[Slides] A doença psicossomática não existe

No dia 25 de junho, a convite dos alunos do 7º período do curso de Psicologia da Universidade Vale do Rio Doce (Univale), proferi a conferência “A doença psicossomática não existe” no I Colóquio de Psicologia. Foi uma noite bastante frutífera e produtiva. No debate, pude esclarecer alguns pontos de minha exposição que ficaram obscuros ou geraram mal-entendidos, o que promoveu um considerável enriquecimento do conteúdo transmitido.

Conquanto seja provável que eu escreva um texto dedicado exclusivamente ao assunto, compartilho abaixo a apresentação de slides que utilizei na palestra que conta com esquemas úteis e didáticos, fortemente relevantes para a compreensão adequada dos meus pontos de vista.


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Psicossomática e Psicanálise VI: Jacques Lacan

Durante seu ensino, Jacques Lacan nunca tomou o fenômeno psicossomático como tema central de suas investigações. Nunca fez, por exemplo, um seminário dedicado ao assunto como o fez com as psicoses. As referências acerca da psicossomática na obra lacaniana são, portanto, pontuais e consistem essencialmente de comentários realizados em função de questionamentos feitos pelos ouvintes de suas conferências e seminários. Nesse sentido, não podemos exigir de Lacan uma abordagem profunda do tema, como o fizeram, com exceção de Freud, os demais autores que vimos até agora. Apesar disso, as pouquíssimas páginas que podem ser encontradas nos textos de Lacan sobre o fenômeno psicossomático são altamente instrutivas e dão sustentação a pesquisas mais minuciosas sobre o assunto dentro do enquadramento geral da teoria lacaniana. Exemplo disso são os estudos clínicos de Jean Guir, alguns deles publicados na coletânea “A psicossomática na clínica lacaniana”.

Seminário 2: o fenômeno psicossomático não é um sintoma

A partir de uma vista geral dos seminários, artigos e intervenções de Lacan, nota-se que o psicanalista francês abordou o problema da psicossomática em três momentos de seu ensino. No “Seminário 2” dedicado à temática do eu na teoria e na técnica da psicanálise, Lacan se limita a dizer que, diferentemente do sintoma neurótico, que se constitui a partir e no registro simbólico, o fenômeno psicossomático é da ordem do real e está relacionado com o autoerotismo. Lacan parece aqui estar seguindo uma inspiração ferencziana que, como vimos, concebia o fenômeno psicossomático como o investimento libidinal exacerbado no órgão doente. Ao dizer que a psicossomática é da ordem do real, Lacan já sinaliza que concebe tal afecção como estando mais próxima do problema das psicoses do que das neuroses, apontando talvez para a impossibilidade de uma decifração simbólica do fenômeno psicossomático pela via da interpretação.

A segunda referência lacaniana à psicossomática ocorre no “Seminário 11” no qual Lacan está interessado em formalizar os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Deixaremos para adiante a análise do que Lacan diz nesse momento, pois se trata, a nosso ver, da elaboração mais completa que Lacan fez a respeito do assunto e é nela que nos deteremos nesta explicação.

Conferência sobre “O Sintoma”: o fenômeno psicossomático é um hieróglifo

O terceiro momento em que Lacan aborda o fenômeno psicossomático é na conferência que proferiu em 1975 em Genebra (Suíça) sobre o sintoma. Naquela oportunidade, Lacan afirma três coisas importantes sobre psicossomática a partir de perguntas feitas por espectadores. Diferentemente do que havia dito no “Seminário 2”, Lacan assevera agora que o fenômeno psicossomático está profundamente enraizado no imaginário e não no real, o que se coaduna com suas novas elaborações acerca do registro do real que o diferenciam completamente da idéia de realidade material externa.

O segundo ponto frisado por Lacan é a analogia entre o fenômeno psicossomático e um hieróglifo, o qual constitui a unidade fundamental da escrita egípcia antiga que era de cunho ideográfico. O que Lacan está dizendo é que o fenômeno psicossomático se constitui como uma espécie de escrita no corpo, uma escrita que está baseada num código estranho e que só faz sentido a partir desse código, não sendo, portanto, apreensível pelo observador incauto. Trata-se, deste modo, de algo distinto do sintoma neurótico, que, por seu turno, está referenciado simbolicamente ao Outro compartilhado pelo doente e pelo analista, logo, potencialmente interpretável.

