[Vídeo] Psicossomática e Psicanálise IV: Sandor Ferenczi

Psicossomática e Psicanálise IV: Sandor Ferenczi

Se não me falha a memória, passei toda a minha graduação em Psicologia sem ouvir sequer uma única vez o nome de Ferenczi ser pronunciado por algum de meus professores. Ao contrário do que o leitor possa pensar, não se trata de uma deficiência específica da universidade em que me formei. A maior parte dos cursos de Psicologia não aborda as proposições teóricas e técnicas desse importante autor. E isso não se deve apenas a uma limitação de tempo, mas também – e principalmente – pelo fato de as disciplinas relacionadas à teoria psicanalítica se dedicarem quase que exclusivamente às idéias de Freud e Lacan. No máximo Winnicott, Melanie Klein ou Jung aparecem à surdina.

Assim, o estudante de Psicologia sai da graduação sabendo apenas que Ferenczi foi um discípulo de Freud que em determinada época começou a propor umas inovações na técnica psicanalítica – e que Freud não foi muito com a cara delas. Pouca gente sabe, por exemplo, que quem mais defendeu a chamada “segunda regra fundamental da psicanálise” segundo a qual todo analista deveria passar por sua própria análise pessoal foi Ferenczi e não Freud.

Em decorrência disso, quem conhece a obra ferencziana um pouco mais provavelmente o fez como resultado de uma formação psicanalítica tradicional em alguma instituição ou leu seus escritos por conta própria – o que foi o meu caso. E é justamente sobre um trabalho de Ferenczi que o post de hoje trata.

Por que Ferenczi?

Estamos abordando nessa série as concepções de doença psicossomática na teoria psicanalítica. De fato, Ferenczi não foi um autor que versou muitas páginas sobre o tema. No entanto, sua inclusão aqui se deve a duas razões: a primeira é a de que ele foi um dos primeiros autores da psicanálise a crer na eficácia do método freudiano no tratamento de doenças orgânicas. Tanto é assim que quando Georg Groddeck, o autor que levará mais seriamente essa idéia e cujas teses veremos em um dos próximos posts, faz sua entrada na psicanálise, Ferenczi se tornará um de seus mais próximos colegas e até seu paciente. A segunda razão que nos leva a incluir Ferenczi nessa série é seu interessante artigo “As neuroses orgânicas e seu tratamento”, justamente o texto em que o autor esclarece o que pensa sobre a possibilidade de processos inconscientes serem expressos pelo corpo. Vejamos, então, o que Ferenczi diz nesse trabalho.

Quando o corpo vira amante

Apesar de ter sido utilizada pela primeira vez em 1818, mesmo em 1926, quando o artigo foi escrito, a palavra “psicossomática” ainda não era um termo comum, de modo que havia diversas expressões para designar desordens somáticas com fatores etiológicos psíquicos. Ferenczi utiliza o termo “neurose orgânica”.

No início do artigo, não há nada de novo. Ferenczi se dedica apenas a repetir aquilo que na semana passada vimos ser a concepção de Freud acerca das chamadas “neuroses atuais”. Assim, na neurastenia e na neurose de angústia (que para Ferenczi são neuroses orgânicas) o fator desencadeador principal seria um déficit na vida sexual atual do indivíduo (coito interrompido, abstinência sexual, etc.). O tratamento para esses casos não seria psíquico, mas consistiria em mudanças efetivas na vida sexual.

É na segunda parte do artigo que encontramos a contribuição realmente original de Ferenczi. Nessa seção, ele vai versar sobre o que chamou de “neuroses monossintomáticas”. Trata-se de afecções caracterizadas por crises de sintomas específicos, como asma, perturbações do estômago, irritações intestinais, alterações do ritmo cardíaco etc. São transtornos cujos sintomas parecem confluir para um determinado órgão do corpo.

No tratamento de pacientes com esse tipo de queixa, Ferenczi se dá conta de que o órgão que se tornara problemático e disfuncional, antes do advento da doença havia sido exageradamente investido de libido. Sim, coração, estômago, intestino, rins, pulmões, todos esses órgãos também possuem a capacidade de se tornaram erógenos e não apenas as zonas erógenas tradicionais (boca, seio, pênis, vagina, ânus).

