Lacan aborda o fenômeno psicossomático é na conferência que proferiu em 1975 em Genebra (Suíça) sobre o sintoma. Naquela oportunidade, Lacan afirma três coisas importantes sobre psicossomática a partir de perguntas feitas por espectadores. Diferentemente do que havia dito no “Seminário 2”, Lacan assevera agora que o fenômeno psicossomático está profundamente enraizado no imaginário e não no real, o que se coaduna com suas novas elaborações acerca do registro do real que o diferenciam completamente da idéia de realidade material externa.

O segundo ponto frisado por Lacan é a analogia entre o fenômeno psicossomático e um hieróglifo, o qual constitui a unidade fundamental da escrita egípcia antiga que era de cunho ideográfico. O que Lacan está dizendo é que o fenômeno psicossomático se constitui como uma espécie de escrita no corpo, uma escrita que está baseada num código estranho e que só faz sentido a partir desse código, não sendo, portanto, apreensível pelo observador incauto. Trata-se, deste modo, de algo distinto do sintoma neurótico, que, por seu turno, está referenciado simbolicamente ao Outro compartilhado pelo doente e pelo analista, logo, potencialmente interpretável.

Lacan também diz que, em relação ao fenômeno psicossomático, é preciso encontrar o que ele chama de “gozo específico” e que podemos entender através da seguinte pergunta: “A que o fenômeno psicossomático satisfaz? A que ele responde?”. Como veremos posteriormente, Lacan pensa esse fenômeno como uma resposta a algo da ordem da fixação, entendida a partir do conceito freudiano de fixierung que significa a marca, o traço deixado pela experiência no corpo. Quando se diz, por exemplo, que fulano de tal é fixado na fase oral, se está dizendo que seu corpo ficou marcado por suas experiências infantis de satisfação através da mucosa bucal. Ou seja, tais experiências deixaram um traço permanente em seu corpo, a fixação nesse tipo de gozo. O fenômeno psicossomático, de maneira semelhante, seria o resultado de uma marca deixada pelo significante no corpo do sujeito.

Seminário 11: significantes congelados

A seguir, veremos de maneira esquemática como isso pode acontecer, ou seja, como o corpo pode vir a responder às marcas do significante através de uma lesão orgânica. Lacan nos explicou isso no “Seminário 11” no momento em que se dedicava a elaborar as duas etapas de constituição do sujeito: a alienação e a separação. Portanto, para que o leitor possa entender claramente a leitura lacaniana do fenômeno psicossomático gestada nesse momento, será preciso falarmos um pouco sobre essas duas etapas.

Lacan, desde o início de seu ensino, já fazia questão de dizer o tempo todo que talvez a grande descoberta de Freud tenha sido a de que o sujeito não possui nenhuma substância; que ele é efeito do significante. Em outras palavras, isso quer dizer que Freud teria mostrado através da investigação do inconsciente que o sujeito, isto é, essa instância que pode responder por seus atos, não é distinto da linguagem da qual faz uso, mas que, pelo contrário, é propriamente um efeito da linguagem. Quando se diz, por exemplo, “Ele é meu pai.” fazendo referência a uma determinada pessoa, o significante “pai” não representa o sujeito ao qual eu me refiro para a pessoa com quem estou conversando, pois a palavra “pai” só faz sentido ao ser posta em oposição com “mãe”, “filho”, “tio” etc. Ou seja, a palavra “pai” representa o sujeito ao qual me refiro não para aquele com quem eu converso, mas sim para outros significantes, de modo que aquela pessoa específica à qual me refiro como sendo meu “pai” perde sua substancialidade. Ele se torna um mero significante posto em relação com outros. O ser vivente ao qual o significante “pai” foi atribuído se apaga ao ser relacionado com os demais significantes. Permanece apenas o significante “pai”.

Ora, esse mesmo processo acontece com todos nós desde o início da vida. Afinal, ao nascermos já encontramos nas fantasias, nos pensamentos e nas bocas de nossos pais e das pessoas que estão à nossa volta um monte de significantes para serem colados em nós, nem que sejam os nossos meros nomes-próprios. Por razões puramente didáticas, vamos representar esses significantes que se encontram aí à nossa espera como sendo um único significante, S1. Como esses significantes já se encontram presentes antes de nascermos, diremos que esse S1 é o significante do desejo do Outro. Esse Outro com “O” maiúsculo é aqui entendido como o representante de todo o falatório à nossa volta. Portanto, entendam desejo do Outro como significando aquilo que o mundo espera de nós.