Lacan também diz que, em relação ao fenômeno psicossomático, é preciso encontrar o que ele chama de “gozo específico” e que podemos entender através da seguinte pergunta: “A que o fenômeno psicossomático satisfaz? A que ele responde?”. Como veremos posteriormente, Lacan pensa esse fenômeno como uma resposta a algo da ordem da fixação, entendida a partir do conceito freudiano de fixierung que significa a marca, o traço deixado pela experiência no corpo. Quando se diz, por exemplo, que fulano de tal é fixado na fase oral, se está dizendo que seu corpo ficou marcado por suas experiências infantis de satisfação através da mucosa bucal. Ou seja, tais experiências deixaram um traço permanente em seu corpo, a fixação nesse tipo de gozo. O fenômeno psicossomático, de maneira semelhante, seria o resultado de uma marca deixada pelo significante no corpo do sujeito.

Seminário 11: significantes congelados

A seguir, veremos de maneira esquemática como isso pode acontecer, ou seja, como o corpo pode vir a responder às marcas do significante através de uma lesão orgânica. Lacan nos explicou isso no “Seminário 11” no momento em que se dedicava a elaborar as duas etapas de constituição do sujeito: a alienação e a separação. Portanto, para que o leitor possa entender claramente a leitura lacaniana do fenômeno psicossomático gestada nesse momento, será preciso falarmos um pouco sobre essas duas etapas.

Lacan, desde o início de seu ensino, já fazia questão de dizer o tempo todo que talvez a grande descoberta de Freud tenha sido a de que o sujeito não possui nenhuma substância; que ele é efeito do significante. Em outras palavras, isso quer dizer que Freud teria mostrado através da investigação do inconsciente que o sujeito, isto é, essa instância que pode responder por seus atos, não é distinto da linguagem da qual faz uso, mas que, pelo contrário, é propriamente um efeito da linguagem. Quando se diz, por exemplo, “Ele é meu pai.” fazendo referência a uma determinada pessoa, o significante “pai” não representa o sujeito ao qual eu me refiro para a pessoa com quem estou conversando, pois a palavra “pai” só faz sentido ao ser posta em oposição com “mãe”, “filho”, “tio” etc. Ou seja, a palavra “pai” representa o sujeito ao qual me refiro não para aquele com quem eu converso, mas sim para outros significantes, de modo que aquela pessoa específica à qual me refiro como sendo meu “pai” perde sua substancialidade. Ele se torna um mero significante posto em relação com outros. O ser vivente ao qual o significante “pai” foi atribuído se apaga ao ser relacionado com os demais significantes. Permanece apenas o significante “pai”.

Ora, esse mesmo processo acontece com todos nós desde o início da vida. Afinal, ao nascermos já encontramos nas fantasias, nos pensamentos e nas bocas de nossos pais e das pessoas que estão à nossa volta um monte de significantes para serem colados em nós, nem que sejam os nossos meros nomes-próprios. Por razões puramente didáticas, vamos representar esses significantes que se encontram aí à nossa espera como sendo um único significante, S1. Como esses significantes já se encontram presentes antes de nascermos, diremos que esse S1 é o significante do desejo do Outro. Esse Outro com “O” maiúsculo é aqui entendido como o representante de todo o falatório à nossa volta. Portanto, entendam desejo do Outro como significando aquilo que o mundo espera de nós.

Continuando, então, quando a gente nasce, somos imediatamente alocados como o objeto referente de S1, ou seja, objeto do desejo do Outro. O problema é que tudo aquilo que dizem sobre nós, todas as fantasias que têm sobre nós (S1) só faz sentido em relação a todo o resto da linguagem, que a gente poderia chamar de S2. O que acontece, então, é que nosso ser ficará alienado na linguagem, pois aquilo que dizem que somos (S1) só pode ser entendido pela referência a S2, como no exemplo que dei do “pai”. Essa é a primeira etapa da constituição do sujeito que Lacan chamou de alienação.

A segunda operação, chamada de separação, virá à luz quando essa ligação entre S1 e S2 for posta em questão. Ora, certamente poderíamos nos perguntar: por que, afinal de contas, S1 não é suficiente? Por que ele tem que necessariamente estar referenciado a S2, S3, S4, S5… para fazer sentido? É nesse momento que nos apercebemos da falta no Outro. Se o Outro não é capaz de dizer tudo sobre nós, se tudo o que ele diz precisa de outro significante para fazer sentido, e esse de outro e assim sucessivamente, isso significa que esse Outro é incompleto. Há uma falta essencial nele que faz com que sempre se necessite de outro significante para dar sentido ao que se diz. Essa é a própria natureza da linguagem. Só podemos explicar o que é um significante utilizando outros significantes.

