Agressividade não é violência. É vida!

Freud descobriu que todos nós temos impulsos sádicos, isto é, aquele tesãozinho natural pelo controle e pelo domínio.

Tem gente que tem mais, tem gente que tem menos.

Ele pode estar reprimido, sublimado ou visivelmente manifesto, mas o fato é que está presente em todo o mundo.

Sadismo, no entanto, não é o mesmo que agressividade.

E o autor que nos ajuda a entender melhor essa diferença é o psicanalista inglês Donald Winnicott.

Do ponto de vista winnicottiano, a agressividade diz respeito simplesmente à força espontânea, intensa e impetuosa da nossa pulsão… de vida!

Nesse sentido, um bebê que suga com avidez e voracidade o seio materno está expressando sua agressividade.

Mas isso não tem nada a ver com domínio, controle e muito menos com o desejo de machucar.

Da mesma forma, existe agressividade no choro estridente de uma criança que acorda os pais no meio da noite, ansiando por ser amamentada.

Agressividade é vida!

A gente tende a associá-la a violência porque nossa cultura tradicionalmente lida muito mal com esse aspecto agressivo do nosso ser.

Desde muito precocemente somos estimulados a obedecer, a ficarmos quietos, a nos adaptarmos, a engolirmos o choro.

Em outras palavras, nossa cultura sádica instiga seus membros a sufocarem sua agressividade a fim de se encaixarem passivamente em padrões externos, para viverem um estado de paz sem voz, como dizia O Rappa.

O resultado é óbvio: a agressividade reprimida retorna na forma de violência.

Falamos bastante sobre isso ontem na aula da Confraria Analítica.

Quem não conhece aquela pessoa exageradamente pacífica, que aparentemente seria incapaz de fazer mal a uma mosca, que está sempre fugindo de conflitos, mas que, num estado de crise, explode e se torna extremamente violenta?

É isso o que acontece com um indivíduo que se viu obrigado a esconder de si mesmo a própria agressividade para poder existir bovinamente nos pastos do grande Outro.

A agressividade que não é vivida de forma integrada na existência, pode ressurgir abruptamente de forma dissociada.

Nas palavras do próprio Winnicott:

“Sem a possibilidade de brincar sem compaixão, a criança terá que esconder o seu eu impiedoso e dar-lhe vida apenas em estados dissociados.”


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Você se tornou o sádico de si mesmo?

A experiência psicanalítica evidencia que todos nós possuímos impulsos sádicos.

Isso significa que todo o mundo tem um tesão natural em dominar, vencer, subjugar, exercer poder sobre os outros.

Ah, Lucas, eu acho que eu não tenho isso. Na verdade, eu me sinto até mal quando me encontro numa situação de vantagem sobre outra pessoa.

Isso pode indicar que você reprimiu seus impulsos sádicos. Isso mesmo. Como nossa cultura tende a associar agressividade a violência, muitos pais levam seus filhos a encararem seus impulsos sádicos como tendências horríveis que precisam ser extirpadas. Dessa forma, muitas crianças se veem forçadas a reprimir sua agressividade para não sofrerem punição dos pais.

A repressão também pode acontecer em virtude da expressão violenta dos impulsos sádicos por parte de um dos pais ou de ambos. Assustada pelas agressões parentais, a criança olha para sua própria agressividade como uma tendência perigosa e, por conta disso, reprime a expressão dela.

O problema com a repressão dos impulsos sádicos é que ela não faz apenas a pessoa se tornar frágil e inofensiva. A agressividade reprimida se volta contra o próprio sujeito e ele passa a ser sádico contra si mesmo, punindo-se, sacrificando-se, torturando-se do mesmo jeito que um sádico faz com seu parceiro masoquista.

É por isso que geralmente aquelas pessoas que são vistas e se veem como “incapazes de fazer mal a uma mosca” geralmente são excessivamente autocríticas e se veem sempre como piores do que os outros. Como seus impulsos sádicos foram reprimidos, elas não podem contar com eles como estímulos para a busca da vitória, do crescimento, da força, mas são obrigadas a gozar com eles por meio da derrota, do autodesprezo e da fraqueza.

Para tais indivíduos, domínio é sinônimo de maldade. Então, para não se verem como más, elas se privam de buscar o aumento da própria potência. Mas como a agressividade foi só reprimida e não eliminada, o sujeito acaba se tornando o algoz de si mesmo, a vítima de seus próprios impulsos sádicos.

Você acha que isso acontece com você ou conhece alguém que está nessa condição?


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Por que Winnicott não aderiu ao conceito de pulsão de morte? (final)

No post anterior abordamos as razões pelas quais Freud se sentiu forçado a admitir a existência de uma pulsão de morte, as condições culturais que permitiram a elaboração do conceito bem como suas contradições internas. Aquilo fora apenas um preâmbulo para o que hoje pretendo expor com a intenção de responder à pergunta que efetivamente motivou este texto.

O que Winnicott trouxe de novo para a psicanálise?

Inicialmente, é preciso que o leitor ainda não versado no pensamento de D. W. Winnicott possa ter acesso aos pressupostos a partir dos quais o autor enuncia seu discurso psicanalítico. Tais pressupostos estão diretamente relacionados ao campo de atuação clínica ao qual Winnicott se dedicou durante toda a vida, a saber: a pediatria.

