Na atualidade, emagrecer tem sido o objetivo de grande parte dos indivíduos, especialmente no lado ocidental do globo terrestre. Nunca na historia da humanidade houve tantas pessoas acima do peso ou obesas e, conseqüentemente, também nunca houve tanta gente querendo perder calorias. Em geral, tende-se a explicar o crescente aumento no número de indivíduos acima do peso recorrendo-se a variáveis sociológicas tais como: aumento da oferta de alimentos; o crescimento do consumo dos alimentos conhecidos como fast-food, altamente calóricos; as formas contemporâneas de trabalho que demandam um menor dispêndio de esforço físico e mais atividade intelectual; a criação de dispositivos automatizados que tornam desnecessários certos movimentos físicos, como a invenção do controle remoto que eliminou a necessidade de se gastar calorias levantando-se do sofá para mudar o canal da TV.
Essas e muitas outras razões de caráter social associadas à suposição de um fator genético exercendo influência sobre o excesso de peso fazem parte da explicação mais difundida para o crescimento do número de indivíduos acima do peso na contemporaneidade. Em decorrência, o emagrecimento é visto como sendo o resultado de modificações no chamado “estilo de vida” já que ainda não é possível uma intervenção genética com vistas a eliminar ou modificar os genes que atuam na etiologia do aumento de peso. Assim, para que o indivíduo emagreça, recomenda-se que ele passe a ter uma dieta menos calórica, ou seja, que diminua seu índice de ingestão de calorias e que passe a praticar exercícios físicos a fim de gastar uma maior quantidade delas. Dessa equação, nasceria um indivíduo em processo de emagrecimento.
Não obstante eu reconheça a verdade presente no que foi dito acima, penso que não se pode reduzir tanto o aumento de peso quanto o emagrecimento a uma dinâmica mecânica baseada no número de calorias ingeridas e de calorias gastas. O sujeito não é uma máquina. Logo, há fatores relacionados principalmente ao campo afetivo que intervêm nos processos de ganho e perda de peso. Pretendo, neste texto, expor que fatores seriam esses. Mais especificamente, minha intenção é fazer um estudo metapsicológico acerca do que ocorre com um indivíduo que está em fase de emagrecimento e mostrar as variáveis que estão para-além da equação calórica. Antes, porém, será preciso discutir a gênese do ganho de peso também do ponto de vista metapsicológico. Nesse sentido, veremos em primeiro lugar, as razões que nos levam a comer mais do que deveríamos e o que ocorre subjetivamente com o indivíduo que ingere mais calorias do que o necessário e que, assim, se torna gordo.
Só há gordos no mundo humano
A espécie humana é a única cuja boa parte dos seus exemplares está acima do peso normal. Aliás, não só a espécie humana. Cachorros domésticos (d’homem) também podem engordar bastante. De qualquer forma, é preciso que haja a interferência do fator especificamente humano para que haja a presença do processo de engordar. De fato, aumentamos não só o nosso peso. Engordamos bois, porcos, galinhas, com o objetivo de vendê-los para que outros indivíduos se alimentem de sua carne e, não raro, acabem engordando. Por que isso acontece? Por que apenas no âmbito da espécie humana há esse excesso de ingestão calórica? É o que tentarei, pretensiosamente, explicar.
Por que a maioria dos animais não engorda?
Todos os animais, com exceção do homem, se comportam a partir do que a biologia chama de “instinto”, isto é, um conjunto de comportamentos padronizados constituído de respostas fixas para os estímulos que a vida lhes apresenta. Em outras palavras, nenhum animal além do homem (e, talvez, dos animais domésticos) tem dúvida, por exemplo, em relação ao que vai comer no almoço. Aliás, nenhum deles sequer discerne um evento chamado almoço! Eles não se baseiam em horários para se alimentar. Deu fome, o lagarto vai aonde há alimento e come, ou seja, ele funciona baseado unicamente no registro da necessidade. Mesmo animais que só se alimentam em determinada parte do dia estão restritos à dimensão da necessidade, pois o que os leva a se comportarem dessa maneira é seu instinto e não uma convenção social, cultural, linguajeira como é no caso dos humanos.