Se o Outro é incompleto, isso significa que esse Outro está o tempo todo desejando. Mas, peraí, não éramos nós mesmos o objeto de desejo do Outro? Se esse Outro permanece eternamente desejante, isso significa que nós não somos capazes de satisfazer plenamente seu desejo. Portanto, nós também somos faltosos e desejantes. Mas desejantes do quê? Ora, justamente daquilo que passou a se tornar para nós um enigma: o desejo do Outro. Se esse Outro não se satisfaz comigo, com o que ele se satisfaz, então? O nosso desejo passa a ser o desejo do desejo do Outro. Como S1 é o representante dos significantes iniciais que nos fizeram crer que éramos o objeto do desejo do Outro, é esse S1 que servirá de referência para os demais significantes que buscaremos para descobrir o que satisfaz o desejo do Outro. Em outras palavras, o S1 se tornará o significante-mestre de nossas vidas e essas só terão sentido por ter esse significante como eixo, como centro.

Holófrase e a experiência de Pavlov

Isso tudo acontece em sujeitos neuróticos, ou seja, sujeitos “normais”. Lacan, não obstante, sinaliza a possibilidade de outra estruturação que produzirá como um de seus possíveis resultados o fenômeno psicossomático. Trata-se do congelamento entre S1 e S2. Como dissemos acima, normalmente o significante do desejo do Outro (S1) é posto em relação com os demais significantes (S2). Ou seja, há um intervalo entre S1 e S2 e esse intervalo é justamente a manifestação do desejo do Outro. O Outro só busca a referência a S2 porque S1 não é suficiente. Nos casos em que há o congelamento entre S1 e S2, o intervalo desaparece e com ele a falta no Outro! Lacan ilustra essa estruturação com a figura de linguagem da “holófrase”. Trata-se da enunciação de uma frase inteira com uma única locução, por exemplo: em vez de dizer “Eu gosto de carne.”, digo “Eugostodecarne”. No primeiro caso, a frase faz sentido, pois há um intervalo entre cada palavra. No segundo não; a estranha palavra produzida só possui sentido ao ser desmembrada, ou seja, ao se lhe intercalarem espaços.

Assim, numa estruturação subjetiva em que S1 e S2 se constituem como uma holófrase, o desejo do Outro não é posto em causa, pois a cadeia de significantes é tomada em bloco, como se fosse de fato completa. Como não houve intervalo entre S1 e S2, o primeiro não pôde ser isolado da cadeia e servir de referência para o sujeito. Lacan afirma que são fenômenos decorrentes dessa estruturação são a psicose, a debilidade mental e o fenômeno psicossomático. A especificidade desse último caso é que nele esses significantes que não puderam ser relativizados em função da ausência de intervalo entre eles se incrustam no corpo. Lacan demonstra essa possibilidade apelando para a experiência pavloviana com cães.

O que Pavlov fazia? Ele condicionava o cão a salivar sempre que escutava um determinado sinal sonoro. Fazia isso disparando o sinal sonoro nas repetidas vezes em que dava alimento ao cão. Temos, portanto, do lado do experimentador, que aqui representa o Outro, a produção de uma relação entre sinal sonoro e alimento, uma relação significante, na medida em que a associação entre os dois elementos é puramente contingencial, assim como a relação entre a palavra “galo” e o animal designado por ela não é necessária. No entanto, do lado do cão, não temos essa relação. O cão não pensa: “Ah, o sinal tocou. Isso significa que aquele cara vai me trazer comida”. Ele simplesmente responde organicamente (salivando) a um significante (sinal sonoro). Por não ser dotado de linguagem, o cão não pode se perguntar, por exemplo, “por que esse cara só me dá comida com esse sinal tocando?”. Ele não pode colocar em questão o desejo do Outro!

Para Lacan, com o psicossomático acontece precisamente a mesma coisa. Ele responde no nível do corpo a uma indução significante cujo sentido reside no Outro, mas que a ele foi vedado descobrir em função do processo de congelamento entre S1 e S2. É por isso que é muito comum encontrarmos na clínica com pacientes psicossomáticos a eclosão da doença ou de uma lesão em uma determinada data que para a história de vida do sujeito é significativa. O evento relacionado a essa data não pôde ser colocado em relação com o restante da cadeia de significantes, de modo que o sujeito só pôde responder a ela pela via do corpo. O mesmo acontece com determinados nomes que, ao se apresentarem ao sujeito ao longo de sua existência são capazes de produzir a emergência de um fenômeno psicossomático de maneira imediata. Assim, a doença psicossomática se constitui como um verdadeiro hieróglifo perdido, cujo código original que permitiria decifrá-lo se encontra alhures e é desconhecido tanto pelo analista quanto pelo próprio doente.

