“Não há relação sexual”: o que Lacan quis dizer com isso?


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“Não consigo entender Lacan”


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Quais são os capítulos censurados da sua história?

No texto “Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise”, Lacan afirma que “O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado.” (p. 260 dos “Escritos”).

Esse trecho é interessante porque nele Lacan revela um aspecto muito específico de como pensa a existência humana.

Para o analista francês, desde antes do nascimento nossa história já está sendo contada. Depois que chegamos ao mundo, pegamos esse bonde sem saber que ele já estava andando. Em outras palavras, assumimos a autoria de um livro que já estava sendo escrito e aí continuamos a escrevê-lo, tomando a narrativa da forma como a encontramos.

No entanto, não escrevemos nossa história de um ponto de vista exterior, como um jornalista relatando fatos para uma matéria. Somos personagens da nossa própria narrativa, de modo que não conseguimos nos situar fora dela.

A imagem que, a meu ver, melhor ilustra essa ideia lacaniana de difícil apreensão é a gravura “Drawing Hands”, de Maurits Cornelis Escher, que certamente serviu de inspiração para o clipe de “Drive” da banda Incubus. No quadro aparecem duas mãos, uma sendo desenhada pela outra e vice-versa, sugerindo a ideia de um “autodesenho”.

A concepção de subjetividade em Lacan tem a ver com isso. A gente não vive numa realidade e, ao mesmo tempo, vamos construindo narrativas sobre ela. Não! Para Lacan, a gente vive na própria história que criamos, iniciada e, portanto, estruturada pelo Outro.

Assim, ao dizer que “O inconsciente é o capítulo censurado”, Lacan está propondo que, no interior desse livro do qual sou o autor e, ao mesmo tempo, o personagem, existem páginas que foram rasgadas ou trechos sobre os quais fizemos colagens para ocultar o conteúdo original.

Nesse sentido, a Psicanálise pode ser tomada como um convite para a revisão de nossa própria história. Ao se submeter à experiência analítica, o sujeito seria convocado a recompor o seu “livro da vida”, resgatando as páginas censuradas e desfazendo as falsificações.


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Questionando o “óbvio”: a falta é a causa do desejo? (parte 3)

Tentei demonstrar até aqui a tese de que nossos desejos não são causados pela falta dos objetos capazes de saciá-los. Utilizando o exemplo do desejo de beber água (sede), expliquei que a ausência parcial (“falta”) de água no organismo não pode ser causa suficiente para o surgimento desse desejo na medida em que tal condição também pode se fazer presente, por exemplo, em um copo d’água e, contudo, não se diz por conta disso que o copo sente sede. Creio ter provado, portanto, que para explicar o desejo de beber água é preciso admitir nos organismos animais (os únicos que aparentemente expressam as reações que nos acostumamos a chamar de sede) a presença de uma força que, nas ocasiões em que se verifica uma reduzida quantidade de água no corpo, mobiliza o indivíduo na busca de um objeto (água) capaz de extinguir essa “falta” e, por consequência, manter vivo o ser, aumentando, assim, sua potência de agir no mundo. Neste sentido, conforme expliquei, não é a falta que move o indivíduo na busca do objeto de desejo, mas sim esse esforço de perseveração na existência que nada mais é do que a própria essência do ser.

Não obstante, na medida em que estamos aqui dialogando com a teoria lacaniana, fizemos nosso interlocutor fictício expressar uma objeção que poderia estar presente na mente de muitos analistas lacanianos que porventura tivessem lido o texto até aqui. Trata-se da tentativa de derrubar meus argumentos através da recorrência à distinção proposta por Lacan entre necessidade e desejo. Com efeito, para o psicanalista francês, o desejo não possuiria objetos fixos e adequados para saciá-lo, diferentemente das necessidades, como fome e sede as quais, para serem satisfeitas, precisariam tão somente de alimento e água, respectivamente. O desejo, por seu turno, seria constitutivamente insaciável. Qualquer objeto utilizado para tentar satisfazer um desejo seria sempre insuficiente, ou seja, jamais conseguiria fornecer uma satisfação completa, mas sempre parcial. Nesse sentido, haveria sempre uma desarmonia entre o desejo e o objeto, pois nada no mundo seria capaz de preencher um suposto furo radical instaurado no ser por sua condição de habitante da linguagem. Como já repetimos por diversas vezes, seria esse furo, de acordo com Lacan, a causa do desejo.

