Para muitas pessoas, o conceito de saúde emocional está diretamente ligado ao sentimento de estar em equilíbrio do ponto de vista psicológico. Não por acaso, muitos autores definem o termo “crise” em psicopatologia como sendo a ocasião em que esse equilíbrio seria perdido. Nesse sentido, a capacidade de se manter em equilíbrio diante de situações que tendem a provocar instabilidade seria um forte indicador de saúde emocional. Por outro lado, as imagens que imediatamente nos vêm à cabeça quando pensamos em alguém “equilibrado” são as de uma pessoa ajustada à moral vigente, que cumpre seus deveres e se mostra impassível diante das mais diversas situações. Assim, a ideia de “equilíbrio emocional” quase sempre nos evoca imagens de pessoas chatas, sem graça ou pouco afetivas.
Creio que essa associação se deve ao fato de pensarmos intuitivamente no equilíbrio da mesma forma que nos acostumamos a pensar no conceito de saúde, a saber: de um ponto de vista negativo. Assim, como a saúde foi tradicionalmente concebida como ausência de doença, assim também o equilíbrio é tomado de forma imediata como ausência de instabilidades. O indivíduo equilibrado seria aquele que não se move, não se altera, não se afeta. Em suma, uma abstração.
Penso que o conceito de “equilíbrio emocional” só pode adquirir valor teórico e prático se for definido positivamente, a exemplo do que alguns teóricos fizeram com a noção de saúde. Enquanto a saúde era definida como ausência de doença ou ausência de anormalidades, não se podia definir ninguém como efetivamente saudável, na medida em que nenhum indivíduo concreto seria capaz de encarnar o ideal de um organismo sem nenhum tipo de alteração ou anormalidade. Atento a essa incoerência, o filósofo Georges Canguilhem ousou propor uma concepção positiva de saúde. Saudável, para Canguilhem, é aquele indivíduo que além de conseguir viver dentro das condições que o ambiente em que se encontra lhe impõe, possui a plasticidade suficiente para se adaptar a outros contextos. O filósofo, portanto, define saúde não como a ausência de doença, mas como a presença dessa capacidade ativa de adaptação.
Acredito que possamos utilizar esse mesmo procedimento para fazer com que o conceito de “equilíbrio emocional” não seja tomado como uma mera abstração idealizada ou como sinônimo de chatice. Para isso, devemos nos perguntar: como definir esse conceito positivamente? O que é uma pessoa emocionalmente equilibrada? Penso que para realizar essa tarefa, o poeta Martinho da Vila possa nos ajudar.
No seu primeiro disco, de 1969, Martinho canta o verso “Quem é do mar não enjoa”, que, aliás, é o título da música em que se encontra. Penso que essa frase curta e singela resume de forma brilhante os traços essenciais de um indivíduo emocionalmente equilibrado. Como se vê, o verso faz referência aos marinheiros, pescadores e demais pessoas que lidam com a vida em alto-mar. Qualquer pessoa que já esteve em alguma embarcação sabe que uma reação bastante comum nos primeiros dias de navegação é o enjoo produzido pelo balançar do barco no mar. Aqueles que precisam passar muito tempo navegando, pouco a pouco vão deixando de sentir esse enjoo, acostumando-se à instabilidade do “solo” no qual trafegam.
É interessante notar que, diferentemente do que ocorre com os navegantes eventuais, que deixam de sentir enjoo ao tomarem certos medicamentos ou ao retornarem para a terra firme, os chamados “homens do mar” aprendem a não sentir náuseas. Aprendem por meio da vivência contínua do balançar da embarcação. Eles não tomam pílulas para não experimentar a inevitável sensação de desequilíbrio e instabilidade provocada pelo movimento do mar. Essa agitação passa a fazer parte de seu cotidiano, de modo que o enjoo, fruto do descompasso entre a estabilidade da terra e a instabilidade do oceano, gradualmente desaparece.
Creio que a existência humana está muita mais próxima da experiência de navegação em um mar revolto do que de uma caminhada em terra firme. Talvez seja essa a razão pela qual a maioria de nós se apega tanto às rotinas e procedimentos burocráticos. Rotinas são rotas conhecidas, já trilhadas, que já não produzem o estranhamento (e o encantamento) que experimentamos diante de uma vereda desconhecida. A rotina faz a vida parecer um eterno passeio por ruas já percorridas. Com isso não estou fazendo uma apologia a uma vida completamente imprevisível, sem nenhum tipo de regularidade. Quero apenas revelar o desespero que pode estar por trás do apego que muitos de nós temos em relação às nossas rotinas. Trata-se, a meu ver, de um desespero equivalente ao enjoo que experimentam aqueles “que não são do mar” quando estão em uma embarcação. A rotina, nesse sentido, poderia ser vista como um remédio para eliminar o enjoo, ou seja, uma solução artificial para o desespero diante da instabilidade e imprevisibilidade do oceano existencial. Isso não significa que o indivíduo emocionalmente equilibrado seria aquele que não tem enjoos, ou seja, não sofre, não se exalta, não se afeta.
Assim como o marinheiro que no início de sua carreira padece diariamente com náuseas, mas que logo aprende a conviver com o balanço do mar, assim também o indivíduo emocionalmente equilibrado aprende que problemas, impasses, dores são inevitáveis na existência, mas que é possível sobreviver a elas. O desequilíbrio emocional estaria na incapacidade de suportar o vai-e-vem da vida. Desequilibrado não é quem eventualmente se exaspera, grita, chora diante das situações, mas aquele que é incapaz de se manter emocionalmente de pé perante as vicissitudes da existência, sonhando com uma vida firme, previsível, sem náusea e sem graça.
É preciso manter-se firme no mar de intempéries da vida.
O homem é um pêndulo a oscilar entre o prazer e a dor. -Lord Byron
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É isso mesmo…e só com o tempo eu pude ir aprendendo isso….muitas vezes o mar calmo, de um segundo a outro vira revolto e é muito louco….ainda enjoo em algumas situações, principalmente se forem muito novas, mas aos poucos vou melhorando do enjoo….
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