Concluindo

Para Lacan, a capacidade de produção de um fenômeno psicossomático como resposta a um determinado evento está na dependência de uma estruturação subjetiva prévia que não possibilitou a emergência do questionamento do desejo do Outro devido ao fato de a cadeia de significantes ter sido imposta ao sujeito em bloco, de maneira congelada, sem intervalos. Assim, determinados eventos encontram um bloqueio ao tentarem ser elaborados psiquicamente. O corpo, então, se encarrega de reagir a tais eventos através de uma lesão orgânica. A função do analista, por conseguinte, é a de colocar a cadeia de significantes para funcionar, tirando-a da paralisia em que se encontra. Do meu ponto de vista, trata-se de fazer o inconsciente existir, de modo a colocar os significantes que induziram à formação do fenômeno psicossomático em dialética com outros significantes. Em outras palavras, inventar uma linguagem em que o hieróglifo marcado no corpo possa adquirir sentido.

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[Vídeo] Psicossomática e Psicanálise V: Pierre Marty

Psicossomática e Psicanálise V: Pierre Marty

A psicossomática é uma estrutura clínica específica, distinta da neurose, da psicose e da perversão ou indivíduos neuróticos, psicóticos e perversos também podem empregar a doença orgânica como defesa? Essa é a principal pergunta que o psicanalista francês Pierre Marty (1918-1993) procurou responder através de seus estudos com pacientes psicossomáticos. Insatisfeito com as idéias veiculadas nos EUA pelo psicanalista húngaro Franz Alexander na década de 30 acerca das relações entre o inconsciente e doenças somáticas, Marty, juntamente com alguns colegas, fundaram aquela que ficou conhecida como Escola Francesa de Psicossomática. Alexander havia propagado nos EUA uma tese que acabou se tornando parte do senso comum segundo a qual conflitos inconscientes muitos intensos gerariam um estado de tensão tamanha que, ao se tornar crônico, acabaria por prejudicar o funcionamento de determinados órgãos.

Marty discordava dessa idéia, pois suas experiências clínicas lhe mostravam que não havia essa relação mecânica direta entre conflitos inconscientes crônicos e doenças orgânicas. Ele notou que, conquanto muitos pacientes apresentassem conflitos dessa natureza, apenas alguns deles somatizavam, de modo que era preciso supor a existência de outro fator para explicar porque isso acontecia.

O paciente jornalista

Fazendo, a partir da clínica, um minucioso estudo comparativo sobre os pacientes que somatizavam, Marty chegou à conclusão de que tais indivíduos possuíam características específicas que os diferenciavam dos demais pacientes. Foi inevitável, portanto, constatar a existência de uma estrutura psicossomática, com modos de manifestação e defesas singulares. A característica mais explícita do comportamento desses pacientes, observada por Marty e seus colaboradores era o modo como eles faziam uso das palavras durante a análise. Enquanto os neuróticos usavam e abusavam da regra da associação livre para “viajarem”, empregando voluntária e involuntariamente metáforas para falarem sobre suas experiências e dedicavam a maior parte do tempo de análise para falarem de si, de suas fantasias, medos, sentimentos etc., os pacientes somatizantes apresentavam um discurso mecânico, controlado, carente de metáforas e essencialmente voltado para a descrição da realidade externa. Eram uma espécie de jornalistas de seu cotidiano. Já tive contato com pacientes assim: todas as sessões eles te trazem um resumão do que aconteceu na semana anterior, numa linguagem “behavioristicamente” fria. Enfim, para utilizar uma analogia, é como se, na análise, os neuróticos fizessem poesia e prosa e os somatizantes uma mera reportagem.

Vidas no real

Marty observou que esse tipo de discurso pobre era reflexo de um tipo de estruturação psíquica igualmente precária, que ele chamou de “pensamento operatório”, “funcionamento operatório” ou “vida operatória”. Trata-se de um tipo de psiquismo que faz uso das representações como meros instrumentos de descrição da realidade externa. Falta ali, por exemplo, a capacidade para falar e pensar numa caixinha de jóias como símbolo do órgão sexual feminino (Cf. o “Caso Dora” de Freud); uma caixinha de jóias é sempre uma caixinha de jóias nesse tipo de psiquismo. Com Freud, nós aprendemos que a significação sexual de determinado pensamento, fala ou comportamento é resultante do investimento de libido (energia sexual) nesses elementos com vistas à consecução de uma satisfação que não pôde ser levada a cabo na origem, isto é, nos elementos recalcados. Diz-se que a libido se desloca desses para aqueles.