Ainda antes de empreender uma formação psicanalítica, Winnicott já atuava como pediatra, o que lhe permitiu ter acesso a um grande aprendizado acerca das relações entre os bebês e suas mães, saber que faltou a Freud. Winnicott precocemente notou que a mãe (ou outro responsável por cuidar do bebê) exercia um papel fundamental no desenvolvimento da criança, de sorte que se tal função não fosse exercida de maneira boa o suficiente a criança inevitavelmente não se desenvolveria a contento e teria no futuro patologias emocionais específicas.

Esse discernimento por parte de Winnicott acerca da importância da presença ativa da mãe no desenvolvimento do sujeito se colocava na via oposta à da tradição psicanalítica, a começar por Freud. Afinal, o pai da psicanálise elaborou a função da mãe não como ambiente, mas como o objeto libidinal primordial, objeto traumático, diga-se de passagem, pois deixaria como marca para o sujeito o desejo de retorno a um estado inicial de gozo excessivo.

Além disso, o entendimento de que o sujeito só pode se constituir a partir da presença suficientemente boa de um ambiente fez com que Winnicott se apercebesse de que o “eu” é uma função a ser desenvolvida, diferentemente de Freud que trabalhava já com a suposição de um sujeito na criança. Essas diferenças levaram Winnicott a encarar seu trabalho como uma espécie de complemento à teoria psicanalítica tradicional. Com efeito, considerava que o que descobrira no trabalho com bebês deveria ser visto no âmbito teórico como um estágio anterior ao da relação com objetos, fase que fora a principal fonte de investigação para Freud e seus discípulos.

No entanto, o que Winnicott fez de fato foi fundar um novo paradigma no interior da doutrina psicanalítica, com conseqüências teóricas e práticas muito específicas. Uma delas é a recusa do conceito de pulsão de morte.

Pulsão de paz

Ora, o cerne da noção de pulsão de morte, como vimos, está na idéia de que no indivíduo age uma força que o impele a um retorno ao estado inorgânico (morte) do qual ele seria proveniente. Winnicott contrapõe a essa tese dois fatos óbvios: o primeiro é o de que nenhum indivíduo orgânico surge a partir do estado inorgânico. Em outras palavras, só a vida é capaz de gerar outra vida. A título de adendo ao comentário de Winnicott, posso dizer que até mesmo as especulações freudianas que não fazem referência ao indivíduo humano, mas a organismos unicelulares não estão de acordo com muitos dos achados da física moderna que têm borrado cada vez mais as fronteiras do orgânico e do inorgânico a partir do estudo dos fenômenos quânticos.

Para Winnicott, a tendência de descarga total de tensões, que de fato pode ser verificada em nosso aparelho psíquico, não deve ser vista tal como Freud supôs como uma tendência para a morte, mas sim para um estado de coisas que mais se assemelharia à condição inicial do bebê no útero materno, isto é, um estado de total pacificação que não implica na ausência de vida. Aliás, as meditações e diversas técnicas orientais de concentração estão aí para mostrar que um sentimento de ausência de tensões é possível de ser alcançado sem que, para isso, não haja vida.

Desamparo e cuidado

O que levou Freud a incorrer no erro de supor que o que se visa nessa tendência geral de nosso psiquismo é a morte em si mesma e não simplesmente a paz foi, em primeiro lugar, sua concepção concernente às origens do sujeito humano. Para Freud, no princípio era a falta e o excesso. O bebê paradigmático do discurso freudiano é a criança que chora com fome, se lembra do trauma que foi ter nascido e por isso já sabe o que significa o desamparo; é amamentado pela mãe; junto com a satisfação de ter sido alimentado, sente um prazer erótico na mucosa da boca, ou seja, algo que se acrescenta à nutrição como um excesso; e vai passar a vida inteira buscando uma satisfação para esse excesso que nunca poderá ser levada a cabo. Em outros termos, para Freud o sujeito humano é, desde o início, um sofredor, seja pelo desamparo, seja pelo excesso.

Winnicott demonstrará ao longo de todo o seu percurso teórico que esse sofrimento só será fato para aquele indivíduo que em momentos anteriores ao bebê paradigmático de Freud não experimentou um ambiente suficientemente bom. Logo, para Winnicott, no princípio não era nem a falta nem o excesso, mas sim a harmonia existente entre o bebê e a mãe, advinda do estágio de dependência absoluta do cuidado materno que o bebê experimenta após o nascimento. Harmonia necessária para que o bebê possa constituir-se como um sujeito existente. É essa harmonia total, plena, que o vivente busca reproduzir e que Freud pensou tratar-se de uma procura da morte, justamente porque em seu esquema teórico tal harmonia não cabia no curso da vida, ou seja, só poderia ser equivalente à morte.