Continuando, então, quando a gente nasce, somos imediatamente alocados como o objeto referente de S1, ou seja, objeto do desejo do Outro. O problema é que tudo aquilo que dizem sobre nós, todas as fantasias que têm sobre nós (S1) só faz sentido em relação a todo o resto da linguagem, que a gente poderia chamar de S2. O que acontece, então, é que nosso ser ficará alienado na linguagem, pois aquilo que dizem que somos (S1) só pode ser entendido pela referência a S2, como no exemplo que dei do “pai”. Essa é a primeira etapa da constituição do sujeito que Lacan chamou de alienação.

A segunda operação, chamada de separação, virá à luz quando essa ligação entre S1 e S2 for posta em questão. Ora, certamente poderíamos nos perguntar: por que, afinal de contas, S1 não é suficiente? Por que ele tem que necessariamente estar referenciado a S2, S3, S4, S5… para fazer sentido? É nesse momento que nos apercebemos da falta no Outro. Se o Outro não é capaz de dizer tudo sobre nós, se tudo o que ele diz precisa de outro significante para fazer sentido, e esse de outro e assim sucessivamente, isso significa que esse Outro é incompleto. Há uma falta essencial nele que faz com que sempre se necessite de outro significante para dar sentido ao que se diz. Essa é a própria natureza da linguagem. Só podemos explicar o que é um significante utilizando outros significantes.

Se o Outro é incompleto, isso significa que esse Outro está o tempo todo desejando. Mas, peraí, não éramos nós mesmos o objeto de desejo do Outro? Se esse Outro permanece eternamente desejante, isso significa que nós não somos capazes de satisfazer plenamente seu desejo. Portanto, nós também somos faltosos e desejantes. Mas desejantes do quê? Ora, justamente daquilo que passou a se tornar para nós um enigma: o desejo do Outro. Se esse Outro não se satisfaz comigo, com o que ele se satisfaz, então? O nosso desejo passa a ser o desejo do desejo do Outro. Como S1 é o representante dos significantes iniciais que nos fizeram crer que éramos o objeto do desejo do Outro, é esse S1 que servirá de referência para os demais significantes que buscaremos para descobrir o que satisfaz o desejo do Outro. Em outras palavras, o S1 se tornará o significante-mestre de nossas vidas e essas só terão sentido por ter esse significante como eixo, como centro.

Holófrase e a experiência de Pavlov

Isso tudo acontece em sujeitos neuróticos, ou seja, sujeitos “normais”. Lacan, não obstante, sinaliza a possibilidade de outra estruturação que produzirá como um de seus possíveis resultados o fenômeno psicossomático. Trata-se do congelamento entre S1 e S2. Como dissemos acima, normalmente o significante do desejo do Outro (S1) é posto em relação com os demais significantes (S2). Ou seja, há um intervalo entre S1 e S2 e esse intervalo é justamente a manifestação do desejo do Outro. O Outro só busca a referência a S2 porque S1 não é suficiente. Nos casos em que há o congelamento entre S1 e S2, o intervalo desaparece e com ele a falta no Outro! Lacan ilustra essa estruturação com a figura de linguagem da “holófrase”. Trata-se da enunciação de uma frase inteira com uma única locução, por exemplo: em vez de dizer “Eu gosto de carne.”, digo “Eugostodecarne”. No primeiro caso, a frase faz sentido, pois há um intervalo entre cada palavra. No segundo não; a estranha palavra produzida só possui sentido ao ser desmembrada, ou seja, ao se lhe intercalarem espaços.

Assim, numa estruturação subjetiva em que S1 e S2 se constituem como uma holófrase, o desejo do Outro não é posto em causa, pois a cadeia de significantes é tomada em bloco, como se fosse de fato completa. Como não houve intervalo entre S1 e S2, o primeiro não pôde ser isolado da cadeia e servir de referência para o sujeito. Lacan afirma que são fenômenos decorrentes dessa estruturação são a psicose, a debilidade mental e o fenômeno psicossomático. A especificidade desse último caso é que nele esses significantes que não puderam ser relativizados em função da ausência de intervalo entre eles se incrustam no corpo. Lacan demonstra essa possibilidade apelando para a experiência pavloviana com cães.