Se, portanto, a fala e o pensamento dos pacientes somatizantes não servem à simbolização, ou seja, não recebem significação sexual, isso significa que tais elementos não são investidos de libido. Freud nos mostrou que a fantasia é o suporte que permite esses investimentos. Com efeito, do ponto de vista freudiano, a fantasia é a construção imaginária que o sujeito produz para se consolar de uma frustração. Lacan, por seu turno, nos fez ver que a nossa relação com o mundo (leia-se: desejo do Outro) é sempre frustrante, o que leva todos nós a erigirmos uma fantasia fundamental que passa a nos servir como uma espécie de viseira que nos impede de nos depararmos com essa frustração inerente à existência. É a partir da fantasia que são produzidas todas as formações do inconsciente (sintoma, atos falhos, lapsos, sonhos etc.) que passam, então, a ser encarregadas de veicular a libido cuja descarga total é sempre frustrada.

Marty notou acertadamente que nos pacientes somatizantes há uma “carência fantasmática”, ou seja, neles falta essa dimensão da fantasia para servir de escoadouro da libido. O que acontece, então, com a energia libidinal, já que ela não tem vazão pela fantasia?

Atuar e adoecer: destinos da libido

Ora, outra lição que Freud nos ensinou é a de que a pulsão sexual está imperativamente direcionada para a descarga, de modo que essa tem que acontecer de uma maneira ou de outra. Logo, se nos pacientes somatizantes a libido não é descarregada pela via fantasmática, isto é, através das representações psíquicas, isso significa que ela se encontra livre e pronta para ser descarregada por onde der. No caso dos pacientes somatizantes, o “gargalo” disponível será, evidentemente, o corpo.

No entanto, a descarga pela via do corpo não significa necessariamente uma doença psicossomática. Em vez da somatização, o sujeito pode fazer uso de uma defesa que Freud chamou de “acting-out”, isto é, uma atuação. Recordo-me de uma paciente com um modo de funcionamento explicitamente operatório que, um mês após ter conhecido pela internet um rapaz que morava num país distante, resolveu ir até ele ignorando completamente os riscos que corria ao fazer uma viagem internacional para encontrar alguém que mal conhecia. “Fui sem pensar”, disse ela. É exatamente essa ação desvinculada de um pensar prévio o que caracteriza a atuação. Essa, no entanto, não protege o sujeito contra a doença psicossomática, a qual se constitui na via privilegiada de descarga de libido nos pacientes de funcionamento operatório.

Concluindo

Para Pierre Marty a doença psicossomática é uma estratégia defensiva empregada por determinados pacientes como forma de se livrar do excesso libidinal que não encontrou descarga através da fantasia e das manifestações decorrentes dela. Tais pacientes não são nem neuróticos, nem psicóticos e nem perversos. Possuem uma estrutura psíquica específica caracterizada por uma carência fantasmática que enseja um funcionamento operatório manifesto em um discurso pobre em simbolização e voltado para a descrição da realidade externa.

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Se você quiser saber um pouco mais sobre as idéias de Pierre Marty, leia gratuitamente o excelente artigo escrito por Wilson de Campos Vieira, “A psicossomática de Pierre Marty” para a coletânea “Psicossoma: psicossomática psicanalítica”, clicando neste link.

[Vídeo] Psicossomática e Psicanálise III: Sigmund Freud

Psicossomática e Psicanálise III: Sigmund Freud

Frequentemente quando se vai falar sobre o corpo na literatura psicanalítica, muitos autores já se acostumaram a dizer que Freud teria subvertido o entendimento tradicional do corpo ao propor supostamente a idéia de um corpo simbólico trazido à tona a partir do tratamento da histeria. Dizem esses autores que Freud teria demonstrado, pelas descobertas da psicanálise, que o corpo biológico com o qual viemos ao mundo é transformado, pela incidência do campo das representações, isto é, da linguagem, em um corpo simbólico, um corpo dotado de sentido. Trata-se, não obstante, de um erro de interpretação. Em primeiro lugar, Freud não faz uso da expressão “corpo simbólico” nem sequer aborda essa suposta passagem de um corpo biológico para um corpo simbólico em nenhum momento de sua obra. Quem o faz é Jacques Lacan e apenas alguns poucos daqueles que se professam lacanianos levaram realmente a sério tal formulação. A maioria continua achando que existem dois corpos: o biológico/real e o simbólico, ou seja, que a transformação consiste de fato numa duplicação.