Freud descobriu que é através da relação com o outro que determinadas partes do corpo adquirem uma significação erótica, ou seja, a rigor qualquer parte do corpo pode se tornar erógena dependendo das relações que o sujeito venha a experimentar com o outro. A libido é extremamente plástica e passível de ser investida em qualquer zona corporal.

Como Ferenczi ressalta, na saúde a libido está investida de maneira equânime em todo o corpo, proporcionando aquela sensação de bem-estar físico que os saudáveis experimentam. No entanto, em função de determinados eventos de sua história de vida, o sujeito pode começar a investir uma quantidade exacerbada de libido em determinado órgão, ou seja, quebrar o equilíbrio. Ferenczi nota que isso geralmente acontece quando a vida amorosa/sexual do sujeito encontra-se limitada por alguma razão de ordem inconsciente. Assim, é como se determinado órgão que, ao longo da história do sujeito, se tornou significativo em função da sua relação com o outro, por exemplo, o estômago, passasse a constituir uma espécie de depósito de libido insatisfeita. É como se o estômago adquirisse uma significação genital. A propósito, é comum observarmos pessoas com distúrbios orgânicos desse tipo se referirem a seus órgãos doentes como se eles fossem pessoas, por exemplo: “Quando meu estômago ataca…”; “Meu intestino é muito preguiçoso…”; “Se minha perna deixar…”.

Em suma, é como se o sujeito passasse a ter uma relação amorosa com seu órgão. E é precisamente esse “excesso de amor” o que gera a doença, pois se o órgão passa a ter que exercer para o sujeito o papel de parceiro sexual, não poderá mais atuar nas suas funções normais. Notem que essa dinâmica é muito semelhante à que ocorre nos casos de histeria. Nesses, todavia, são as representações do corpo que sofrem a investida de uma libido represada. Nas neuroses orgânicas, é a estrutura física mesmo do corpo que é prejudicada em função da sobrecarga de libido.

Tratamento

Frente a um quadro desses, o que fazer? Como a psicanálise poderia ajudar sujeitos que sofrem de uma neurose orgânica? Ferenczi observou que nessas situações o analista não precisa utilizar nenhuma técnica especial. O dispositivo analítico em si mesmo já seria terapêutico. Isso porque a relação que se estabelece entre o paciente e o analista não é uma relação qualquer; é propriamente uma relação de amor na medida em que supomos que ali acontece um negócio chamado transferência. Nesse sentido, ao entrar em análise o sujeito teria à sua disposição um novo objeto (o analista) para fazer uso, podendo finalmente, deixar o órgão doente funcionar em paz.

Concluindo

Esquematicamente, poderíamos dizer que o desenvolvimento de uma neurose orgânica para Ferenczi atravessaria as seguintes fases: (1) Num primeiro momento, na infância, determinado órgão ou parte do corpo se torna mais potencialmente erógeno do que os outros (isso em função de identificações, superestimulação etc.); (2) Quando adulto, ou mesmo ainda criança, as relações amorosas “normais” do indivíduo com o outro são, por alguma razão, dificultadas ou mesmo impossibilitadas; (3) A libido que não pôde ser investida naquelas relações retroage para o órgão mais potencialmente erógeno, desvirtuando suas funções e obrigando-o a ocupar um lugar semelhante ao de objeto sexual genital na economia psíquica do sujeito.

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Por que Groddeck NÃO foi o pai da Psicossomática

Alguns dos poucos autores que, em algum momento de suas vidas, se debruçaram sobre as páginas dos livros de Georg Groddeck[1] insistem em dar-lhe o epíteto de “pai da medicina psicossomática”. Tal atribuição é justificada por eles pelo fato de que a maior parte dos escritos de Groddeck teve como mote a demonstração da eficácia do método psicanalítico no tratamento de doenças “orgânicas”. O erro desses autores está em considerar que, em função disso, Groddeck estaria a postular a causalidade psicológica das doenças. É um equívoco tremendo pensar assim, resultante, talvez, de uma leitura superficial dos textos desse autor genial.