O que Pavlov fazia? Ele condicionava o cão a salivar sempre que escutava um determinado sinal sonoro. Fazia isso disparando o sinal sonoro nas repetidas vezes em que dava alimento ao cão. Temos, portanto, do lado do experimentador, que aqui representa o Outro, a produção de uma relação entre sinal sonoro e alimento, uma relação significante, na medida em que a associação entre os dois elementos é puramente contingencial, assim como a relação entre a palavra “galo” e o animal designado por ela não é necessária. No entanto, do lado do cão, não temos essa relação. O cão não pensa: “Ah, o sinal tocou. Isso significa que aquele cara vai me trazer comida”. Ele simplesmente responde organicamente (salivando) a um significante (sinal sonoro). Por não ser dotado de linguagem, o cão não pode se perguntar, por exemplo, “por que esse cara só me dá comida com esse sinal tocando?”. Ele não pode colocar em questão o desejo do Outro!

Para Lacan, com o psicossomático acontece precisamente a mesma coisa. Ele responde no nível do corpo a uma indução significante cujo sentido reside no Outro, mas que a ele foi vedado descobrir em função do processo de congelamento entre S1 e S2. É por isso que é muito comum encontrarmos na clínica com pacientes psicossomáticos a eclosão da doença ou de uma lesão em uma determinada data que para a história de vida do sujeito é significativa. O evento relacionado a essa data não pôde ser colocado em relação com o restante da cadeia de significantes, de modo que o sujeito só pôde responder a ela pela via do corpo. O mesmo acontece com determinados nomes que, ao se apresentarem ao sujeito ao longo de sua existência são capazes de produzir a emergência de um fenômeno psicossomático de maneira imediata. Assim, a doença psicossomática se constitui como um verdadeiro hieróglifo perdido, cujo código original que permitiria decifrá-lo se encontra alhures e é desconhecido tanto pelo analista quanto pelo próprio doente.

Concluindo

Para Lacan, a capacidade de produção de um fenômeno psicossomático como resposta a um determinado evento está na dependência de uma estruturação subjetiva prévia que não possibilitou a emergência do questionamento do desejo do Outro devido ao fato de a cadeia de significantes ter sido imposta ao sujeito em bloco, de maneira congelada, sem intervalos. Assim, determinados eventos encontram um bloqueio ao tentarem ser elaborados psiquicamente. O corpo, então, se encarrega de reagir a tais eventos através de uma lesão orgânica. A função do analista, por conseguinte, é a de colocar a cadeia de significantes para funcionar, tirando-a da paralisia em que se encontra. Do meu ponto de vista, trata-se de fazer o inconsciente existir, de modo a colocar os significantes que induziram à formação do fenômeno psicossomático em dialética com outros significantes. Em outras palavras, inventar uma linguagem em que o hieróglifo marcado no corpo possa adquirir sentido.

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Se você quiser saber um pouco mais sobre o ponto de vista lacaniano acerca do fenômeno psicossomático, adquira a coletânea de artigos (escritos, em sua maioria, por autores lacanianos) “Psicossomática e Psicanálise”, organizada por Roger Wartel, por apenas R$27,90, no Submarino, clicando neste link.

Psicossomática e Psicanálise II: Donald Winnicott

Via de regra, tendemos a ver no sintoma psicossomático, como em qualquer outra afecção que nos cause sofrimento, algo a ser extirpado, combatido, eliminado de nosso ser. No entanto, poderíamos nos perguntar: o que nos garante que sem a afecção psicossomática estaríamos melhores? Essa indagação foi feita por Donald Woods Winnicott e a resposta que encontrou para ela foi o reconhecimento da função positiva que o sintoma psicossomático tem para aquele que o apresenta. Vejamos como o psicanalista inglês chegou a tal conclusão.

Quem foi D. W. Winnicott?

Para aqueles que não conhecem Winnicott, os quais imagino não serem legião, é suficiente saber que esse senhor viveu entre 1896 e 1971, atuando como pediatra e psicanalista na Inglaterra. Winnicott elaborou contribuições tão significativas para a psicanálise que alguns autores acreditam que ele tenha dado origem a um novo paradigma psicanalítico, superando anomalias do modelo freudiano. Quem quiser se aprofundar um pouco mais nas inovadoras proposições teóricas do autor encontrará no final deste post uma lista de textos aqui do blog em que eu as abordo. Por ora, vejamos o que Winnicott diz acerca do transtorno psicossomático.

