Idealização e demonização do pobre no Brasil

A motivação para que eu escrevesse este texto surgiu a partir de um comentário feito por um apresentador desses programas sensacionalistas “estilo Datena” que cada vez mais se multiplicam na TV aberta. O comentário do apresentador fora feito após a exibição de uma reportagem que mostrava os preparativos para uma manifestação cultural organizada pelos moradores de uma comunidade de baixa renda de um município de Minas Gerais. Após a matéria, o apresentador disse algo mais ou menos nesses termos: “Quem mora no morro é gente de bem, honesta e trabalhadora. Os criminosos são exceções.”. Evidentemente, tal apresentador não foi o único a dizer esse tipo de coisa; falas como essa aparecem com frequência na mídia.

A minha intenção com este post é demonstrar como, por detrás desse comentário aparentemente “justo” e “pertinente”, se camufla uma tentativa pérfida de negar ao pobre sua condição humana e, em decorrência, seu estatuto de sujeito no meio social. Para comprovar essa tese, farei uso da teoria psicanalítica, mais especificamente dos conceitos de idealização e cisão, os quais, em Psicanálise, constituem dois mecanismos de defesa. Freud os utilizou, mas foi a inspiradora e perspicaz Sra. Melanie Klein quem mais os aprimorou evidenciando o papel deles no desenvolvimento psíquico dos bebês. Não vou me alongar muito, pois a idéia é relativamente simples.

Cisão e idealização em Psicanálise

Tanto Freud quanto Klein perceberam através de suas respectivas experiências clínicas que uma das formas que temos de nos defender da constatação inevitável de que a pessoa que tanto amamos pode nos dar prazer, carinho, aconchego e satisfação como também nos frustrar, nos agredir e falhar conosco é dividindo a imagem que temos dessa pessoa em duas: uma boa e outra . É esse o mecanismo de defesa da cisão. Defesa contra quê? Contra a angústia que aparece no momento em que a gente se dá conta de que aquela pessoa não é a perfeição toda que a gente imaginava. A angústia nem é tanto pela constatação das imperfeições do outro, mas porque as imperfeições do outro fazem com que a gente se aperceba de que nós próprios não somos perfeitos.

De todo modo, após operarmos essa divisão, nós passamos a nos relacionar apenas com a parte boa da pessoa, isto é, a parte previsível, sem defeitos, que não nos causa angústia. Todavia, como a realidade (ou, nesse caso, a parte má que foi descartada) não cessa de bater na nossa porta, a gente exagera as qualidades boas da pessoa e exclui de vez os seus defeitos da imagem que temos dela, dizendo para nós mesmos que eles não lhe pertencem. É precisamente isso o que em Psicanálise nós chamamos de idealização.

Preguiçosos ou trabalhadores?

Pois bem, a minha tese é de que os brasileiros fazem o mesmo com aqueles que são menos favorecidos economicamente. Em função do incômodo e do mal-estar gerados pela distribuição criminosamente desigual de renda no país, os quais se manifestam através justamente da violência, nós estabelecemos uma cisão na imagem que temos do pobre. Com que objetivo? Ora, assim como a cisão no plano da psicologia individual tem o objetivo de resguardar nosso narcisismo, no nível social, essa divisão na imagem do pobre é feita com a intenção de mascarar os reais fatores que geram o mal-estar, sendo o principal deles a péssima distribuição de renda. Ou seja, o objetivo é manter intacto o narcisismo da sociedade como um todo.

Assim, para alguns, o problema da violência passa a ser localizado na “natureza” do pobre, através de proposições como a de que pobre não gosta de trabalhar; que é “naturalmente” dado à preguiça; que de levar vantagem em tudo; que só gosta de fazer filho para ganhar mais uma “Bolsa Família” etc. Todos esses argumentos eu já ouvi literalmente. Em contrapartida, para outros, como o apresentador do início do post, o pobre é um exemplo de ser humano: honesto, moralmente íntegro, trabalhador, “de bem”, cumpridor de seus deveres legais.

