Dá pra ser feliz? Freud e Winnicott respondem (final)

Vimos até aqui que, por tudo o que Freud escreveu, sobretudo a partir de 1920 com a introdução do conceito de pulsão de morte, a felicidade para o pai da psicanálise é um sonho humano fatalmente destinado à frustração. Espero ter deixado claro que essa conclusão faz todo o sentido se levarmos em conta as premissas que guiaram o pensamento do médico vienense.

De fato, se pressupormos como verdadeiras as seguintes asserções:

(1) que entre o indivíduo e a cultura há um conflito inexorável oriundo da presença em cada organismo humano de uma pulsão destrutiva que se contrapõe à vida em sociedade;

(2) que, para que o indivíduo possa se inserir no campo que Lacan chamará de grande Outro, isto é, o campo da cultura, cuja estrutura basilar é a linguagem e suas leis, ele deve necessariamente abdicar de parte de suas tendências pulsionais – o que coloca em jogo novamente um conflito eterno entre o indivíduo e a pulsão;

(3) que a felicidade seria a possibilidade de que tal conflito inexistisse, ou seja, que, no limite, pudéssemos atualizar nossas intencionalidades sem qualquer tipo de impedimento por parte da cultura;

Logo,

(conclusão) a felicidade é de fato impossível.

Em outras palavras, para Freud a felicidade é impossível porque, ao defini-la, ele se coloca na posição do neurótico clássico, incapaz de superar o drama edipiano. Ora, o que significa ser feliz para tal neurótico? Fantasisticamente, poder ter a mãe só para si. Nos termos de Jacques Lacan, poder ter acesso a um gozo pleno, que não existe, mas que o neurótico, em sua fantasia, supõe que exista em algum lugar da terra.

Ora, por que o limite imposto pela cultura aos nossos desejos tem que ser visto necessariamente a partir da ótica da falta, da insatisfação, do mal-estar? Esse é o ponto de vista do neurótico, que sonha em ultrapassar o rochedo da castração. Por que não podemos enxergar no limite a instauração da dimensão do possível na existência humana? Sim, porque todo limite, ao mesmo tempo em que impede a execução de uma determinada intenção, nos mobiliza a inventar uma nova forma de agir, de modo que o limite ou a resistência do real aos nossos desejos nos põe na trilha da criatividade, da invenção. Não obstante, para que paremos de nos queixar diante do limite e passemos a utilizá-lo como motor de criação, nossa âncora subjetiva deve estar em outro lugar que não o da satisfação pulsional. Era assim que Donald Woods Winnicott pensava.

Para-além do mecanicismo: Winnicott e o ser

Refém do modelo mecanicista proveniente da modernidade, Freud jamais conseguiu pensar que para o sujeito humano há algo mais fundamental que as pulsões, algo que, inclusive, possibilita o uso saudável da dimensão pulsional. Para o pai da psicanálise, o ser humano é uma máquina de descarregar pulsões que se complica por sua pertença ao campo da cultura. Para Freud, não há nada na natureza do humano que o singularize com exceção do fato de que nele há pulsões e não instintos, o que faz com que a subjetividade deva ser concebida necessariamente como uma construção social (o que Lacan expressará com sua fórmula: “o sujeito é o que um significante representa para outro significante”).

Em contrapartida, para Winnicott, que não tinha experiência apenas com neuróticos insatisfeitos com a castração, mas com bebês doentes e saudáveis, antes de o homem se ver às voltas com a dinâmica pulsional, algo de caráter muito mais essencial deverá ser constituído. Trata-se do que Winnicott chama de “experiência de continuidade do ser” ou “a experiência de que a vida faz sentido, de que vale a pena viver.”. Para o psicanalista inglês, é esse o elemento fundamental que possibilita uma vida saudável. É essa a âncora subjetiva que todo ser deve possuir para conseguir lidar de modo não problemático nem doentio com as limitações da existência.

A construção do fundamento para a felicidade

Como se constitui essa experiência de continuidade do ser? Winnicott, diferentemente de Freud, não conseguiu ver no bebê humano uma maquininha de descarregar pulsões. A experiência clínica do analista inglês com crianças não lhe deixou dúvidas de que o pequeno filhote de Homo sapiens é dotado de determinadas tendências para o desenvolvimento que, para serem realizadas, precisam de uma contrapartida ambiental, ou seja, a adaptação ativa de alguém. Portanto, o homem não é, nem a princípio nem posteriormente uma máquina burra. Trata-se de um organismo orientado para o amadurecimento.