Entre vômitos e loucos

É de sua experiência como pediatra que Winnicott retira suas primeiras observações sobre a dinâmica imanente à constituição do sintoma psicossomático. Ele nota que amiúde os bebês fazem uso de problemas de ordem orgânica para se expressarem e agem assim com uma frequência que aparentemente é muito maior do que nos adultos. Trata-se de crianças que ficam com febre em função de uma ausência longa da mãe, de bebês que vomitam quando querem expulsar de si conteúdos psíquicos atemorizantes, etc.

Dessa experiência com bebês Winnicott extrai a conclusão de que corpo e psique estão intimamente associados. Todavia, a clínica com pacientes psicóticos lhe colocará uma pulga atrás da orelha, pois se deparará com diversos sujeitos que, curiosamente, não se relacionam com o próprio corpo, alegando viverem no organismo de outrem. Como isso é possível? Essa é a pergunta que Winnicott se faz. Como é possível que os bebês lhe apresentem uma vinculação tão profunda entre corpo e psique a ponto de expressarem corporalmente eventos de ordem psicológica e determinados adultos lhe demonstrem exatamente o oposto, isto é, uma total cisão entre corpo e psique?

Se não há quem una, como permanecer uno?

A solução que Winnicott encontra para esse problema é o reconhecimento de que embora corpo e psique possam se vincular, nem todos os indivíduos conseguem realizar essa tarefa. Em outras palavras, no início da vida corpo e psique não estão unidos, podendo ao longo da história do sujeito vir a estar ou não. O que vai determinar um desfecho ou outro? A atuação de Winnicott como pediatra não lhe deixa dúvidas: é o cuidado que a criança recebeu nos primeiros meses de vida. O psicanalista reconhece que a tendência para integrar corpo e psique é inerente a nossa espécie. No entanto, se o ambiente em que nascemos (que para a maioria de nós é a mãe) não ajudar, essa tendência não se realiza. Fora isso o que acontecera com os pacientes psicóticos que diziam viver no corpo do próximo! O ambiente no qual nasceram foi tão falho que sua existência psíquica se constituíra de forma totalmente dissociada de sua corporalidade.

Aqui, cabe uma delimitação conceitual: a palavra psique em Winnicott não é sinônimo de mente. Essa última é entendida pelo autor como uma função intelectual que emerge no momento em que o ambiente começa a fazer a tarefa saudável de quebrar gradualmente a ilusão de onipotência do bebê (“tudo o que eu quero vira realidade”). Nesse processo, o bebê, que antes só se deleitava sem precisar pensar, agora precisa olhar para a realidade e tentar entender o que está acontecendo. É nessa hora que a função mental aparece. A psique, no entanto, já existe. Ela é a elaboração imaginativa de partes e funções do corpo ou, em outras palavras, é a amálgama de fantasias que o bebê elabora sobre o que ele vivencia no nível somático. Se o ambiente é suficientemente bom, ele permite ao bebê integrar essas fantasias ao corpo e passar a ter uma existência psicossomática, isto é, ter a experiência de existir dentro de um corpo.

Caso o ambiente seja muito ruim (no sentido de não auxiliar o bebê nessa tarefa de integrar psique e corpo, a qual Winnicott chama de personalização) a criança não percebe a vinculação entre o que ela produziu de fantasias sobre a experiência corporal e o próprio corpo, ficando refém de uma angústia inimaginável. A saída encontrada pelo bebê nesse caso é cindir completamente tais fantasias do corpo e refugiar-se na mente, na função mental – como acontece com muitos psicóticos nos quais se observa uma capacidade intelectual fora de série.

Está doendo, graças a Deus…

Entre esses dois extremos, isto é, entre um ambiente suficientemente bom e um ambiente que falha muito, existe o que a gente pode chamar de “ambiente mais-ou-menos”. Trata-se de um ambiente que não é bom o bastante, mas também não falha tão drasticamente a ponto de gerar uma cisão entre psique e soma. Quando o bebê é cuidado por um ambiente assim, ele consegue concluir a tarefa de personalização, mas de maneira muito precária. É como se a integração entre corpo e psique se desse de maneira frouxa, de sorte que o indivíduo se desenvolve normalmente, mas com uma tendência para a cisão (isto é, para a psicose) sempre à espreita.