A idéia subjacente às teorias que defendem a existência de doenças psicossomáticas é a de que determinados tipos de conteúdos tradicionalmente agrupados na categoria “psiquismo” como idéias, sentimentos, lembranças etc. poderiam ocasionar o desencadeamento de algumas enfermidades corporais. Ou seja, para sustentar uma “medicina psicossomática” é preciso se afiliar necessariamente ao axioma cartesiano segundo o qual existem no mundo duas substâncias: uma corpórea (res extensa) e outra mental (res cogitans). Afinal, como supor que uma instância atua sobre a outra se não se supõe previamente que ambas existam?

O problema que a maior parte dos críticos da medicina psicossomática aponta (e com razão) é: como é que aspectos concernentes a um registro exercem influência sobre os aspectos de outro na medida em que supostamente os dois registros não apresentam propriedades comuns? Uma das respostas mais comuns dos defensores da psicossomática é dizer que esse argumento não procede uma vez que existem sim propriedades comuns entre corpo e psiquismo. Mais: que ambos atuam em conjunto, ao mesmo tempo. Ora, se não é possível, portanto, separar corpo e psiquismo, já que as duas instâncias operariam concomitantemente, por que continuar a falar em doenças psico-somáticas? Nessa perspectiva, todas as doenças seriam vistas como psicossomáticas. A utilização do conceito, portanto, seria inútil; bastaria falar apenas em “doença”.

Outra forma de responder às críticas à medicina psicossomática se manifesta na obediência cega aos cânones organicistas da biomedicina. Assim, os chamados “aspectos psicológicos ou emocionais” são reduzidos a simples epifenômenos de modificações corporais. É o caso, por exemplo, da noção de stress, descrita usualmente a partir de termos que caracterizam alterações orgânicas, como palpitação, dores de cabeça, fadiga muscular. Essa estratégia é tão ou mais problemática que a primeira porque ela inadvertidamente esvazia o conceito de doença psicossomática, reduzindo-o a um tipo específico de doença somática, como todas as outras.

Essa breve explanação dos aspectos problemáticos envolvidos na hipótese de uma medicina psicossomática já nos serve para demonstrar porque Groddeck não é um médico psicossomático – justamente porque ele não se mete nesses becos sem saída. Em primeiro lugar, para Groddeck o dualismo de Descartes não é considerado um instrumento útil para a compreensão da vida humana. Não está em questão a possibilidade de esse postulado ser verdadeiro ou não. Trata-se tão-somente do seu potencial de nos auxiliar no entendimento dos fenômenos que nos interessam. E, a partir desse critério, o dualismo pode ser abandonado sem peso na consciência.

Groddeck o faz. E para substituí-lo, propõe um conceito altamente original: a noção de Isso (em alemão: “Das Es”), uma palavrinha que evoca a idéia de algo impessoal justamente para que não se corra o risco de confundi-la com o conceito de Eu. Para Groddeck, as duas substâncias de Descartes vão se constituir não mais como dois registros distintos, mas como dois modos de expressão do Isso; dois dialetos, por assim dizer.

Ou seja, Groddeck não está negando as diferenças óbvias existentes, por exemplo, entre um movimento de braço (corpo) e uma lembrança (psiquismo). O que ele está tentando solucionar são os problemas que acabamos criando quando dizemos que tais diferenças existem em função de uma distinção de essência entre os dois fenômenos. Tais problemas são justamente aqueles que apontamos no início, isto é: ou admitimos a diferença essencial e, portanto, excluímos a possibilidade de influência mútua entre as duas instâncias ou reduzimos um registro a outro, adotando um posicionamento materialista ou psicologista. Em Groddeck, para-além das diferenças entre fenômenos psíquicos e fenômenos corpóreos está o Isso que, por assim dizer, gesta a ambos.