Desculpa para repensar o mal

A outra razão pela qual Freud caiu no engodo de confundir paz com morte foi o fato de que toda essa elucubração em torno do orgânico e do inorgânico era apenas um modo de Freud introduzir com uma retórica científica suas novas opiniões a respeito do problema da agressividade. Freud era um iluminista e, como tal, confiava nas luzes da Razão para dar jeito no mundo. Quando veio a guerra, a perseguição nazista e uma série de outras barbáries, só restaram a Freud duas alternativas: ou ele reconhecia que a Razão tal como havia sido formulada desde o Iluminismo estava equivocada ou mantinha-se firme em seu discurso racionalista e tentava explicar – pela via da própria Razão – o que havia acontecido. E foi essa a opção adotada pelo médico vienense.

Assim, para Freud, não seria a Razão que estava errada, mas sim os próprios homens e esses errariam porque dentro deles habitava uma pulsão de destruição que, em não matando eles próprios (masoquismo primário), mataria seus semelhantes ao ser deslocada para o mundo externo. Ou seja, Freud explicou a causa pelo efeito, como se dissesse: “por que os homens matam? Porque existe neles um impulso de matar.”. É, portanto, uma explicação que não explica, só adia o problema. E Freud de fato queria adiá-lo, pois para respondê-lo ele teria que colocar em questão a própria racionalidade moderna. O pai da psicanálise preferiu resignar-se e dizer em 1930 que o homem sofre um mal-estar crônico, irremediável, ocasionado justamente pela presença silenciosa da pulsão de morte em cada organismo.

A agressividade como defesa

Winnicott, ainda que não o soubesse, não tinha compromissos com a Razão iluminista. E é por isso que ele enxerga a insuficiência da explicação freudiana da agressividade pela da pulsão de morte. Para o pediatra inglês, em primeiro lugar não se pode dizer que exista no indivíduo uma pulsão de destruição autônoma ao lado de uma pulsão de vida. Seu argumento, embora não faça menção a nenhuma filosofia, é o mesmo que Sócrates utiliza na conversa com Mênon e que C. S. Lewis expressa em “Cristianismo puro e simples”: ora, ninguém busca o mal pelo mal, ou seja, é ilógica a existência de uma pulsão de destruição agindo no organismo de maneira independente da pulsão sexual, pela simples razão de que aquele que faz o mal, o faz porque o considera um bem, ou seja, a destruição constitui-se apenas como um meio para a realização de um fim que, do ponto de vista daquele que age, é um bem.

Winnicott indica isso demonstrando dois fatos: em primeiro lugar, o de que o que nós chamamos de agressividade ou destruição, no início da vida não é exercido com o objetivo de efetivamente destruir. Winnicott afirma que no início da vida o amor é marcado por uma voracidade tamanha que pode fantasisticamente ocasionar a destruição do objeto amado. No entanto, o que o bebê pretende é a incorporação plena do objeto, sendo a destruição apenas um efeito colateral do processo e não o que é originalmente visado. Aliás, assim que bebê se dá conta de que seu amor acabou por destruir o objeto na fantasia, ele experimenta pela primeira vez a sensação de culpa – é o que Winnicott, na esteira de Melanie Klein, chamou de posição depressiva.

Por mascarar essa dinâmica afetiva, o conceito de pulsão de morte pode ser visto como uma reificação da agressividade e, como tal, sem utilidade alguma. Ele impede que se veja as reais fontes históricas do comportamento agressivo como, por exemplo, a reação por parte do indivíduo a acontecimentos que quebram seu sentimento de continuidade do ser. Não há nenhum mistério nisso: Winnicott só constatou o fato óbvio – que Freud não quis ver pelas razões já expostas acima – de que nós nos tornamos agressivos por motivos específicos, pelas experiências de vida que nos forçam a adotar o comportamento agressivo como única forma de nos defendermos. E isso vale não apenas para o relacionamento entre indivíduos, mas também entre nações. Nesse sentido, o conceito de pulsão de morte se torna irrelevante, não é uma hipótese heurística, pois a explicação da agressividade está na história do sujeito. Uma suposta tendência inata para a violência é pura tautologia.

O que muda na prática

A guisa de conclusão, quero dizer que as diferenças entre uma concepção que postula a idéia de uma pulsão de morte e outra que não o faz não se dão apenas no nível abstrato da teoria, mas ensejam distinções importantíssimas na prática. Por exemplo, na análise do problema da crescente violência em nosso país, a aplicação da noção de pulsão de morte como hipótese explicativa pode acabar justificando condutas eminentemente repressivas por parte da polícia e da justiça: afinal, se o homem possui em si uma tendência natural para a violência, não há possibilidade de recuperá-lo, restando apenas o emprego de penalidades cada vez mais severas como forma de brecar o advento externo da pulsão de destruição. Por outro lado, se a agressividade é vista como um comportamento advindo de uma história singular, como uma defesa empregada pelo sujeito na condição de último recurso de enfrentamento de condições que se lhe tornaram adversas, a visão acerca da criminalidade é totalmente distinta da primeira: buscar-se-á em primeiro lugar compreender as origens da violência e, em compreendendo-as, buscar solucionar o problema (que, por ser histórico e não pulsional, pode ser solucionado) pela organização de uma ambiente suficientemente bom que possa fazer com que o sujeito não precise recorrer ao comportamento agressivo como defesa.

***

Não pretendi aqui realizar uma análise completa das razões que levaram Winnicott a não considerar o conceito de pulsão de morte como útil. Ainda restam alguns aspectos a serem explorados, o que posso fazer na discussão com os leitores nos comentários ou em outra ocasião aqui mesmo no blog.