É nesse momento que o sintoma psicossomático revela sua faceta positiva, pois é justamente ele que impede que a cisão aconteça! Explico: pelo fato da integração corpo-psique ter se dado de maneira debilitada, sempre que o indivíduo experimentar situações de grande abalo emocional como lutos, separações conjugais, perda de empregos etc. essa integração frouxa será abalada e a tendência à cisão emergirá. Nessas ocasiões, o organismo lança mão de uma doença psicossomática como que para assegurar a frágil vinculação existente entre corpo e psique. Assim a cisão não acontece, mas em compensação o indivíduo agora se torna refém de uma doença.

Notem, portanto, que, do ponto de vista winnicottiano, ao adotarmos o belicismo terapêutico que vê nos sintomas algo como Bin-Ladens a serem extirpados, incorreremos num grave erro, pois estaremos atacando justamente a tábua de salvação do indivíduo, a pedra onde ele se agarrou para não cair no despenhadeiro da psicose. Além disso, não estaremos levando em conta a “verdadeira” doença constituída pela personalização frouxa e sua correlata a tendência à cisão.

É por isso que, para Winnicott, o tratamento de uma doença psicossomática passa pela provisão de um ambiente suficientemente bom por parte do terapeuta, um ambiente em que o indivíduo se sinta seguro para poder retomar a tarefa que outrora foi feita “porcamente” pelo ambiente “mais-ou-menos”. Agora, o analista assume o papel de ambiente, mas de um ambiente bom o bastante para ajudar o paciente a integrar corpo e psique. Se isso for levado a cabo, não será necessário fazer nada com o sintoma psicossomático. Ele simplesmente desaparecerá, pois perderá sua serventia.

Concluindo

O sintoma psicossomático, para Winnicott, é o último recurso empregado por um indivíduo vivenciando situações difíceis que ocasionam intensas emoções para manter corpo e psique unidos. Tal indivíduo só lança mão da doença por ter realizado o processo de personalização de maneira precária em função das falhas ambientais.

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Se você se interessou pelo pensamento de Winnicott e quer saber mais sobre as teses do autor, leia os posts abaixo:

Winnicott e o Samba

Pedofilia, estupro: a necessidade da Lei

A mente em Winnicott (parte 1)

A mente em Winnicott (final)

O amor como afeto e o amor como ação: Freud com Winnicott (parte 1)

O amor como afeto e o amor como ação: Freud com Winnicott (final)

Série “Winnicott e o Cristianismo” (sete posts até o momento)

Por que Winnicott não aderiu ao conceito de pulsão de morte? (parte 1)

Por que Winnicott não aderiu ao conceito de pulsão de morte? (final)

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Como você lida com o seu passado? (final)

Vimos no post anterior que, de acordo com Vattimo, Nietzsche põe em oposição dois modos de se lidar com a história. O primeiro, que ele denomina “doença histórica” é a forma tradicional com a qual a cultura ocidental sempre encarou o passado, qual seja, como um emaranhado de eventos que devem ser conhecidos objetivamente sendo possível, para algumas cabeças pensantes (como Hegel, por exemplo) encontrar nessa concatenação de acontecimentos um sentido, isto é, um devir que se processa tendo em vista um objetivo final. A esse modo “doentio” de pensar a história, Nietzsche apresenta sua própria perspectiva, a qual não concebe a história nem como uma “verdade factual” que gradualmente descobrimos nem como uma fábula com final feliz. A história, para Nietzsche, é puro devir e os acontecimentos que se processam nesse devir alimentos que podemos recusar ou nos apropriar deles tendo em vista o quanto eles favorecem a nossa capacidade de agir e criar a qual é justamente aquilo que resiste à “hitoricização”.

Um passado traumático

O exercício da reflexão me leva a pensar que o processo de desenvolvimento da Psicanálise enquanto método de tratamento das neuroses experimentou dois momentos que podem dispostos analogamente aos dois modos de se pensar a história propostos por Nietzsche. Ainda que você, leitor, seja apenas superficialmente versado na teoria psicanalítica, provavelmente deve saber que antes de inventar a Psicanálise com a ajuda de suas brilhantes professoras histéricas, Freud utilizava a hipnose como técnica de tratamento. Ora, em que consiste o procedimento hipnótico? Supõe-se que para que o paciente seja curado de seus sintomas atuais ele precisa ser levado a reencontrar-se com as lembranças reais de seu passado relativas a eventos que foram a causa dos sintomas. Ao recordar o que o levou a produzi-los, o paciente poderia retroativamente reagir de maneira distinta aos eventos em questão e abdicar dos sintomas. Com efeito, esses haviam surgido porque o paciente havia reagido inadequadamente àqueles acontecimentos.