Num primeiro momento, as necessidades do bebê demandam uma atenção tão intensa por parte do ambiente (mãe) que o bebê não tem condições de discernir-se como um ser separado dele. Se o ambiente for suficientemente bom, isto é, se conseguir atender adequadamente as necessidades da criança, o único registro psíquico que o bebê fará dessa experiência será o de “estar sendo”, ou seja, de existir.

Gradativamente, a dependência do infans em relação ao ambiente vai se relativizando, de modo que a mãe pode se desligar um pouco do bebê. Ainda assim, ela não pode se ausentar por muito tempo. Do contrário, como o bebê ainda não se constituiu como uma pessoa inteira capaz de reconhecer o outro como independente, se for deixado desamparado por longo tempo, ele sente como se estivesse desaparecendo, uma experiência que Winnicott chamou de “angústia inimaginável” e que quebra aquele sentimento de “estar sendo” que vem sendo solidificado desde o nascimento.

Se tudo correr bem, ou seja, se o ambiente não provocar a emergência de angústias inimagináveis no bebê, o indivíduo vai paulatina e naturalmente aceitando o fato de que o outro é independente e possui corpo e psiquismo próprios. Essa passagem ao reconhecimento da alteridade só é feita de maneira saudável, isto é, não-traumática, se o sujeito conseguir consolidar esse estofo subjetivo, essa âncora, que é o sentimento de “estar sendo” ou “sentimento de continuidade da existência”. Esse sentimento funciona como algo que capacita o indivíduo a enfrentar as intempéries da vida sem se deixar abater de modo doentio. É como se, dotado desse sentimento, o sujeito pudesse dizer: “Aconteça o que acontecer, eu sou.”.

A experiência de “estar sendo” permite a atualização na vivência cotidiana de uma dimensão humana que Freud sequer cogitou existir que é o que Winnicott chama de “verdadeiro self”, que é o ponto subjetivo a partir do qual podemos criar. Trata-se de um aspecto do sujeito que Winnicott qualifica como “indevassável” no sentido de que ele é irredutível a qualquer tentativa de incorporação cultural. Ele é a marca de nossa singularidade. No indivíduo saudável, que conseguiu consolidar o sentimento de continuidade da existência, o verdadeiro self não precisa ficar oculto, não precisa ser defendido, pois possui a força daquele sentimento para resistir às limitações do mundo externo.

A presença do verdadeiro self na existência individual possibilita a experiência de sentir que a vida faz sentido. Isso porque só sentimos que a vida faz sentido quando nos sentimos vivendo e, ao mesmo tempo, criando nossa própria experiência vital. Trata-se de uma sensação oposta àquela que experimentamos quando temos que vivenciar situações que nos foram impostas. Nesses casos, vivenciamos uma sensação de futilidade, justamente por não nos sentirmos co-criadores no processo. A experiência do sujeito freudiano clássico é dessa ordem. É um indivíduo que sente as limitações colocadas em jogo por nossa pertença à cultura como meras imposições externas que o tornam insatisfeito. Tal sujeito fundamenta seu ser não na experiência de continuidade de ser, mas na satisfação pulsional. Por isso, sua conclusão será inevitavelmente a de que a vida não vale a pena, ou seja, de que não é possível ser feliz.

Felicidade a toda prova

Finalmente, para Winnicott, a felicidade é sim, possível, e pode ser vista como sinônimo de saúde. E o que é a saúde para Winnicott? Não se trata de uma existência sem desprazer ou sem limitações. Pelo contrário, ser saudável para Winnicott significa ser capaz de incorporar e fazer frente a tais experiências. E isso só é possível se o indivíduo tiver construído seu ser sobre a rocha, para usar uma metáfora bíblica. Construir o ser sobre a rocha significa ter conseguido vivenciar nos momentos iniciais da vida a experiência de ser sem interrupções e sem angústias traumáticas. Essa experiência constitui-se em uma espécie de amparo ambiental introjetado, uma rocha que permitirá ao ser sobreviver às chuvas, aos ventos e às tempestades. Mais do que isso: essa experiência permitirá ao indivíduo encarar a vida não como algo pronto ao qual nosso papel é unicamente o de adaptação, mas sim como uma algo que se abre às contribuições espontâneas e criativas do vivente.