Por que Winnicott não aderiu ao conceito de pulsão de morte? (parte 1)

A partir de 1920, com a publicação do livrinho chamado “Para-além do princípio do prazer”, Freud introduz, ainda que, naquele momento, de modo meramente especulativo, um novo conceito ao edifício teórico da Psicanálise. De acordo com o médico vienense, tal conceito poderia servir como ferramenta de explicação de uma série de fenômenos com os quais vinha se deparando recentemente. Freud deu a ele o nome de pulsão de morte, o qual já foi explicado aqui mesmo no blog. Mas para aqueles que não querem ter o trabalho de ir até o link e ler toda a explicação, farei aqui uma breve síntese acerca da funcionalidade da noção de pulsão de morte para Freud.

Relembrando por que Freud inventou a “pulsão de morte”

Trata-se de uma engenhoca teórica relativamente simples e que se originou de uma suspeita de Freud em relação à validade da sua primeira explicação do aparelho psíquico como tendo uma tendência imperativa à busca do prazer e à fuga do desprazer (princípio do prazer). Com efeito, alguns fenômenos pareciam contradizer tal princípio como, por exemplo, (1) a chamada “reação terapêutica negativa” que consistia no fato de aparentemente o analisando não querer melhorar embora o analista estivesse trabalhando de maneira competente; (2) os sonhos de ex-combatentes de guerra que, em vez de realizar disfarçadamente seus desejos (como acontecia com a maioria das pessoas), revivia as imagens aterrorizantes do campo de batalha e (3) certas brincadeiras infantis cujo mote era a representação simbólica de uma experiência de sofrimento, como a ausência da mãe.

Todas essas experiências foram levando Freud a duvidar da força do império do prazer no psiquismo humano e a aventar a hipótese de que talvez esse império fosse, na verdade, a colônia de um império maior, cuja tendência não seria para o prazer (reequilíbrio homeostático), mas sim para a eliminação completa de todas as excitações, ou seja, para a morte. Seria isso o que tanto as crianças com suas brincadeiras “masoquistas” quanto os neuróticos de guerra e os pacientes que persistiam em seu sofrimento na verdade buscavam de maneira indireta: a morte.

Nesse sentido, o princípio do prazer ou, dito de outra maneira, o “princípio da vida”, seria um desdobramento secundário da pulsão de morte, resultante do contato do organismo com os estímulos do mundo externo. No entanto, como a pulsão original é a de morte, o organismo sempre tenderia, até mesmo utilizando o princípio do prazer, para o retorno ao estado original de ausência de estímulos. A vida seria, portanto, aquilo que durante certo período de tempo, seria capaz de resistir ao imperativo da morte.

Uma das condições para a existência da vida seria o deslocamento da pulsão de morte, originalmente voltada para o próprio organismo, para o mundo externo na forma de agressividade. No fundo, era esse o grande problema que Freud queria resolver: a agressão. Freud só conseguiu explicá-la através do conceito de pulsão de morte. Assim, desse ponto de vista, os homens se matariam porque possuem em si mesmos um impulso destrutivo, do qual determinada parcela é dirigida para o mundo externo.

Quando a morte ganha vida

Para que possamos entender a crítica que Winnicott fará à noção de pulsão de morte, é preciso que observemos que, no momento em que Freud a formula, a idéia da morte como um processo singular ou, em outras palavras, como um ente distinto da vida, já se encontra disseminada, de modo que o contraste entre vida e morte como duas coisas que podem ser diferenciadas por essência já era um pressuposto da elaboração freudiana. Se tal distinção já não estivesse presente na cultura européia do início do século XX, dificilmente Freud seria levado a cogitar a hipótese de uma pulsão de morte. De fato, anteriormente, morte significava simplesmente um ponto final da vida. Ora, o ponto final, no nível da linguagem, apenas sinaliza o encerramento de uma frase, mas em si mesmo não é nada. A partir do momento em que os primeiros médicos da anatomia patológica, cujo expoente maior foi Bichat, necessitaram distinguir no cadáver aquilo que era próprio da doença e aquilo que advinha do próprio processo de morte, se tornou necessário forjar a idéia de morte como oposta à da vida. Assim, enquanto a vida buscaria a organização, o desenvolvimento e a complexificação, a morte tenderia ao oposto: à desorganização, ao declínio das funções orgânicas e à regressão. Em outras palavras, a morte seria uma espécie de negativo da vida.

Viver para morrer?

Foi justamente essa sistematização do conceito de “morte” como ente e processo que ensejou expressões corriqueiras que utilizamos irrefletidamente como “Fulano está morrendo”. Essa frase, aparentemente banal, contém em si, de maneira implícita, uma negação: ao dizermos que o indivíduo está morrendo, estamos igualmente afirmando que ele não está mais vivendo, ou seja, que ele se encontra num outro regime de existência ao qual nós damos o nome de “morte” e que tem início, meio e fim! Ora, vocês hão de concordar comigo que se trata de um evidente paradoxo, pois só pode morrer aquele que está vivo, como me disse, certa vez, um sábio transeunte. Nós acabamos por dar vida à morte, ao ponto em que um pensador da envergadura de Freud se sentiu obrigado a postular a existência de uma verdadeira tendência natural para a morte!