Todavia, trabalhemos com essa interpretação lacaniana de Freud e vejamos até onde ela nos leva. Voltando aos autores mencionados acima, muitos deles também afirmam que Freud teria questionado a separação cartesiana entre corpo e mente ao ter descoberto o tal do “corpo simbólico”. Outro engano. Freud sempre foi um cartesiano e inclusive louvava a separação entre corpo e mente como o fez explicitamente numa carta a Georg Groddeck. Esse, sim, advogava a indissociabilidade entre mente e corpo, como veremos no post em que sua teoria será abordada.

Conversão não é sintoma psicossomático

A descoberta de que a histérica apresenta sintomas corporais derivados de conflitos psíquicos mantém intacta a separação entre corpo e mente. Com efeito, como o próprio Freud assevera, a histérica sofre de reminiscências e não do corpo. O mecanismo da conversão, que Freud diz estar em jogo na histeria é, de fato, uma falsa conversão. Nada ali é convertido a não ser o afeto que originalmente prazeroso, ligado a uma satisfação sexual, passa a ser desprazeroso. Não há conversão da libido de uma representação intolerável para o corpo, mas sim o deslocamento daquela para outra representação, representação de uma parte do corpo! Portanto, se adotarmos a dicotomia mente-corpo, podemos dizer que o fenômeno em questão é eminentemente mental. Numa cegueira histérica, por exemplo, os olhos da paciente permanecem intactos; o que impede a visão não é um problema na estrutura orgânica do olho, mas sim um conflito envolvido nas ligações simbólicas que a representação “olho” possui. Se quisermos adotar um vocabulário neurológico, trata-se de um problema do âmbito das sinapses cerebrais.

Fiz esse preâmbulo para deixar claro que Freud, apesar de pai da psicanálise, não foi pioneiro no campo da psicossomática em psicanálise. Como já tinha avisado no primeiro post desta série, um sintoma psicossomático é um fenômeno distinto de uma conversão histérica e isso porque o primeiro incide sobre o próprio corpo e não sobre a representação do corpo, como na histeria. Mas se Freud não falou de psicossomática por que razão o incluímos nesta série? A resposta é simples: Freud, apesar de não ter se interessado pela psicossomática, não passou ileso em sua clínica por doentes que apresentavam sintomas que afetavam o corpo “real”.

As neuroses atuais

Se alargarmos o termo psicossomática a ponto de incluir não apenas distúrbios cujo causalidade perpassa por elementos de ordem psíquica mas também doenças em que a etiologia está relacionada a eventos de ordem relacional, aí sim podemos dizer que Freud esboçou uma primitiva concepção de psicossomática. Explico: desde o início de sua atuação clínica Freud se deu conta de que trabalhava com dois grupos diferentes de neuroses, aos quais ele chamou de neuroses de transferência e neuroses atuais. As neuroses de transferência, cujos paradigmas são a histeria e a neurose obsessiva, eram aquelas cuja etiologia dos sintomas estava relacionada a eventos da história de vida do sujeito, em especial suas experiências infantis, e cujas coordenadas principais acabavam se atualizando na relação com o analista, constituindo o que Freud chamou de “transferência”. O tratamento dessas neuroses consistiria numa ressignificação dos sintomas a partir da atualização da doença na transferência.

Já as neuroses atuais, cujos exemplares principais são a neurose de angústia e a neurastenia, se caracterizavam principalmente por sintomas corporais como inibição do funcionamento de determinado órgão, irritação em determinada parte do corpo, pressão intracraniana, angústia, fadiga, dores diversas, etc. Evidentemente, tais sintomas, como qualquer sintoma físico, poderiam estar associados a ingestão de determinados alimentos, infecções, degenerações etc. No entanto, o que Freud descobriu através do tratamento dos pacientes que os portavam foi que a maioria deles apresentavam um traço comum: um déficit na sua vida sexual atual – daí o nome escolhido para essas neuroses. Que déficits eram esses? Eram particularidades da vida sexual que impossibilitavam uma descarga satisfatória da energia sexual, como por exemplo: abstinência sexual, práticas de coito interrompido, demora excessiva para o término da relação sexual, como acontece em muitos casais que gastam um tempo exacerbado nas preliminares do ato. Em todas essas situações, uma quantidade enorme de libido ficava acumulada no organismo de modo que a “parte orgânica” da libido, como Freud a chamava, se tornava tóxica em função dessa acumulação. Sim, para Freud a libido possuía uma faceta psíquica e outra somática. A psíquica, ao não poder ser descarregada pelas vias habituai, poderia ser deslocada para fantasias, como Freud observava nas neuroses de transferência. Já a parte orgânica necessitava mesmo de descarga real e quando essa frequentemente não acontecia, a libido se tornava tóxica, gerando danos os mais diversos ao corpo. Nesse sentido, os sintomas produzidos (angústia, disfunção em determinado órgão etc.) eram, analogamente aos sintomas das neuroses de transferência, satisfações substitutivas. Como a faceta orgânica da libido não podia ser descarregada do lado de fora, ela eclodia do lado de dentro.