Assim, os animais comem apenas o estritamente necessário e isso não ocorre porque eles são mais sábios que os humanos, mas sim porque o instinto, a necessidade os leva a pararem quando já estão satisfeitos e ingeriram as substâncias necessárias para servir de combustível à sua vivência cotidiana. Eles nem sequer têm a capacidade de pensar: “Vou parar de me alimentar agora, pois já comi o suficiente.”. Não. Eles simplesmente param porque para pensar daquela forma eles teriam que ter acesso a uma dimensão que é exclusiva dos humanos, a saber, a linguagem.
Em vez do instinto, uma vontade desregulada de viver
O Homo sapiens não se comporta a partir do instinto. É verdade que ainda temos alguns, mas sua influência em nosso dia-a-dia é mínima. A imensa maioria dos nossos comportamentos é aprendida na nossa interação com outros seres humanos. Em outras palavras, nós, diferentemente dos animais, não nascemos sabendo viver. Não há nada que naturalmente estabeleça pontes entre nós e o mundo. Em vez do instinto, viemos de fábrica com uma tendência mais ou menos desconfortável que Freud chamou de Trieb, cuja tradução mais aceita hoje em dia para o português é “pulsão”.
A pulsão é força pura. É uma vontade de viver, de gozar a existência, mas que carece de saber. Nós nascemos sem sabe o que fazer com essa vontade de viver. Não obstante, via de regra, saímos do útero direto para os braços de pessoas que se autorizam a nos ensinar. São esses indivíduos que vão direcionar nossa pulsão, que vão nos dizer onde temos que investi-la, ou seja, como devemos empregar essa nossa vontade de viver. Isso é terapêutico. Quando nascemos, a força da pulsão é tão intensa que ela se nos afigura como ameaçadora, como algo que vai nos explodir tamanha a intensidade com que ela se manifesta. Quando entram em cena as pessoas que vão cuidar de nós (que a psicanálise sintetiza com o conceito de Outro) a pulsão ganha canais de descarga e assim perde parte de seu potencial destrutivo. Não obstante, por mais que o Outro aponte para nós caminhos nos quais devemos orientar nossa pulsão, eles nunca serão capazes de esgotar a força da pulsão que age em nós de maneira ininterrupta. Haverá sempre um resto com o qual nós teremos que nos virar sozinhos.
A fome e a vontade de comer
Pois bem, o que tudo isso tem a ver com aumento de peso? Ora, a existência da pulsão no âmbito humano é o elemento que faz com que entre nós as coisas se passem de forma diferente dos animais. Com efeito, a pulsão, essa intensa vontade de viver, nos retira da submissão ao registro da necessidade. Para entendermos isso melhor, façamos uma comparação entre o que acontece com um filhote de pássaro e com um bebê humano. Ambos precisam ser alimentados por um exemplar mais maduro de sua espécie, geralmente a mãe. O filhote de pássaro receberá exatamente a quantidade de alimento que precisa naquele momento para saciar sua fome e adquirir os nutrientes necessários para seu crescimento adequado. Bela harmonia. Já com o bebê humano, não se pode dizer que o mesmo acontecerá, ou seja, que ele receberá apenas aquilo de que necessita. E isso por várias razões.
Em primeiro lugar, pelo fato de que a mãe não sabe, por ter nascido sem instinto, qual a quantidade de leite suficiente para o bebê no momento da mamada. Por não saber, a mãe se angustia e fica na dúvida quanto ao momento certo de retirar o seio. “Quando o bebê parar de sugar” é o que lhe dizem. Mas aí surge outra questão: será que o bebê só pára de sugar o seio quando extraiu a quantidade estritamente necessária de leite? Qualquer mãe sabe que não. E os psicanalistas explicam a razão disso. Ocorre que em função da ausência do instinto (que forneceria aquele saber ao bebê) e da presença da pulsão, o seio é para o bebê ao mesmo tempo um objeto de necessidade – ou seja, que ele utiliza a fim de eliminar a sensação desconfortável que depois reconhecerá como sendo “fome” – quanto um objeto da pulsão, isto é, um objeto que supostamente seria capaz de satisfazer aquela vontade de viver, cujo matiz excessivo o amedronta. Nesse sentido, o bebê geralmente mama mais do que deveria, pois mesmo depois de ter saciado a fome, ele continua sugando o seio não mais para se alimentar, mas tão-somente para sentir o prazer que emerge do contato do seio e do leite com a mucosa da boca, prazer que, naquele momento, serve como veículo de descarga da pulsão. Assim, o bebê só pára de mamar quando sente que a pulsão deu uma apaziguada, que não vai voltar a incomodá-lo com sua demanda tão cedo.