Atendendo, pois, ao pedido de meu interlocutor fictício, demonstrarei que a diferença entre necessidade e desejo – a qual, em tese, ratificaria o argumento de que o desejo é causado pela falta – é, na verdade, uma distinção produzida a partir de uma fantasia: a fantasia do gozo pleno, do absoluto, que implicitamente admite a existência de um ser transcendente, completo, impassível e imóvel, um ser sem desejos.

Outrossim, demonstrarei que a tese que propusemos, a saber: a de que o desejo é causado primariamente pelo esforço de perseveração na existência e não pela falta, pode ser sustentada utilizando o exemplo não apenas de uma “necessidade” (como a sede), mas também de um “desejo” (no sentido que Lacan confere a esses termos – daí as aspas).

Tomemos o desejo de comer uma barra de chocolate como sobremesa. Já não estamos mais no campo da “necessidade”, pois tal desejo não visaria propriamente à satisfação da fome, mas sim, à obtenção de um prazer oral. Vale ressaltar que nesse exemplo estamos supondo que o indivíduo em questão já se alimentou, de modo que não sente mais fome. Entretanto, malgrado isso, deseja ainda saborear, como sobrepasto, o delicioso produto derivado do cacau. Estamos falando, portanto, de um legítimo exemplo de “desejo” e não de “necessidade”.

Como explicar esse desejo? Se não há falta de alimento no organismo, visto que o sujeito já se nutriu, como se sustenta nesse caso a tese lacaniana de que o desejo é causado por uma falta?

No limite, poderíamos descrever o argumento lacaniano da seguinte forma: o sujeito buscaria obter o prazer parcial proporcionado pelo chocolate, ou seja, devoraria esse alimento ainda que não mais estivesse sentindo fome unicamente com o intuito de saboreá-lo, porque no indivíduo humano haveria uma falta impossível de ser preenchida que o levaria a buscar no mundo objetos que ilusória e temporariamente “tamponariam” (para usar outro jargão lacaniano) a falta sem jamais conseguirem preenchê-la de fato. A existência, por conseguinte, seria um longo ciclo de ilusões e decepções.

Assim, do ponto de vista lacaniano, o desejo de comer chocolate como sobremesa – e todos os demais desejos – seria uma espécie de compensação pela falta de um objeto mítico que ofereceria ao sujeito um gozo absoluto e infinito ou uma tentativa sempre frustrada de encontrar esse objeto. Em outras palavras, o indivíduo só deseja comer a barra de chocolate, só deseja transar com a vizinha gostosa, só deseja ser um ator famoso, só deseja ficar rico, só deseja comprar uma TV de 50 polegadas, só deseja escrever uma poesia, porque não possui o objeto primordial de gozo absoluto e infinito que satisfaria plenamente a suposta falta originária. Se o possuísse, não precisaria desejar. Logo, o desejo seria sempre uma nostalgia do objeto mítico de gozo absoluto.

Observem que o conceito de falta é irremediavelmente correlato da ideia de um gozo absoluto, pleno, infinito. É, por assim dizer, o avesso de uma fantasia que sustenta a existência, em algum lugar do universo, de um ser absolutamente satisfeito e sem desejos. Em outras palavras, para admitir a existência da falta somos obrigados a supor a existência ainda que imaginária de um todo completo. Somos obrigados a considerar a realidade efetiva, sensível, experiencial, como imperfeita, insuficiente, inadequada, aleijada, defeituosa. Em relação a quê? Essa é a pergunta fundamental! Só podemos considerar algo como imperfeito se já soubermos, de antemão, como se configura o perfeito. Exemplificando, só podemos julgar que uma cadeira de três pernas é imperfeita em relação a uma modelo anterior de cadeira com quatro pernas que imaginamos ser perfeito. Nesse sentido, só podemos considerar que o ser humano é essencialmente um ente faltoso, furado, esburacado ou qualquer outro termo correlato utilizado para designar uma insuficiência, insatisfação ou imperfeição constitutiva se, e somente se, tivermos em mente um modelo ideal do humano, plenamente satisfeito e, por conseguinte, sem desejos, já que o desejo decorre da falta! Um corolário óbvio que pode ser extraído dessa concepção, a meu ver, equivocada, é a ideia de que o desejo é uma propriedade da imperfeição, ou seja, que o ideal, a suma perfeição, seria não desejar!