Anjos ou demônios; jamais humanos

Temos, portanto, claramente duas imagens do pobre: de um lado um diabo que corrói o meio social e que sofre por consequência de sua própria preguiça e do outro um anjo, perfeito, sem qualquer tipo de falha. A grande sacada é perceber que essa última visão angelical não é o avesso da outra, pois ambas possuem uma mesma origem: o desejo de criar uma imagem universal do pobre que jamais corresponderá a nenhum pobre em particular, pois cada pobre singular, como todo ser humano, não é natural nem plenamente bom ou mau.

A idealização nega ao pobre a possibilidade de não corresponder às expectativas do meio social, pois a não-correspondência é tomada como índice de que sua natureza seria o oposto, isto é, má. Por exemplo, quando nosso apresentador diz que as pessoas em geral que moram no morro são honestas, ele está fixando nelas uma falsa essência. Ninguém é honesto ou desonesto. As pessoas têm atitudes honestas e desonestas em contextos específicos e isso vale tanto para pobres quanto para ricos, mas ninguém é essencialmente honesto ou desonesto porque mesmo que nunca tenha cometido um ato de desonestidade essa figura como possibilidade, a menos que se trate de uma máquina. A idealização, portanto, longe de valorizar o pobre, veda-lhe o direito de errar. Por outro lado, quando se o demoniza, ocorre o oposto: o direito que lhe é negado é o de acertar. Estabelece-se assim, de ambos os lados, a retirada do estatuto de humano ao pobre, isto é, de possibilidade tanto do “erro” quanto do “acerto”, conceitos que, obviamente, se estabelecem a partir de convenções sociais.

A idealização ou demonização do pobre constituem estratégias defensivas contra o incômodo de descobrir as razões pelas quais em determinados momentos o pobre age de um modo que qualificamos como “bom” e em outros de uma maneira que denominamos “má”. Por que isso geraria incômodo? Por que no fundo todo mundo sabe que boa parte dessas razões tem a ver com o modo injusto como erigimos nossa sociedade.

Concluindo…

É mais fácil afirmar categoricamente que o pobre é preguiçoso por natureza do que tentar compreender as razões da sua “preguiça” e descobrir que se é um péssimo patrão que não oferece condições satisfatórias de trabalho e paga um salário indecente. Por outro lado, é também mais cômodo negar que o pobre, como também o rico e qualquer ser humano, gosta mais do descanso do que de um trabalho estafante e dizer que o pobre adora trabalhar, é sempre honesto e “de bem”…

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10 comentários sobre “Idealização e demonização do pobre no Brasil

  1. God Bless Melanie Klein 🙂

    Muito boa a sua observação Lucas! Parabéns! É realmente importante que as pessoas passem da posição esquizoparanóide para a posição depressiva.

    “Tanto Freud quanto Klein perceberam através de suas respectivas experiências clínicas que uma das formas que temos de nos defender da constatação inevitável de que a pessoa que tanto amamos pode nos dar prazer, carinho, aconchego e satisfação como também nos frustrar, nos agredir e falhar conosco é dividindo a imagem que temos dessa pessoa em duas: uma boa e outra má. É esse o mecanismo de defesa da cisão.”

    E uma boa observação. Basta reparar na reacção das pessoas depois de terminar um relacionamento. A outra pessoa é logo ISTO e AQUILO (linguagem maiores de 18), catalogando o seu lado MAU pondo de parte tudo de bom o que já foi passado.

    Um abraço,
    Cláudio

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  2. Lucas Nápoli

    Belo exemplo esse que você deu, Cláudio!

    O mecanismo da cisão numa perspectiva cronológica é o mais primitivo de todos, além de ser bastante eficaz como defesa da angústia. O problema é quando as duas personagens (o bom e o mau) surgidas a partir da divisão se convertem de imagens em elementos “reais”. Aí estamos no terreno da psicose…

    Grande abraço!