Não sei se vocês, caros leitores, conseguem perceber a contradição, mas para mim é nítido, afinal, se há uma tendência para a morte, logo a morte é o objetivo, certo? Ora, quando se tem um objetivo, se o busca da maneira mais direta possível, concordam? Sendo assim, por que então a pulsão de morte enfrentaria a vida para se manifestar? A explicação de Freud é: a experiência com o Outro institui o princípio do prazer e a pulsão de vida, constituindo um adversário à pulsão de morte. Se aceitarmos essa réplica, caberia ainda outra indagação: se é, de fato, como o próprio Freud afirma, a pulsão de morte que, em última instância, governa os rumos do aparelho psíquico, por que razão ela não seria capaz de superar a pulsão de vida de maneira mais rápida e direta? Em outras palavras, a pergunta fundamental é: por que a morte precisaria da vida para morrer?

É óbvio que se trata de uma questão a que não se pode dar resposta alguma, pois sua própria enunciação é absurda. E é justamente essa contradição interna que será o ponto de partida da crítica que Winnicott fará à validade do conceito de pulsão de morte. Esmiuçaremos essa crítica no próximo post.

O mito do brasileiro apolítico (final)

No post anterior me dediquei a descrever em que consiste o que aqui denomino de “mito do brasileiro apolítico” e a demonstrar porque ele constitui uma falácia. Só relembrando: o mito se refere à idéia enraizada no senso comum de nosso país que afirma que os brasileiros não se interessam por política. Fiz ver que essa idéia é falsa na medida em que ela se sustenta num uso equivocado da noção de política.

Hoje pretendo dar prosseguimento à minha demonstração respondendo a duas perguntas que certamente habitam o espírito do leitor mais atento: (1) Se eu afirmo que o brasileiro se interessa – e muito – por política, onde se manifesta esse interesse? Onde ele se transforma em ação já que não o é no terreno da política “standard”, isto é, no âmbito dos três poderes? e (2) Por que o exercício da política se dá nesses outros espaços e não no domínio tradicional?

Onde o brasileiro mostra que se interessa por política

Certamente o leitor já deve ter visto pela televisão ou quem sabe até tenha comparecido pessoalmente a um evento bastante peculiar ao nosso país e que recebe geralmente o nome de “manifestação de torcedores de times de futebol”. Um acontecimento desse tipo ocorreu recentemente após a eliminação do Corinthians da Taça Libertadores da América. Na ocasião, torcedores demandaram a saída de grandes nomes do time como o atualmente aposentado Ronaldo. Pois bem, a pergunta que eu lhes faço é: “Em que um evento como esse difere em seus elementos constituintes, em sua estrutura, de uma revolta popular com a que houve recentemente no Egito?”. Sem dúvida, a massa dirá: “Existe uma distância óbvia entre um acontecimento e outro: o primeiro não era importante, pois o que estava em jogo era apenas o desempenho de um time de futebol; já no segundo estava em questão o destino de um país.”

Eu concordo com a maior parte desse argumento. De fato, a diferença mais evidente e visível é que num caso se trata de uma agremiação esportiva e em outro de um país. Não obstante, discordo radicalmente da idéia de que um acontecimento é mais importante que outro. Do ponto de vista do observador externo, é óbvio que se fossem escalonados numa hierarquia de importâncias o desempenho de um time de futebol e o destino de uma nação, o último estaria acima do primeiro. No entanto, do ponto de vista de quem está inserido em ambas as manifestações o grau de importância dos motivos das revoltas se equivalem. Não é preciso uma pesquisa neurocientífica para verificar isso. Bastaria perguntar a qualquer torcedor do Corinthians que estivesse envolvido na manifestação se o que ele estava fazendo tinha tanto valor quanto o que os egípcios faziam do outro lado do mundo. É claro que ele diria que sim e ainda acrescentaria que o Corinthians, assim como o Egito, também é uma “nação”.

A nossa tendência ao observar esse tipo de manifestação – digo “nossa” porque me incluo de fato entre os que estão subordinados a essa tendência – é criticá-la e dizer que tais torcedores deveriam organizar uma revolta desse tipo não contra um time de futebol cuja performance não interfere demasiado em suas vidas mas sim contra os parlamentares que aumentaram em 60% seus vencimentos. Efetivamente, é impossível negar que um observador externo consideraria o Brasil uma nação esquizofrênica posto que enquanto os supostos representantes do povo aumentam o próprio salário criminosamente, esse mesmo povo, em vez de se insurgir contra tal situação, se revolta contra o baixo desempenho dos clubes de futebol pelos quais torcem! É ou não é incompreensível à primeira vista?

Sim, à primeira vista é mesmo impossível entender. Mas se colocarmos o povo no divã e analisarmos isso como um sintoma, rapidamente aquilo que era estranho e enigmático passa a ser visto como perfeitamente razoável. Façamos esse exercício.