Concluindo, diria que a felicidade, do ponto de vista winnicottiano, não tem a ver com a dimensão dos afetos. Ser feliz não significa experimentar alegria ou prazer, pois isso implicaria em considerar a felicidade como algo fugaz, momentâneo, passageiro. Também não se trata, como pensara Freud, de uma felicidade utópica cuja impossibilidade reside precisamente no fato de ser descrita como estando na dependência daquilo que é barrado pela inserção na cultura. Não. Para Winnicott, a felicidade é uma condição existencial experimentada pelo ser que se sente existindo de modo criativo, ou seja, que não encara a vida como um fardo ou na posição de mero espectador. O que está em jogo é uma felicidade que contempla o imprevisto, o desprazer, a ansiedade como contingências necessárias à existência e não como elementos que tornam o ser infeliz. Em outras palavras, para Winnicott uma felicidade autêntica só pode ser concebida como aquela capaz de sobreviver ao sofrimento sem desfalecer.

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Winnicott e o cristianismo II – o sentimento de continuidade do ser e a Redenção

Um dos critérios que definem um bom texto é a preocupação do autor em fornecer ao leitor todos os pressupostos e postulados que fundamentam a argumentação que será desenvolvida ao longo de seu escrito. É exatamente isso o que vou procurar fazer nesses primeiros parágrafos para que você, caro leitor deste blog, possa saber o ponto de partida de minhas demonstrações.

Por exemplo, falarei aqui de aspectos essenciais do pensamento essenciais do pensamento de D. W. Winnicott. Todavia, para que eles sejam apreciados em toda a sua amplitude e você possa compreender as analogias que farei com o cristianismo, é preciso explicitar o que os postulados de Winnicott significaram para o todo da teoria psicanalítica.

Winnicott, em seu humilde respeito ao pioneirismo de Freud, inicialmente pretendia apenas preencher algumas lacunas do saber psicanalítico com alguns dos conhecimentos que ele extraiu da sua experiência de pediatra com bebês. De fato, nem Freud nem a maior parte dos analistas daquela época possuía tal experiência. Assim, Winnicott dizia que o cerne da teoria de Freud estava na idéia de conflitos intrapsíquicos derivados do relacionamento do sujeito com seus objetos (pessoas), sendo o complexo de Édipo a matriz desse relacionamento. No entanto, para Winnicott, Freud já tomava como dado que o sujeito existia. Nas suas análises de neuroses infantis a partir de neuroses adultas, como no caso do Homem dos Lobos, Freud já dava como pressuposto que a criança se reconhecia como pessoa, sabia diferenciar seu mundo interno do mundo externo e se relacionar com pessoas vistas como pessoas inteiras (não-fragmentadas).

A tarefa da qual Winnicott vai se encarregar é justamente a de mostrar que até chegar a esse estágio (que Freud já dava como estabelecido) houve todo um processo; e que esse processo, para ser bem sucedido, dependia de condições externas, mais especificamente de um ambiente que fosse bom o bastante para facilitá-lo. Assim, Winnicott vai desenvolver suas teses no sentido de evidenciar a trajetória trilhada pelo bebê (com sua mãe) até reconhecer-se como uma pessoa. É aí que a teoria de Winnicott perderá o mero estatuto de complemento da teoria psicanalítica e passará a constituir uma verdadeira revolução paradigmática no interior da Psicanálise. É que Winnicott dirá que a maior tarefa da mãe/ambiente durante os momentos iniciais da vida da criança, é auxiliá-la a manter o sentimento de continuidade do ser. É difícil para nós, adultos, compreendermos tal sentimento, porque nós não nos lembramos mais da extrema confusão em que estávamos imersos no início de nossa vida. Hoje não temos dúvida, ao acordarmos, de que somos a mesma pessoa que dormiu. O bebê não. Ele ainda não conta com esse eixo que agrupa e organiza as sensações. É aí que entra o ambiente. Se o ambiente for bom o suficiente, ele permitirá ao bebê reconhecer-se como uma única pessoa, embora experimente diferentes sensações e aja diferencialmente. Além disso, o sentimento de continuidade do ser tem um aspecto mais profundo que foi justamente o ponto de partida da mudança paradigmática de Winnicott: é o problema da identidade. Quando o ambiente não auxilia o bebê a sentir-se como existindo em meio ao fluxo da vida, isto é, quando o ambiente permite que o fluxo da vida, isto é, a fome, as idas e vindas da mãe, etc. sejam tão fortes ao ponto de fazer com que o bebê se sinta a ponto de ser aniquilado, esse, não vendo saída, passa a se identificar com o próprio fluxo da vida com vistas a permanecer existindo (“Se não pode com eles, junte-se a eles”). Assim, ele tenta manter o sentimento de continuidade do ser à custa de seu próprio ser, na medida em que deixa de ser si próprio para se identificar com o fluxo da vida.