Diferentemente dos sintomas das neuroses de transferência, os sintomas das neuroses atuais não poderiam ser interpretados simbolicamente. Eles não estavam vinculados a uma história. Pelo contrário, eram respostas às condições atuais de vida do doente. Nesse sentido, o tratamento era baseado principalmente em orientações para mudanças na vida sexual, de modo a permitir a descarga adequada da libido e impedir que ela se tornasse tóxica ao se acumular no organismo.

Concluindo

Vemos, portanto, na descrição que Freud faz das neuroses atuais, a ausência de qualquer menção a fenômenos de ordem psíquica em seu desencadeamento. Portanto, a rigor, as teses de Freud sobre tais enfermidades não poderiam ser vistas como uma primeira incursão da psicanálise no campo psicossomático. Só poderíamos supor o contrário, como eu disse no início, se alargarmos a noção de doença psicossomática para incluir qualquer distúrbio cuja etiologia possa ser remetida a fenômenos de ordem interpessoal.

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Psicossomática e Psicanálise II: Donald Winnicott

Via de regra, tendemos a ver no sintoma psicossomático, como em qualquer outra afecção que nos cause sofrimento, algo a ser extirpado, combatido, eliminado de nosso ser. No entanto, poderíamos nos perguntar: o que nos garante que sem a afecção psicossomática estaríamos melhores? Essa indagação foi feita por Donald Woods Winnicott e a resposta que encontrou para ela foi o reconhecimento da função positiva que o sintoma psicossomático tem para aquele que o apresenta. Vejamos como o psicanalista inglês chegou a tal conclusão.

Quem foi D. W. Winnicott?

Para aqueles que não conhecem Winnicott, os quais imagino não serem legião, é suficiente saber que esse senhor viveu entre 1896 e 1971, atuando como pediatra e psicanalista na Inglaterra. Winnicott elaborou contribuições tão significativas para a psicanálise que alguns autores acreditam que ele tenha dado origem a um novo paradigma psicanalítico, superando anomalias do modelo freudiano. Quem quiser se aprofundar um pouco mais nas inovadoras proposições teóricas do autor encontrará no final deste post uma lista de textos aqui do blog em que eu as abordo. Por ora, vejamos o que Winnicott diz acerca do transtorno psicossomático.

Entre vômitos e loucos

É de sua experiência como pediatra que Winnicott retira suas primeiras observações sobre a dinâmica imanente à constituição do sintoma psicossomático. Ele nota que amiúde os bebês fazem uso de problemas de ordem orgânica para se expressarem e agem assim com uma frequência que aparentemente é muito maior do que nos adultos. Trata-se de crianças que ficam com febre em função de uma ausência longa da mãe, de bebês que vomitam quando querem expulsar de si conteúdos psíquicos atemorizantes, etc.

Dessa experiência com bebês Winnicott extrai a conclusão de que corpo e psique estão intimamente associados. Todavia, a clínica com pacientes psicóticos lhe colocará uma pulga atrás da orelha, pois se deparará com diversos sujeitos que, curiosamente, não se relacionam com o próprio corpo, alegando viverem no organismo de outrem. Como isso é possível? Essa é a pergunta que Winnicott se faz. Como é possível que os bebês lhe apresentem uma vinculação tão profunda entre corpo e psique a ponto de expressarem corporalmente eventos de ordem psicológica e determinados adultos lhe demonstrem exatamente o oposto, isto é, uma total cisão entre corpo e psique?

Se não há quem una, como permanecer uno?

A solução que Winnicott encontra para esse problema é o reconhecimento de que embora corpo e psique possam se vincular, nem todos os indivíduos conseguem realizar essa tarefa. Em outras palavras, no início da vida corpo e psique não estão unidos, podendo ao longo da história do sujeito vir a estar ou não. O que vai determinar um desfecho ou outro? A atuação de Winnicott como pediatra não lhe deixa dúvidas: é o cuidado que a criança recebeu nos primeiros meses de vida. O psicanalista reconhece que a tendência para integrar corpo e psique é inerente a nossa espécie. No entanto, se o ambiente em que nascemos (que para a maioria de nós é a mãe) não ajudar, essa tendência não se realiza. Fora isso o que acontecera com os pacientes psicóticos que diziam viver no corpo do próximo! O ambiente no qual nasceram foi tão falho que sua existência psíquica se constituíra de forma totalmente dissociada de sua corporalidade.