O que Groddeck faz, portanto, ao utilizar a psicanálise no tratamento de doenças orgânicas, não é descobrir sua causalidade psicológica, mas, sim, ler a doença como um símbolo. Qual a diferença? Simples: na perspectiva groddeckiana, o símbolo não equivale ao conceito de “representação mental”, ou seja, não é algo apenas psíquico. Para Groddeck, o símbolo é indissociável do corpo, de modo que todo fenômeno corpóreo é também um símbolo. E se é um símbolo, logo pode ser lido como um texto, pela via do sentido.

Essa é uma particularidade que marca a distinção entre Groddeck e os autores da Psicanálise que trabalharam com a Psicossomática. Para a maior parte desses autores, o fenômeno psicossomático, diferentemente de um sintoma conversivo histérico, não porta nenhum sentido, sendo justamente a falta de um tratamento simbólico das excitações (gozo em Lacan) o que os desencadeia. Para Groddeck, não há manifestações humanas simbólicas e não-simbólicas. Ele chega a dizer que o homem é vivido pelo símbolo que, no meu modo de entender, seria a língua comum do corpo e do psiquismo, o idioma matriz dos dois dialetos.

Bom, nesse momento, um leitor mais perspicaz poderia me indagar: “Tá, mas até aí não há nada de novo. O Groddeck só substituiu a idéia de uma causalidade psicológica pela noção de símbolo. Agora em vez de dizer que as doenças são causadas pelo psiquismo, ele diz que elas o são pelos símbolos, não?” “Não.”, respondo. Groddeck abandona a idéia de causalidade. Quando ele diz que o sintoma orgânico pode ser lido como um símbolo, ele não está dizendo que o símbolo é que causou a afecção. O que ele pretende é mostrar que da mesma forma como é possível alterar o funcionamento corpóreo pela ingestão de medicamentos ou por uma cirurgia, também o é pela interpretação do sintoma como símbolo. Mas para fazer isso ele não vai poder trabalhar com corpo e psiquismo, mas sim com a noção de Isso. Assim, ao interpretar um sintoma simbolicamente, Groddeck não está intervindo no psiquismo para que esse provoque alterações no corpo – essa é a lógica do tratamento psicossomático. Ele está intervindo no Isso, da mesma forma que o médico quando receita um medicamento também está intervindo no Isso. A questão é saber quando é mais apropriado intervir com medicamento ou cirurgia ou quando mais é mais interessante empreender uma análise simbólica. Penso, sob a inspiração de Groddeck, que o critério deve ser a própria resposta do paciente, ou melhor, do Isso e os efeitos colaterais que podem ser provocados. Muitas vezes, será preferível que o profissional ministre um medicamento a fazer uma interpretação simbólica se essa for trazer à tona questões as quais o indivíduo ainda não tem condições de elaborar.

A medicina, portanto, passa a ser vista não mais como uma prática que visa o conserto de um corpo doente. Eliminando as noções de corpo e psiquismo e substituindo-as pelo conceito de Isso, a tarefa do médico passa a ser encontrar o método mais adequado de influência sobre o Isso para cada paciente e para cada momento. O termo “influência” é o que o próprio Groddeck utiliza. Trata-se propriamente de uma influência e não de uma restauração, já que o Isso não é passivo frente ao trabalho do profissional. Para Groddeck, seguindo as lições de seu mestre Ernst Schweninger (médico do chanceler alemão Otto Bismarck), não é o médico que devolve a saúde para o doente; o profissional apenas facilita as coisas. É o próprio Isso do paciente quem exerce o papel principal, pois ele não faz outra coisa senão perseguir a saúde. No entanto, para termos saúde, às vezes é preciso ficar doente – mas isso é assunto para um próximo texto…


[1] Se você não conhece esse autor, ouça no post anterior minhas apresentações no V Seminário de Pesquisas do IMS.

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Prisão de ventre: o que médicos e nutricionistas não dizem – e não sabem (parte 1)

Não sei quantos de vocês chegaram até aqui em busca de informações sobre o tratamento da “prisão de ventre”, do “intestino preguiçoso”, enfim, desse mal próprio ao homem civilizado e que se caracteriza pela retenção aparentemente “involuntária” das fezes. Todavia, o texto é dedicado justamente a esses leitores. Mais do que uma dissertação sobre uma visão alternativa do fenômeno, este artigo tem o objetivo de auxiliar as pessoas que o enfrentam a se tratarem sem a necessidade de desembolsar alguns (ou muitos) copeques para uma ajuda profissional.