Por que isso significou uma mudança paradigmática na psicanálise? Porque até então, os analistas trabalhavam tendo como paradigma interpretativo do sujeito o modelo freudiano de aparelho psíquico. Ora, Freud considerava que a principal função do psiquismo era o tratamento das excitações vindas do mundo externo e interno. Tal tratamento era feito através dos mecanismos de defesa: recalque, projeção, formação reativa, sublimação, etc. Ou seja, para Freud, a tarefa humana par excellence era lidar com as excitações, mais especificamente com a pulsão, visto que há meios não-psicológicos de combater as excitações externas. É evidente que há uma herança judia nessa formulação freudiana. Afinal, não são os judeus que, não querendo contar com a graça de Cristo, ainda vivem sob a Lei, a qual não faz nada mais que detectar, prevenir e expiar os pecados? O mesmo que faz o aparelho psíquico com a pulsão?

Para Winnicott, no entanto, a principal tarefa do ser humano é conseguir manter o sentimento de continuidade da existência. E é só com a elaboração desse sentimento em um ambiente suficientemente bom que o sujeito poderá vivenciar de forma saudável os conflitos interpessoais e lidar com a pulsão não como algo perigoso, ameaçador, pecaminoso, mas como uma fonte de vida, como algo que o impulsiona.

Será que não é algo análogo o que a graça de Cristo opera no cristão? Pois, ao experimentar o perdão dos pecados, o crente passa a não mais temer o pecado, como o judeu, pois o pecado, em Cristo, perdeu o seu poder destrutivo, qual seja, o poder de envenenar a alma e fazer com que o sujeito não mais se reconheça como alguém criado à imagem e semelhança de Deus. Ou seja, tal como a pulsão não é vista como algo potencialmente aniquilador para quem elaborou seu sentimento de continuidade do ser num ambiente suficientemente bom, assim também o pecado não é mais visto pelo cristão como um monstro, pois o seu ser foi resgatado por Cristo. O grande dilema de quem não aceita a graça de Cristo é que ele não conta com um Redentor. Assim, todo pecado permanece fonte de morte, pois, como diz o apóstolo Paulo, “o salário do pecado é a morte”. O cristão, pelo contrário, caminha seguro, pois sabe que se cair terá Quem o levante. Em outras palavras, se pecar terá Quem o perdoe. Não que ele queira pecar ou tenha deleite nisso. Mas ele pode pecar, pois não se desesperará por isso. Afinal, esperança é o que não lhe falta…

Assim, a energia do pecado que escravizava o homem, passa a servir como força propulsora de amor a Deus. Na carta aos Romanos, Paulo diz: “Nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de iniqüidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça.”

Compreendemos, portanto, que, assim como para Winnicott, para o cristão a questão primordial da vida é o ser. E é só quando o meu ser foi roubado de mim, pelo ambiente insuficiente ou pelo diabo, é que eu encaro a pulsão ou o pecado como potencialmente aniquiladores. No entanto, quando há um Redentor que resgata meu ser e me faz sentir seguro tal como a mãe suficientemente boa com seu bebê, eu posso lidar com o pecado sem medo, convertendo a força que outrora me prendia a ele, em energia que me leva a viver plenamente (cf. “Eu lhes darei vida, e vida em abundância”).

Agora vem a pergunta: como é que posso ter a certeza de que meu ser foi resgatado? Ou: o que faz com que esse sentimento de continuidade do ser não seja abalado pelas vicissitudes da vida? No próximo post veremos finalmente as analogias entre a fé e a confiança no ambiente.

Aforismos – I

A essência de uma cultura se revela em sua língua. Assim, não é de se espantar que numa sociedade cujo idioma encerra numa mesma palavra as dimensões do ser e do estar, o questionamento do ser tenha sido posto no nível da conduta. Ou dito de outro modo, que o plano do ser tenha sido resumido às vicissitudes do estar. É por essas e outras razões que Kant e Heidegger eram alemães e William James e Skinner americanos.