Ora, não é exatamente esse o núcleo da fantasia neurótica, expressão da doença daqueles que frequentam nossos divãs?

Falaremos mais sobre isso adiante. Por ora, retornemos ao nosso exemplo inicial a fim de tomarmos o problema do desejo a partir de outra perspectiva.

Será, de fato, que o desejo de saborear uma barra de chocolate é tão somente uma expressão “dessa saudade que eu sinto de tudo o que eu ainda não vi” (nas palavras do poeta)? Não seria esse desejo, assim como a sede, fruto da tendência que todo indivíduo tem de buscar, na existência, aquilo que lhe é útil (esforço de perseveração na existência)?

Minha indagação serve de “deixa” para meu interlocutor: “Útil?”, pergunta ele, “Desde quando uma barra de chocolate é útil para alguém que já não tem mais fome? É justamente isso o que levou Lacan a diferenciar necessidade e desejo, pois os objetos de desejo são, a rigor, inúteis do ponto de vista da preservação do indivíduo; servem unicamente para proporcionar prazer”.

Ora, por que restringir a noção de utilidade apenas à dimensão da sobrevivência? E também: por que considerar que o fato de o chocolate produzir prazer significa que a finalidade do desejo de comê-lo é exclusivamente a fruição de prazer como compensação pela falta?

Podemos admitir tranquilamente que um determinado objeto pode nos ser útil não apenas no sentido biológico ou pragmático do termo, até por que uma barra de chocolate possui alguns componentes não só inúteis para a preservação do organismo como até deletérios para a saúde. Uma coisa pode ser designada como útil na medida em que aumenta real ou imaginariamente nossa potência de agir na existência, aumento que afetivamente experimentamos como alegria.

As diversas experiências da vida, sobretudo as mais precoces, podem fazer com que determinadas pessoas passem a desejar, às vezes até de modo compulsivo, o chocolate como forma de se sentirem seguras e potentes, ou seja, de terem sua potência de agir aumentada. Em decorrência, podemos dizer que o prazer proporcionado pelo chocolate não é o alvo do desejo, até porque eventualmente temos desejos por coisas que não nos trazem prazer algum, mas que, através de mecanismos de deslocamento, condensação etc. são capazes de aumentar nossa potência de agir – esse, sim, o verdadeiro alvo do desejo.

Só consideraremos o prazer proporcionado pelo chocolate como parcial, incompleto, insuficiente, se estivermos imersos na fantasia que sustenta a esperança em uma satisfação plena e eterna. Por outro lado, se considerarmos que a transitoriedade do prazer oferecido pelo chocolate, isto é, o fato de que se trata de um prazer finito, é tão somente uma característica própria e inerente à experiência com o objeto, não precisaremos imaginar que haja um descompasso entre os objetos do mundo e um suposto objeto mítico de gozo, pois esse último não passaria de uma fantasia. Em decorrência, não precisaremos igualmente supor a existência de falta originária nenhuma.

Dito de outro modo, se o fato de que a degustação de uma barra de chocolate não nos impede de desejar outra barra e muitas outras coisas na vida, isso não significa que haja em nós um buraco que nunca pode ser preenchido. Uma coisa não tem nada a ver com a outra!

Desejamos muitas coisas primeiramente porque somos um esforço ininterrupto de perseveração na existência, o que nos leva sempre a buscar no mundo objetos que aumentem nossa potência de agir. Isso significa admitir que existir é o mesmo que desejar. O fato de jamais encontrarmos um objeto que, em sendo encontrado, faria com que não mais precisássemos desejar, não é um indício de que em nós exista um furo, pois a possibilidade de encontro com esse objeto mítico de gozo pleno já é uma fantasia, produto de uma defesa psíquica contra a transitoriedade inerente às experiências de prazer. Nesse sentido, desejamos muitas e variadas coisas porque praticamente todos os objetos da existência são capazes de aumentarem nossa potência de agir seja de modo imediato seja através de mecanismos psíquicos como deslocamento, condensação etc.

Creio ter conseguido demonstrar até aqui que na verdade o desejo não é, como propõe Lacan, causado pela falta, mas é a expressão autêntica do nosso esforço de perseveração na existência. A título de adendo, na parte final deste texto, mostrarei como a concepção de desejo como tributário de uma suposta falta é decorrente da forma defensivamente neurótica com a qual Lacan entende o conceito freudiano de Trieb (pulsão).