Vocês devem estar acostumados a ouvir profissionais especialmente da área de endocrinologia e nutrição discursarem a respeito da prisão de ventre caracterizando-a como um distúrbio do aparelho digestivo via de regra associado à baixa ingestão de fibras alimentares. “Coma mais mamão, mais ameixa, mais linhaça, mais aveia! Ou simplesmente esqueça tudo isso e tome Activia!” dizem eles. E a cada dia as ações da Danone se valorizam às custas do intestino alheio.

Quando a alimentação não é suficiente para explicar a procrastinação intestinal, tais profissionais recorrem ao tratamento que atualmente ocupa o lugar em que as sangrias se alocavam nos séculos XVIII e XIX, ou seja, o espaço do tratamento “bom pra tudo”: o exercício físico. O sedentarismo – coincidentemente um pesadelo para a ideologia produtivista da economia atual – seria uma das causas das parcas idas ao banheiro. A idéia, portanto, é de que ao deixares a preguiça, teu intestino fará o mesmo.

Apesar de todo esse blábláblá, eu custo a crer que endocrinologistas e nutricionistas sejam seres tão tapados. Quero acreditar que eles pelo menos intuem que a coisa não passa apenas pelo domínio e restauração da máquina corporal. Não obstante reconheço que eles não são capazes de dar o braço a torcer e reconhecer que há um fantasma na máquina. E, precisamente por conta disso, recorrem àquela palavrinha mágica que salva todos os profissionais de saúde, principalmente os de segundo escalão do campo psi: o famigerado “stress”. Não vou gastar dezenas de kilobytes aqui justificando o caráter quimérico do conceito. Basta lhes dizer que se trata de um daqueles termos que explicam tudo e não explicam nada, como a tal “virose”, mais eficaz para a angústia dos médicos do que qualquer psicotrópico de última geração. De qualquer forma, o stress tem entrado na fórmula da etiologia da prisão de ventre – para o bem de todos e a felicidade geral da nação, pois, com essa inclusão, ficam contentes os médicos e nutricionistas para os quais o stress é um fenômeno orgânico (como tudo na vida, talvez diriam eles) e os profissionais psi que consideram estar sendo reconhecida a hipótese de uma causalidade emocional. Doce ilusão.

Explico. Não há lugar para o psíquico no modelo biomédico, o paradigma predominante no cuidado em saúde atual. O corpo é uma máquina cujo funcionamento é logicamente perfeito – é essa a hipótese de base desse modelo. Portanto, se há falha na máquina, é na máquina que devem ser feitas intervenções, modificando os insumos que lhe fornecem energia (mudança de hábitos alimentares), fazendo a máquina trabalhar mais (exercícios físicos) ou reformando alguns circuitos para que ela não apresente falhas por excesso de uso (controle do stress). Só assim a máquina poderá voltar a excretar normalmente os materiais inutilizados (e adeus prisão de ventre…).

A hipótese alternativa que apresentarei para entender e tratar a prisão de ventre demandará do leitor um total esquecimento – para não dizer uma forclusão – desse modelo. Sei que será difícil, pois, como toda ideologia, a visão do corpo como máquina gradualmente foi se transformando numa espécie de óculos permanentes de nossa visão sobre a saúde. Porém, faça o esforço. Tente por alguns instantes, isto é, até terminar de ler este texto, conceber o corpo como algo vivo, potente, que pensa e não como uma máquina que é ligada na concepção e desligada na morte. Sim, é isso mesmo. Pense no corpo como um corpo pensante. Esqueça, durante a leitura deste texto, daquilo que te ensinaram na escola – primária ou, principalmente, universitária – isto é, que corpo é uma coisa e mente é outra; que uma não tem nada a ver com a outra. Pense, a partir de agora, em corpo e mente apenas como duas simples palavras inventadas pelo homem para denotar dois modos diferentes de expressão do ser humano e que, por sinal, se expressam concomitantemente. Acho que essas bases conceituais serão suficientes para o entendimento do que virá a seguir. Se forem necessárias outras eu as apresentarei oportunamente.