O encontro de Freud com o não-histórico

Por que Freud desistiu da hipnose e deu um jeito de inventar a Psicanálise? Porque ele foi se dando conta que freqüentemente a técnica hipnótica fracassava e isso porque parecia haver um fator que dificultava o acesso às lembranças, um elemento que impunha uma resistência ao trabalho terapêutico. Logo, a estratégia de invadir o território inimigo à força bruta com o auxílio da redução do limiar de consciência precisava ser revista, pois fortes muralhas se formavam no meio do caminho. Era preciso elaborar uma estratégia que contemplasse essas muralhas. Nasce, então, a Psicanálise como um método que vai buscar justamente compreender isso que bloqueia o acesso do sujeito à sua própria história.

E, pasmem, isso que o bloqueia é a própria vida! Não é a pulsão de morte, como muitos pensam. O ser não quer morrer. Pelo contrário, quer criar, se expandir, agir e só se torna apático, retraído e doente quando essa é a única forma de se defender daquilo que “aprendeu” a encarar como um perigo maior. A resistência, portanto, é a manifestação da vida em nós que resiste contra aquilo que considera um mal maior do que a dor do sintoma. Nesse sentido, quando Freud se depara com o fenômeno da resistência o que ele encontra é precisamente o que Nietzsche define como vida, isto é, como impulso para a criatividade e a ação. Parece contraditório, pois nos acostumamos a pensar a resistência apenas como um fator que dificulta o trabalho de análise. Mas quero chamar sua atenção para o fato de que ela só é um obstáculo para o alcance daquilo que para o sujeito é um mal maior.

A “doença histórica” na Psicanálise

Assim, poderíamos ver a fase pré-psicanalítica de Freud, com o uso da hipnose, como sendo o predomínio da “doença histórica” nietzschiana. Nesse momento o que se busca é a verdade dos fatos, escondida nos porões mentais das histéricas. Pergunta-se ao paciente quando começaram seus sintomas, quem estava lá, o que aconteceu, enfim, o objetivo é fazer uma historiografia do doente. Quando a vida irrompe na cena na forma da resistência, Freud se apercebe que não é possível fazer uma remontagem fria e objetiva da história. Ele nota que há algo ali que opta, afirmando ou negando determinadas realidades e que é preciso encarar o passado do doente tendo como guia esse elemento.

Torna-se preciso entender por que a vida negou determinado acontecimento e hoje insiste em não querer afirmá-lo. Via de regra, é por medo que ela o faz, como defesa contra uma realidade angustiante e imaginariamente aniquiladora. É justamente por não levar isso em conta que a hipnose fracassa, pois sua prática pressupõe que o simples encontro com a história é suficiente para eliminar o medo; é o pressuposto de que a história sendo a verdade objetiva é capaz por si só de devolver a saúde ao sujeito.

Muitos analistas hoje dizem que fazem Psicanálise, mas fundamentam sua prática nesse mesmo pressuposto: para eles é preciso mostrar a qualquer custo “a verdade” ao sujeito sem qualquer tipo de acolhimento que possa permitir ao doente se sentir seguro para conseguir lidar com sua própria história, isto é, sem o temor de ser aniquilado.

O que essa “doença histórica psicanalítica” (parafraseando Nietzsche) gera são sujeitos que se dizem analisados e conscientes de sua própria história (como provavelmente atestou uma banca de “passe”) e que continuam como os mesmos sintomas com os quais iniciaram a análise. Eles dizem que tais sintomas são “irredutíveis”, expressam seu modo de se relacionar com o mundo. Na verdade, não se trata de nada disso. Em geral, foram maltratados por analistas defensivamente silenciosos e continuam com os mesmos medos, com as mesmas defesas e, por não terem sido tratados corretamente, encontram uma saída na positivação de seus sintomas, considerando-os não mais como problemas, mas como “estilo”.