Aqui, cabe uma delimitação conceitual: a palavra psique em Winnicott não é sinônimo de mente. Essa última é entendida pelo autor como uma função intelectual que emerge no momento em que o ambiente começa a fazer a tarefa saudável de quebrar gradualmente a ilusão de onipotência do bebê (“tudo o que eu quero vira realidade”). Nesse processo, o bebê, que antes só se deleitava sem precisar pensar, agora precisa olhar para a realidade e tentar entender o que está acontecendo. É nessa hora que a função mental aparece. A psique, no entanto, já existe. Ela é a elaboração imaginativa de partes e funções do corpo ou, em outras palavras, é a amálgama de fantasias que o bebê elabora sobre o que ele vivencia no nível somático. Se o ambiente é suficientemente bom, ele permite ao bebê integrar essas fantasias ao corpo e passar a ter uma existência psicossomática, isto é, ter a experiência de existir dentro de um corpo.

Caso o ambiente seja muito ruim (no sentido de não auxiliar o bebê nessa tarefa de integrar psique e corpo, a qual Winnicott chama de personalização) a criança não percebe a vinculação entre o que ela produziu de fantasias sobre a experiência corporal e o próprio corpo, ficando refém de uma angústia inimaginável. A saída encontrada pelo bebê nesse caso é cindir completamente tais fantasias do corpo e refugiar-se na mente, na função mental – como acontece com muitos psicóticos nos quais se observa uma capacidade intelectual fora de série.

Está doendo, graças a Deus…

Entre esses dois extremos, isto é, entre um ambiente suficientemente bom e um ambiente que falha muito, existe o que a gente pode chamar de “ambiente mais-ou-menos”. Trata-se de um ambiente que não é bom o bastante, mas também não falha tão drasticamente a ponto de gerar uma cisão entre psique e soma. Quando o bebê é cuidado por um ambiente assim, ele consegue concluir a tarefa de personalização, mas de maneira muito precária. É como se a integração entre corpo e psique se desse de maneira frouxa, de sorte que o indivíduo se desenvolve normalmente, mas com uma tendência para a cisão (isto é, para a psicose) sempre à espreita.

É nesse momento que o sintoma psicossomático revela sua faceta positiva, pois é justamente ele que impede que a cisão aconteça! Explico: pelo fato da integração corpo-psique ter se dado de maneira debilitada, sempre que o indivíduo experimentar situações de grande abalo emocional como lutos, separações conjugais, perda de empregos etc. essa integração frouxa será abalada e a tendência à cisão emergirá. Nessas ocasiões, o organismo lança mão de uma doença psicossomática como que para assegurar a frágil vinculação existente entre corpo e psique. Assim a cisão não acontece, mas em compensação o indivíduo agora se torna refém de uma doença.

Notem, portanto, que, do ponto de vista winnicottiano, ao adotarmos o belicismo terapêutico que vê nos sintomas algo como Bin-Ladens a serem extirpados, incorreremos num grave erro, pois estaremos atacando justamente a tábua de salvação do indivíduo, a pedra onde ele se agarrou para não cair no despenhadeiro da psicose. Além disso, não estaremos levando em conta a “verdadeira” doença constituída pela personalização frouxa e sua correlata a tendência à cisão.

É por isso que, para Winnicott, o tratamento de uma doença psicossomática passa pela provisão de um ambiente suficientemente bom por parte do terapeuta, um ambiente em que o indivíduo se sinta seguro para poder retomar a tarefa que outrora foi feita “porcamente” pelo ambiente “mais-ou-menos”. Agora, o analista assume o papel de ambiente, mas de um ambiente bom o bastante para ajudar o paciente a integrar corpo e psique. Se isso for levado a cabo, não será necessário fazer nada com o sintoma psicossomático. Ele simplesmente desaparecerá, pois perderá sua serventia.

Concluindo

O sintoma psicossomático, para Winnicott, é o último recurso empregado por um indivíduo vivenciando situações difíceis que ocasionam intensas emoções para manter corpo e psique unidos. Tal indivíduo só lança mão da doença por ter realizado o processo de personalização de maneira precária em função das falhas ambientais.

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Por que Winnicott não aderiu ao conceito de pulsão de morte? (parte 1)

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