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  3. Lucas Nápoli

    Olá Rafael. Anexei esta foto porque, ao meu ver, a figura de Lula é representativa de ambas as ideologias: tanto a idealização quanto a demonização. Por um lado, Lula foi durante um bom tempo da vida política nacional o arquétipo do pobre demonizado. Ainda hoje se nota resquícios disso quando algumas pessoas fazem alusão a uma suposta tendência de Lula ao alcoolismo que é apenas a metonímia de um argumento maior que faz uma ligação orgânica entre pobre, preguiça e alcoolismo.
    Por outro lado, Lula, talvez até como reação a esse primeiro processo, frequentemente utilizou inclusive como mote político uma visão angelical do pobre, a qual talvez tenha sido um dos fatores que incidiram sobre a falta de fiscalização no recebimento dos valores repassados pelo Programa Bolsa Família.

    Grande abraço e obrigado por fazer a pergunta e me permite esclarecer!

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  4. RAQUEL

    Gostei do texto, só acho que a palavra “compreender” do último parágrafo não foi bem colocada. Enquanto compreendermos tudo, nada sairá do lugar. É preciso sair da compreensão para que o outro possa fazer disto uma outra coisa, possa advir um significante novo e se responsabilizar pela sua própria história.

    Gostei do blog.

    Parabéns!

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  5. Lucas Nápoli

    Olá Raquel! Primeiramente, muito obrigado por seu comentário, o qual me dá ocasião de esclarecer alguns pontos.
    Já discuti essa questão do uso do termo “compreensão” ou “compreender” com outras pessoas cujo posicionamento a esse respeito se fundamenta na perspectiva lacaniana, e sempre repito o mesmo argumento: o guarda-chuva do verbo “compreender” abarca uma série de significados. Nesse sentido, quando utilizo o termo “compreender” nesse texto estou me referindo ao ato de discernir, de esclarecer, de tirar da obscuridade fatores que podem servir como ferramentas de explicação do comportamento em questão, a saber: a “preguiça”.
    Penso que o sentido do verbo “compreender” que você tem em mente se refere à compreensão terapêutica bastante apregoada por determinadas correntes psicológicas e que, na ótica psicanalítica, se traduz como uma justificativa que acaba por impedir o sujeito de se reconhecer como responsável por seus sintomas e queixas.
    Trata-se, portanto, de dois usos distintos do verbo “compreender”. Como nesse texto sobre a idealização e demonização do pobre não adoto uma perspectiva clínica mas talvez mais próxima de uma psicologia social com fundamentação na teoria psicanalítica, senti-me livre para usar o termo “compreender” na primeira conotação a que fiz menção.
    Penso que você está certíssima quando diz que não se deve compreender tudo. Mas ao meu ver, isso só faz sentido dentro do contexto terapêutico. Aliás, expresso isso com todas as letras nesse post aqui ó:

    O que um psicanalista faz? (parte 2)

    Um grande abraço e apareça sempre!

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  6. Rosângela

    Oi Lucas…

    Me parece tb que essas pessoas que colocam as pessoas menos favorecidas economicamente, como seres acima do bem ou do mal, como seres do bem…apesar de viverem mtas vezes em situações sub-humanas…querem com isso aliviar um pouco ou muito do sentimento de culpa…por algumas vezes terem tido um enriquecimento além dos padrões normais e saberem que existem pessoas que vivem uma vida de restrições básicas e sem condições de crescimento econômico, social, educacional e moral!!!Beijim

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  7. Lucas Nápoli

    Exatamente, Ro! E isso também está associado ao mecanismo psíquico da idealização: eu idealizo o outro para que nele não haja nada de mal que me lembre o mal que há em mim. Certíssima sua colocação! Beijão!!

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  8. Valcimar

    Nunca li artigos tão bons até os comentarios são de muita qualidade e bom gosto não fogem do assunto nem fazem apologia. Na minha opinião tem pouca coisa na internet que se compare a esse artigo.
    Obrigado por esclarecer tantas coisa.

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