Portanto…

O pressuposto de uma psicanálise cujo modo de encarar o passado fosse análogo ao proposto por Nietzsche deveria vê-lo não como “a verdade do desejo”, mas sim como uma série de afirmações e negações feitas pela vida. É dessa dinâmica que emergem os sintomas e para levar o paciente a abdicar deles (na medida em que eles constituem formas restritas de vida) é preciso supor que há uma potência de vida guiando o enfrentamento do devir. Essa potência, que Nietzsche denomina de “força plástica”, precisa ser tornada consciente e fortalecida. Só assim o doente estará seguro o suficiente para estabelecer uma relação saudável com seu passado.

Como você lida com o seu passado? (parte 1)

Esta é a primeira parte de um dos dois posts em que pretendo desenvolver algumas idéias que me vieram à mente no decorrer da leitura do texto “O niilismo e o problema da temporalidade” de Gianni Vattimo que figura na excelente coletânea de ensaios do autor intitulada “Diálogo com Nietzsche”. Pra variar, são idéias que buscam estabelecer algumas relações entre o que se encontra no texto e a Psicanálise.

Nietzsche e os dois modos de encarar a história

No início do ensaio, Vattimo aborda o conceito nietzschiano de “eterno retorno” (ewige wiederkehr, em alemão), seu caráter conceitualmente problemático e as diversas interpretações do termo pelos comentadores de Nietzsche. Antes de esboçar a sua própria interpretação, Vattimo faz um breve percurso pelo modo como Nietzsche encara o problema da temporalidade. É essa seção do texto que me serve de inspiração aqui.

Segundo Vattimo, desde seus primeiros escritos Nietzsche tece duras críticas ao modo como a tradição ocidental se acostumou a lidar com sua própria história, a saber: buscando fazer uma remontagem completa dos fatos ocorridos, como se fosse necessário desvendar o que aconteceu no passado em sua totalidade. A maior ilustração dessa tendência de “querer tudo saber”, cujo ponto de origem o filósofo localiza na figura de Sócrates, é o próprio surgimento de uma disciplina científica denominada precisamente “História” que se dedicará justamente a desenvolver métodos e teorias para o conhecimento o mais fiel possível do passado.

Para Nietzsche, esse desejo de produzir um retrato completo do que se passou constitui o que ele chama de “doença histórica”. Sim, doença, pois torna o homem menos capaz daquilo que ele pode fazer ao aniquilar sua criatividade. A investigação minuciosa do passado faz com que se perca a visão do possível na medida em que tudo o que poderia ser criado como novo passa a ser visto como mera reprodução daquilo que já ocorreu. Frente à grande massa do que já aconteceu, a ação que se processa no hoje em vista de um futuro perde em potência e em sentido, pois é encarada como mais um grão de areia na praia do tempo.

Por outro lado, a tendência de querer tudo saber pode levar também à suposição bastante comum de que tudo o que aconteceu, aconteceu em função de uma determinada finalidade: é a idéia de que a história possui um sentido e que, portanto, nossa ação não tem potencial algum de criar algo novo, pois o curso das coisas já se encontra pré-determinado.

Qual alternativa Nietzsche contrapõe à doença histórica? Qual seria o modo correto de lidar com a história na visão do filósofo?

Para Nietzsche a origem da resposta está justamente naquilo que não tem história, ou seja, no elemento que não muda apesar de todo o resto se transformar. Esse elemento é a vida. Nietzsche inverte os termos que foram conjugados na doença histórica. Para o filósofo, o Ocidente colocou a vida a serviço da história. Para Nietzsche o correto é que a história esteja a serviço da vida. E com o termo “vida” o filósofo quer expressar justamente o caráter daquilo que é vivo, isto é, a possibilidade de criação, de invenção e de reinvenção. A relação correta com o passado, portanto, é aquela que vê a história como um manancial de eventos cuja apropriação pode ou não fortalecer, expandir e facilitar a nossa capacidade de criar, de agir. Nem tudo o que aconteceu deve ser apropriado por nós, pois há eventos que limitam e reduzem a nossa capacidade de agir. Ou seja, o crivo para o que deve ou não ser apropriado é sempre a própria vida.

No entanto, para que se possa saber discernir o joio do trigo é preciso estar consciente da própria força da vida, que não muda e que ultrapassa a história. Quem não está consciente da vida não percebe que há algo não-histórico e é, assim, facilmente levado a desenvolver a doença histórica, ou seja, a pensar que é presa de um destino ou que sua ação não vale nada em vista de tudo o que já aconteceu.

O que tudo isso tem a ver com a Psicanálise? É o que veremos no próximo post.

CONTINUA…