Portanto, a presença da pulsão em nós faz com que o alimento não nos sirva unicamente no domínio da necessidade, ou seja, como elemento capaz de eliminar a sensação de fome. A comida é para nós também uma forma de satisfazermos parcialmente a pulsão, nossa vontade de viver. Por que parcialmente? Por que, como disse anteriormente, essa vontade de viver é infinita e ininterrupta! Ela nos dá descansos periódicos, mas jamais se satisfaz completamente. O alimento, no âmbito humano, é, portanto, um “engana-pulsão”. Sabe quando a gente ingere determinada coisa com baixa capacidade de provocar saciedade a fim de “enganarmos o estômago”? Pois é, nós também utilizamos coisas para enganar a pulsão, pois o único objeto que seria capaz de saciar completamente a pulsão não existe. A psicanálise dá o nome a esse objeto de “objeto a”. Nesse sentido, toda vez que a pulsão é satisfeita por alguns momentos ela encontrou objetos que a enganaram, objetos que se fizeram passar pelo objeto a. Um deles é o alimento.
Lucas,
Fiquei maravilhada mais uma vez com seu post, a cada dia que passo me encanto mais e mais com a psicanálise e seu blog é, sem dúvidas, um dos maiores “culpados”.Hahahahaha
Só tenho um questionamento: Essa pulsão que você coloca seria a libido?
Muito obrigada e parabéns!
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Olá Maria Giulia! Seu comentário me deixa muito feliz! Fico muito satisfeito em saber que estou escrevendo de maneira tal que o leitor não apenas seja informado, mas também se divirta, se afete com o texto. Isso é muito bom!
Quanto à sua pergunta, digo que são coisas diferentes, a pulsão e a libido. Para usar uma ilustração que aprendi com Lacan, a libido pode ser vista como uma espécie de órgão da pulsão. Neste sentido, entendendo a pulsão como “vontade louca de viver” como eu disse no texto, poderíamos entender a libido como o órgão que permite a expressão dessa vontade. Em Freud, a libido é a energia de natureza sexual que serve à pulsão. Ela está para a pulsão como a fome está para nossa necessidade de nutrição.
Não sei se ficou muito claro. Fique à vontade para tirar suas dúvidas. Nas próximas partes desse texto, você verá essa diferença entre pulsão e libido na prática, quando que for falar do que ocorre metapsicologicamente com quem está em fase de emagrecimento.
Um forte abraço!
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Lucas, discordo um pouco do seu texto.
O homem come em excesso, também, por instinto. Um instinto que foi fundamental na manutenção da vida numa realidade onde a escassez de alimentos era a regra.
Pense nos nossos ancestrais africanos, andando pelas savanas, sem garras, sem dentes afiados, coletando frutos e comendo restos de carcaças deixadas pelos felinos e outras feras.
Quem não tinha capacidade de guardar no próprio corpo um excessozinho de energia, ia morrer, com toda certeza.
A escassez de alimentos foi a regra até a idade moderna e os alimentos só se tornaram mais baratos e acessíveis depois do século XIX.
Hoje a industrialização permitiu concentrar grandes quantidades de energia numa barra de chocolate ou num pacote de salgadinhos, à preços módicos. Uma realidade impensável há 50 anos atrás.