Deslocamento psíquico e nomadismo político

Freud, desde o início de sua atuação clínica tratando de histéricas e neuróticos obsessivos, pôde verificar uma tendência bastante curiosa do nosso aparelho psíquico. È o seguinte: sempre que algum conteúdo psíquico (lembranças, fantasias, pensamentos etc.) se torna difícil de ser suportado, causando-nos desprazer, angústia, aflição, o nosso psiquismo emprega uma estratégia para que nós não permaneçamos sofrendo angustiados: ele desloca a carga de energia que a gente investia naquele conteúdo que nos causava sofrimento para outro conteúdo mais ameno, que pode até nos fazer sofrer também, mas será um sofrimento suportável, menor que o anterior. Assim acontece, por exemplo, com um obsessivo que não podendo lidar com a culpa que sente perante a idéia de um desejo de matar o pai desloca a energia vinculada a essa idéia para a idéia de que tem lavar as mãos de meia em meia hora. Essa última idéia, que agora aparece investida de energia, certamente o levará a ter grandes incômodos e desprazer; no entanto, nada que se compare à culpa por sentir desejo de matar o próprio pai.

Para quê toda essa digressão sobre o conceito de deslocamento em Freud? Abordei essa idéia porque ela me parece interessante para entendermos esse descompasso entre uma atuação incisiva (e política) de torcedores junto a seus clubes do coração e um parco envolvimento das pessoas com os temas da política standard como a questão dos salários dos parlamentares. Ora, do mesmo modo que a energia ligada a um conteúdo psíquico aflitivo pode ser deslocada para outro conteúdo com o objetivo de diminuir o sofrimento ligado ao primeiro, penso que o interesse e o engajamento políticos podem igualmente ser deslocados de um espaço para outro com vistas a certa finalidade que, nesse caso, não seria a diminuição do desprazer, mas sim a busca de uma polis, como mencionei no post anterior.

Essa analogia fica mais clara se ligarmos a noção de polis à de ethos (como sugeriu o colega Alexandre Brito). Com efeito, o termo ethos (que deu origem ao conceito de ética) denota, em grego, a idéia de “morada”, de “casa”, de “habitat”. Logo, quando dizemos que a atuação política se desloca de um espaço a outro em busca de uma polis, a idéia é de que o deslocamento se dá como estratégia para que o potencial político inerente à condição humana encontre uma morada, uma casa, onde seja possível um exercício efetivo da ação política. Aliás, o termo “casa” é bastante utilizado pelos parlamentares para se referirem à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal. É bastante provável que, com exceção deles mesmos, nenhum de nós se sinta “em casa” nessas casas. E é precisamente por não nos sentirmos em casa em relação a tudo o que está relacionado a tais casas que nós saímos, como nômades políticos, em busca de outras moradas…

É melhor ser torcedor do que ser eleitor

Nesse sentido, assim como a culpa do neurótico obsessivo em relação a seus desejos o força a deslocar a energia que neles investe para idéias obsessivas e atos compulsivos, nosso sentimento de impotência da nossa atuação política junto aos três poderes nos faz sair à procura de novos espaços para exercer a nossa potência política. E nós os encontramos: os nossos times de futebol são um exemplo desses espaços favoráveis. Nesse âmbito nossa atuação é reconhecida (Quem nunca ouviu dirigentes de futebol dizerem que o torcedor tem o direito de protestar, xingar e dizer o que pensa?) e, mais do que isso, ela gera efeitos, tem força: ficou nítido que a aposentadoria de Ronaldo foi precipitada em função da insatisfação dos torcedores em relação a sua atuação e, principalmente, em relação a seu peso.

Em outras palavras, é em espaços como a manifestação de torcedores que nossa potência política pode ser efetivada porque são nesses espaços que o brasileiro se sente “em casa”. O clube de futebol é seu ethos, sua polis, pois ali, como na ágora grega, o seu discurso tem valor, tem reconhecimento e, não raro, decide rumos. É justamente isso o que não ocorre no espaço da política tradicional. O sujeito observa a discussão sobre o aumento de salários dos deputados e pensa: “Pra quê eu vou me manifestar se a decisão ocorrerá independente da minha vontade? É melhor eu usar melhor meu tempo indo lá na sede do Corinthians, porque se a nação não quiser o Ronaldo não fica!”

 

Idealização e demonização do pobre no Brasil

A motivação para que eu escrevesse este texto surgiu a partir de um comentário feito por um apresentador desses programas sensacionalistas “estilo Datena” que cada vez mais se multiplicam na TV aberta. O comentário do apresentador fora feito após a exibição de uma reportagem que mostrava os preparativos para uma manifestação cultural organizada pelos moradores de uma comunidade de baixa renda de um município de Minas Gerais. Após a matéria, o apresentador disse algo mais ou menos nesses termos: “Quem mora no morro é gente de bem, honesta e trabalhadora. Os criminosos são exceções.”. Evidentemente, tal apresentador não foi o único a dizer esse tipo de coisa; falas como essa aparecem com frequência na mídia.