A primeira conseqüência dessas premissas para o entendimento da prisão de ventre é a de que esse, como todo fenômeno do corpo, possui um sentido, na medida em que admitimos de antemão que toda manifestação corpórea possui um correspondente no campo do psiquismo. Esse é um dos pontos fundamentais de diferenciação entre os dois modos de tratar o fenômeno, pois no modelo biomédico, nenhuma doença possui significado; as enfermidades são apenas defeitos da máquina corporal.

Quando se fala em “sentido” da prisão de ventre, está sendo pressuposto que ela existe para cumprir certa finalidade, até porque, em última instância, nesse nosso modelo alternativo ao biomédico, o corpo é um modo de expressão do ser humano em sua totalidade. Em outras palavras, nossa hipótese é de que a prisão de ventre pode ser tomada como um acontecimento que serve para a expressão de algo. Essa proposição ficará mais clara na medida em que formos destrinchando esse modo alternativo de encarar a constipação intestinal.

Uma primeira questão que merece consideração diz respeito justamente àquilo que é retido na prisão de ventre, ou seja, as fezes. O que são as fezes? Para o modelo biomédico a resposta é simples: fezes são aglomerados de materiais descartados pelo organismo no processo de digestão dos alimentos. Não podemos negar a fidedignidade dessa resposta. No entanto, talvez ela careça de completude. De fato, as fezes são massas orgânicas. Todavia, elas também podem ser tomadas como coisas que oferecemos (ou não) ao mundo. É, por assim dizer, nosso mais primitivo produto (não por acaso, outrora se utilizava o termo “obrar” como forma jocosa de se referir à defecação).

Apesar de o processo de produção de excrementos ser um atributo comum a grande parte dos animais, na espécie humana ele adquire uma dimensão completamente nova. Nenhuma espécie, além da humana pede, exige, solicita, enfim, demanda de seus filhotes a produção das fezes. O imperativo para defecar é dado nas demais espécies a partir somente do organismo. No nosso caso, as coisas se passam de forma diferente: é clássica a cena da mãe no banheiro esperando o (a) filho (a) “produzir”. Nesse caso célebre, não se trata de uma espera passiva, que apenas contempla o tempo biológico da criança, mas de uma expectativa que demanda do sujeito a dádiva de suas fezes ao mundo.

Desde cedo, portanto, os excrementos adquirem para nós o significado de uma posse e, como toda posse, pode ser gasta ou não. Portanto, ao defecarmos não estamos apenas cumprindo o imperativo de necessidades fisiológicas. Estamos também, concomitantemente, expressando a seguinte mensagem ao mundo externo: “Eu lhe dou algo de mim.”. Quando dou algo a alguém, admito como premissa que esse alguém merece o presente e não se insurgirá contra mim ao recebê-lo. Com a excreção das fezes acontece da mesma forma. Se desde criancinhas somos ensinados que as fezes são presentes que damos à mãe (vide o orgulho da criança diante da mãe ao defecar pela primeira vez no penico), não podemos ir ao banheiro sem estar manifestando ao mesmo tempo nesse ato a decisão de dar ou não um produto ao mundo. Não é porque já não somos exigidos pela mãe que essa significação desaparece do ato de defecar. Gradualmente, o papel que outrora era exercido pela mãe, passa a sê-lo pelo patrão, pelo professor, pelo padre, pelo pastor, pela Igreja, pela Universidade, enfim, pelo mundo (é o tal grande Outro do Lacan) e as fezes permanecem como símbolos de uma dádiva.