Estamos numa fase de transição, onde a obesidade se tornou um peso social e os obesos são execrados em todos os níveis, principalmente no mercado profissional, onde representariam pessoas incapazes de auto-controle, para as quais faltaria disciplina e de uma baixa auto-estima. Tudo o que uma empresa não quer representar para o seu cliente.
Rechaçado socialmente o cidadão obeso tem dificuldade em se relacionar e, em última análise, se reproduzir.
A tendência atual é a da construção de uma sociedade sem excedentes corporais. Isto até que o planeta passe por um novo período de escassez, quando serão os ‘gordinhos’ que terão mais oportunidade de sobrevivência, e tudo começará de novo.
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Oi Luiz! Gostei muito do seu comentário!
Subscrevo tudo o que você disse acerca de como o excesso de peso é visto hoje em dia, principalmente a tendência a culpabilizar os gordinhos, acusando-os de não possuírem “força de vontade”.
O que os “magrinhos discriminadores” não sabem é que o que os diferencia dos gordinhos não é a tal “força de vontade” mas sim o alvo de seu investimento libidinal. É a respeito disso que falarei nas próximas partes do texto.
Quanto à sua discordância, penso o seguinte: se nosso comportamento alimentar fosse guiado pelo instinto, esse nos levaria a parar de comer quando já estivéssemos satisfeitos, pois sua função seria apenas a de sobrevivência. Não descarto a existência desse instinto de nutrição em nós. Comemos, de fato, quando sentimos fome e porque precisamos do alimento para sobreviver. Só que, no caso específico da espécie humana, penso (e nisso sigo Freud) que a pulsão sobrepujou o instinto, de tal modo que quando o instinto nos diz: “Pronto, você já comeu o necessário”, a pulsão diz: “Ah, mas tá tão gostoso. Deixa eu gozar a vida com esse alimento”.
Abração e obrigado pelo comentário!!!
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Ao analisar o discurso da pulsão da forma mais incisiva e tendo como parâmetro que o alimento é um dos elementos que a enganam, eu concluo que até o ato de comer por instinto, no caso dos ancestrais africanos diante da escassez, é no fundo uma forma de se alimentar não somente pelo instinto, mas também pela pulsão, porque quando estamos inseridos diante da precariedade de necessidades fundamentais de sobrevivência, as ações são reduzidas a patamares primitivos, que por motivos óbvios, nem teria como assimilar tais ações a conteúdos existenciais.
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Lucas, meu querido amigo! Meus parabéns pelo brilhante post! Um grande abraço e aguardo ansiosamente pela continuação!
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Oi Lucas! Gostaria de dizer que gostei muito desse post! Gosto da forma simples e clara com que você fala da psicanálise e da forma como abordou o tema! Parabéns pelo blog!
Grande abraço!
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Olá Renan! Que ótimo que você gostou do texto! A segunda parte sai na semana que vem, amigo! Forte abraço!
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Oi Ana! Muito obrigado! É realmente esse o objetivo dos meus posts aqui no blog: abordar os temas por vezes áridos da teoria psicanalítica da forma mais acessível e clara possível!
Um grande abraço e apareça sempre!
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Ola Lucas, que bom texto! Estou aguardando a continuacao…., pois creio que vc vai entao abordar o fato de que embora todos temos a pulsao… nao todos somos obesos….. rsrsrsrs, o que varia de um sujeito a outro, porque ademas dos fenomenos intrapsiquicos, contamos com a diversidade de historias familiares, ou neurosis dos pais, … por isso estarei aguardando a continuacao…
Abracao e parabens!
Graca
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Olá Graça! Que ótimo que você gostou do texto!
Perfeitamente, a existência da pulsão não implica necessariamente na existência de obesidade. Todos esses fatores que você citou são de fato extremamente relevantes.
Grande abraço!
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Oi professor… não sabia do blog!
tudo perfeito, mas a parte da Pulsão é isso mesmo, as vezes nem é fome e sim só vontade de comer pra saciar uma outra vontade! rsrs abraços aguardando a continuação.
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Oi Lígia! Espero que tenha gostado do blog!
A continuação já foi postada! Dá uma conferida aí no site!
Um forte abraço!
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