A minha intenção com este post é demonstrar como, por detrás desse comentário aparentemente “justo” e “pertinente”, se camufla uma tentativa pérfida de negar ao pobre sua condição humana e, em decorrência, seu estatuto de sujeito no meio social. Para comprovar essa tese, farei uso da teoria psicanalítica, mais especificamente dos conceitos de idealização e cisão, os quais, em Psicanálise, constituem dois mecanismos de defesa. Freud os utilizou, mas foi a inspiradora e perspicaz Sra. Melanie Klein quem mais os aprimorou evidenciando o papel deles no desenvolvimento psíquico dos bebês. Não vou me alongar muito, pois a idéia é relativamente simples.

Cisão e idealização em Psicanálise

Tanto Freud quanto Klein perceberam através de suas respectivas experiências clínicas que uma das formas que temos de nos defender da constatação inevitável de que a pessoa que tanto amamos pode nos dar prazer, carinho, aconchego e satisfação como também nos frustrar, nos agredir e falhar conosco é dividindo a imagem que temos dessa pessoa em duas: uma boa e outra . É esse o mecanismo de defesa da cisão. Defesa contra quê? Contra a angústia que aparece no momento em que a gente se dá conta de que aquela pessoa não é a perfeição toda que a gente imaginava. A angústia nem é tanto pela constatação das imperfeições do outro, mas porque as imperfeições do outro fazem com que a gente se aperceba de que nós próprios não somos perfeitos.

De todo modo, após operarmos essa divisão, nós passamos a nos relacionar apenas com a parte boa da pessoa, isto é, a parte previsível, sem defeitos, que não nos causa angústia. Todavia, como a realidade (ou, nesse caso, a parte má que foi descartada) não cessa de bater na nossa porta, a gente exagera as qualidades boas da pessoa e exclui de vez os seus defeitos da imagem que temos dela, dizendo para nós mesmos que eles não lhe pertencem. É precisamente isso o que em Psicanálise nós chamamos de idealização.

Preguiçosos ou trabalhadores?

Pois bem, a minha tese é de que os brasileiros fazem o mesmo com aqueles que são menos favorecidos economicamente. Em função do incômodo e do mal-estar gerados pela distribuição criminosamente desigual de renda no país, os quais se manifestam através justamente da violência, nós estabelecemos uma cisão na imagem que temos do pobre. Com que objetivo? Ora, assim como a cisão no plano da psicologia individual tem o objetivo de resguardar nosso narcisismo, no nível social, essa divisão na imagem do pobre é feita com a intenção de mascarar os reais fatores que geram o mal-estar, sendo o principal deles a péssima distribuição de renda. Ou seja, o objetivo é manter intacto o narcisismo da sociedade como um todo.

Assim, para alguns, o problema da violência passa a ser localizado na “natureza” do pobre, através de proposições como a de que pobre não gosta de trabalhar; que é “naturalmente” dado à preguiça; que de levar vantagem em tudo; que só gosta de fazer filho para ganhar mais uma “Bolsa Família” etc. Todos esses argumentos eu já ouvi literalmente. Em contrapartida, para outros, como o apresentador do início do post, o pobre é um exemplo de ser humano: honesto, moralmente íntegro, trabalhador, “de bem”, cumpridor de seus deveres legais.

Anjos ou demônios; jamais humanos

Temos, portanto, claramente duas imagens do pobre: de um lado um diabo que corrói o meio social e que sofre por consequência de sua própria preguiça e do outro um anjo, perfeito, sem qualquer tipo de falha. A grande sacada é perceber que essa última visão angelical não é o avesso da outra, pois ambas possuem uma mesma origem: o desejo de criar uma imagem universal do pobre que jamais corresponderá a nenhum pobre em particular, pois cada pobre singular, como todo ser humano, não é natural nem plenamente bom ou mau.

A idealização nega ao pobre a possibilidade de não corresponder às expectativas do meio social, pois a não-correspondência é tomada como índice de que sua natureza seria o oposto, isto é, má. Por exemplo, quando nosso apresentador diz que as pessoas em geral que moram no morro são honestas, ele está fixando nelas uma falsa essência. Ninguém é honesto ou desonesto. As pessoas têm atitudes honestas e desonestas em contextos específicos e isso vale tanto para pobres quanto para ricos, mas ninguém é essencialmente honesto ou desonesto porque mesmo que nunca tenha cometido um ato de desonestidade essa figura como possibilidade, a menos que se trate de uma máquina. A idealização, portanto, longe de valorizar o pobre, veda-lhe o direito de errar. Por outro lado, quando se o demoniza, ocorre o oposto: o direito que lhe é negado é o de acertar. Estabelece-se assim, de ambos os lados, a retirada do estatuto de humano ao pobre, isto é, de possibilidade tanto do “erro” quanto do “acerto”, conceitos que, obviamente, se estabelecem a partir de convenções sociais.

A idealização ou demonização do pobre constituem estratégias defensivas contra o incômodo de descobrir as razões pelas quais em determinados momentos o pobre age de um modo que qualificamos como “bom” e em outros de uma maneira que denominamos “má”. Por que isso geraria incômodo? Por que no fundo todo mundo sabe que boa parte dessas razões tem a ver com o modo injusto como erigimos nossa sociedade.