A partir dessas premissas, um dos sentidos da sentido da prisão de ventre fica explícito: trata-se de um modo corporal de expressão de um relacionamento conflitivo entre o sujeito e o Outro. É como se ao reter as fezes o indivíduo estivesse dizendo ao mundo: “Não posso (ou não quero) te dar nada.”. O Outro pode ter se tornado no relacionamento com o sujeito não digno de receber seu produto, seja porque o sujeito se considere muito para o Outro ou imagine que o Outro não será capaz de apreciar devidamente seu presente. Pode acontecer também que o sujeito considere o Outro potencialmente perigoso, vingativo, de tal modo que não é aconselhável oferecer-lhe nada.

Outra possibilidade é a de que a prisão de ventre se torne a ocasião de manifestação de uma teimosia ou obstinação. Quando crianças, uma das formas de nos vingarmos da mãe por algo desagradável que ela nos fez (e toda criança sabe disso) é justamente frustrando suas expectativas sobre nosso processo de excreção, fazendo com que ela fique horas na porta do banheiro esperando que a gente “faça”. Essa criança que teima em não defecar para irritar a mãe nunca desaparece de nós. O que acontece é que a mãe, como eu disse antes, passa a ser representada por outras pessoas ao longo de nossa vida. Se fizéssemos uma pequena pesquisa empírica nas empresas, ficaríamos surpresos com os modos distintos de funcionamento intestinal dos funcionários satisfeitos e dos insatisfeitos com o patrão. É em função disso que os médicos dizem que o stress é um dos fatores que atuam na constipação intestinal. Ora, funcionários insatisfeitos com o patrão evidentemente sofrerão de ansiedade, cansaço, falta de vontade (sintomas do unicórnio chamado stress). No entanto, a prisão de ventre não é causada por esses sintomas. Ela, como eles, é um efeito da relação conflituosa entre o funcionário e o patrão. Ela é, por assim dizer, a expressão na carne do desejo do empregado de não produzir para um patrão que o desagrada, ou seja, de frustrar as expectativas da mãe encarnada no patrão.

Quando o desejo não é frustrar, mas exatamente o oposto, isto é, produzir, a vontade de defecar advém mesmo no mais sedentário dos sujeitos. Tive um paciente que toda vez que tinha uma idéia nova ou conseguia escrever algumas páginas – ele era acadêmico – sentia uma ânsia irresistível de ir ao banheiro. Na medida em que sua mente conseguia produzir conteúdos intelectuais, seu corpo imediatamente sentia a necessidade de produzir conteúdos intestinais. Os produtos são diferentes mas a lógica que os regula é a mesma.

Portanto, caro (a) leitor (a), antes de se esbaldar nos Activias da vida ou entupir seu sistema digestivo de fibras, pense um pouco sobre seu corpo e, principalmente, sobre como anda sua relação com o mundo. Tente lembrar-se de suas insatisfações e desagrados. Em Minas, é comum o uso da expressão “enfezado” para se referir a alguém possesso de raiva. Sim, “enfezado” significa cheio de fezes e o uso da expressão não está atrelado apenas à sensação de irritação que a maioria das pessoas experimenta ao ficarem longos períodos sem ir ao banheiro. O termo “enfezado” também pode ser lido como a expressão lingüística do sentido mais profundo da prisão de ventre. De fato, a manifestação no corpo de um sujeito que está, por assim dizer, “de mal com o mundo” ou com algum aspecto do mundo é o “enfezamento”, ou seja, o acúmulo de fezes no intestino.

O desejo de reter algo que poderia ser dado ao mundo não é o único sentido e finalidade possível da prisão de ventre. Na segunda parte desse texto enfocarei outros usos a que se presta o fenômeno. De todo modo, penso que já foi possível levar o leitor a uma mudança no modo de encarar suas idas frustradas ao trono – e ajudá-lo. Antes de terminar esse primeiro segmento, gostaria de deixar claro que toda essa nova visão sobre a constipação intestinal tem como referência a obra de Georg Groddeck, a qual constitui atualmente meu objeto de estudo no mestrado em Saúde Coletiva. Todas essas idéias, portanto, não foram tiradas de trás da orelha, mas estão fundamentadas em dezenas de anos de prática psicoterapêutica desse autor, cuja riqueza teórica gradualmente será revelada.

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