Concluindo…

É mais fácil afirmar categoricamente que o pobre é preguiçoso por natureza do que tentar compreender as razões da sua “preguiça” e descobrir que se é um péssimo patrão que não oferece condições satisfatórias de trabalho e paga um salário indecente. Por outro lado, é também mais cômodo negar que o pobre, como também o rico e qualquer ser humano, gosta mais do descanso do que de um trabalho estafante e dizer que o pobre adora trabalhar, é sempre honesto e “de bem”…

Tropa de Elite 2: agora sim um filme para adultos

Amadurecimento: não há palavra melhor para qualificar o resumo da ópera do segundo Tropa de Elite. Enquanto na primeira seqüência havíamos assistido a uma série de preconceitos e visões estereotipadas dos mais diversos segmentos da sociedade, do estudante burguês de classe média ao próprio BOPE, nessa segunda seqüência o diretor José Padilha mostra que “o buraco é mais embaixo”.

O intelectual de esquerda que, no começo do filme, aparece como maconheiro, ingênuo e alienado acaba emergindo como o principal aliado de Nascimento (Wagner Moura) (um excelente sobrenome para um protótipo de herói nacional, diga-se de passagem) na luta contra os novos “alvos” que, dessa vez, são os políticos e as milícias. Essa transformação é exemplarmente operada pelo diretor, de tal modo que no início do filme o espectador inevitavelmente se coloca do ponto de vista de Nascimento e, gradualmente, vai sendo levado, como o próprio personagem, a mudar suas concepções.

Fraga (Irandhir Santos), o intelectual de esquerda em questão, um ativista de direitos humanos que é quase assassinado na cadeia ao ser feito refém durante uma rebelião de presos em Bangu I, se torna deputado e passa a ser uma espécie de elo da missão de Nascimento na dimensão política do “sistema”, essa entidade abstrato-concreta que é demonizada (de maneira justa) pelo ex-comandante do BOPE. Sim, ex. Nascimento se torna assessor do secretário de Segurança Pública e é ali, nas adjacências de seu gabinete que ele percebe que o problema da violência no Rio não se trata apenas de uma questão de mocinhos contra bandidos.

Esse é o ponto em que melhor se nota o amadurecimento do filme em relação a sua primeira seqüência. No primeiro “Tropa”, tudo se passa como se existisse uma clara fronteira de demarcação entre de um lado o BOPE, com todos os seus signos fálicos, com Nascimento encarnando com perfeição o arquétipo do herói e de outro os traficantes que naquele momento são retratados como uma espécie de retardados mentais violentos e sanguinários. Na fronteira, uma parte corrupta da polícia militar cuja função naquele momento é apenas a de atrapalhar os planos da Polícia macho, honesta e incorruptível, os “caveiras”.

Nesse segundo “Tropa”, os traficantes saem de cena para dar lugar às milícias, grupos de policiais corruptos que tomam as comunidades e passam a extorquir a população local em troca de uma suposta proteção contra os bandidos. Os milicianos possuem ligações não só com setores do poder público como também com apresentadores imbecis de programas de TV (estilo Datena) para os quais a morte dos bandidos é a única solução para a redução da violência. Esse, a meu ver, é um dos pontos mais interessantes da película. O diretor acaba deixando explícito o que todo mundo que pensa já sabe: que programas datenescos não ajudam em nada no combate à violência e que, pelo contrário eles transformam um problema que é social numa espécie de guerra civil. Assim, os bandidos não são percebidos como o que de fato são, isto é, crias de um sociedade cujo útero é corrupto e passam a ser vistos como alienígenas que aqui chegaram possuídos por uma pulsão de morte tresloucada. Fora o fato de que os apresentadores desses programas só conseguem sobreviver graças aos litros de sangue exibidos diariamente em suas reportagens.

Voltando ao tema das milícias, o que torna a questão ainda mais complexa é que a entrada dos milicianos nas favelas é atribuída em parte à própria estratégia de enfrentamento do BOPE que, ao impedir a chegada de novas cargas de drogas aos morros, inviabiliza a corrupção da polícia. Essa, ao perder sua fonte de dinheiro, acaba por exterminar alguns traficantes e tomar o lugar dos mesmos como donos das comunidades. Em outras palavras, as milícias são uma espécie de efeito adverso da política exterminadora do BOPE.

Outro aspecto que faz com que o espectador não saiba mais definir quem é vilão e quem é mocinho é o fato do próprio filho de Nascimento ser usuário de maconha, o que acaba sendo uma espécie de “pagar a língua” para Nascimento que, numa cena já clássica do primeiro filme, esbofeteia um estudante acusando-o de ser financiador do tráfico.

Mesmo com todas essas questões que evidenciam um amadurecimento de um filme para outro, não se pode perder de vista que a película continua sendo um filme, ou seja, um item da indústria cultural feito para ser consumido pelo maior número de pessoas. Logo, ele não poderia espelhar fielmente a realidade, caindo inevitavelmente numa nova polarização de mocinhos e bandidos. Ainda que esses se confundam ao longo do filme, ao final Nascimento continua encarnando o arquétipo de herói e, como o próprio slogan do filme enuncia, “o alvo agora é outro”, a saber, o sistema que tem na classe política seu coração. Ou seja, o inimigo é redefinido de forma mais complexa, mas continua havendo um lado negro da força A Tropa de Elite não é mais o BOPE, mas o próprio Congresso Nacional. Agora sim se trata de um filme para maiores de 16…