Questionando o “óbvio”: a falta é a causa do desejo? (parte 2)

De acordo com as últimas elaborações teóricas de Lacan, o chamado objeto a seria o agente causador do desejo. O objeto a, contudo, nada mais é do que um termo inventado por Lacan para nomear justamente a inexistência de um objeto adequado à pulsão. Trata-se, por conseguinte, de um conceito que pretende circunscrever um furo, um vazio radical, uma hiância (para usar um jargão lacaniano). Em decorrência, poderíamos simplificar e dizer por fim que, do ponto de vista lacaniano, a causa do desejo é a inexistência do objeto ou, em outras palavras, que o desejo decorre da falta.

Ora, como dissemos anteriormente, nos parece irrefutável a constatação de que só expressemos os nossos desejos nas ocasiões em que não possuímos os objetos que os satisfariam. Todavia, considero um erro supor, a partir dessa constatação, que é a ausência do objeto, isto é, a falta, em si mesma, que mobiliza, ou seja, que põe em funcionamento o nosso desejo! Do meu ponto de vista, incorre-se em um erro de atribuição causal quando se pensa dessa forma.

Farei uso de um exemplo singelo para ilustrar minha crítica.

Com efeito, nós não desejamos beber água por que não temos tal líquido, ou seja, a ausência de água não é o que produz em nós o desejo de bebê-la! Afinal, haverá ocasiões em que mesmo não tendo água à mão não haverá em nós o desejo de ingerir o fluido. Só experimentaremos esse desejo quando considerarmos que a água nos será útil, conveniente, favorável para a preservação de nossa existência. Dito de outro modo, quando sentirmos sede.

Um interlocutor perspicaz poderia redarguir dizendo: “Eis que você traz novamente a falta à baila! Afinal, o que é a sede senão a falta de água no organismo?”.

Em primeiro lugar, essa última afirmação é uma falácia. A sede, isto é, a experiência subjetiva de anelar por alguns goles de água ou outro líquido que contenha um volume razoável de H²O, não é a ausência dos níveis adequados de água no organismo. Só se pode fazer tal equivalência caso se adote um distante e indiferente ponto de vista biológico e mecanicista, que não reconhece a sede como uma experiência, mas se atém unicamente aos registros dos níveis de água no corpo.

Por outro lado, se não fazemos uso dos óculos do reducionismo biológico, o que observamos é meramente uma relação de concomitância entre a experiência da sede e os níveis reduzidos de água no corpo. Inferir, a partir disso, que há uma relação de identidade entre a falta de água no corpo e a sede (desejo de tomar água) significa cair no engodo reducionista que considera que os instrumentos teórico-conceituais utilizados para descrever a realidade são um espelho da própria realidade. A experiência da sede não é a mensuração dos níveis reduzidos de água no organismo.

A réplica de meu interlocutor fictício, porém, não se limita a supor uma relação de identidade entre a sede e a falta de água no organismo. Sub-repticiamente o que sua contestação reivindica é a existência de uma relação de causalidade entre falta de água e sede, pois tal estado de coisas seria um exemplo de como o desejo (no caso, o desejo de beber água) seria causado, como todo desejo, por uma falta.

Novo equívoco motivado igualmente pela suposição de uma equivalência entre a ausência dos níveis apropriados de água no corpo e a experiência da sede. De fato, essa equivalência, se levada ao limite, acaba dando margem a hipóteses absurdas, como a de que um galão ou um copo d’água, quando vazios, também sentem sede. Afinal, não seria a falta d’água que causaria a sede?

“Mas isso é um absurdo mesmo!”, se exaspera meu incansável interlocutor, “O galão ou o copo não são organismos animais. Só os animais podem sentir sede”.

O que meu interlocutor está dizendo, contrariando sua própria argumentação, é que para explicar a experiência da sede é preciso lançar mão de um dado complementar (no caso, a existência de um organismo animal), além da simples constatação da presença de níveis reduzidos de água. Afinal de contas, caso houvesse uma relação causal entre falta d’água e sede, essa associação deveria existir em qualquer objeto, seja um organismo, seja um copo. Se apenas nos objetos conhecidos como organismos animais é possível verificar o que nós chamamos de sede, isso significa esse tipo de experiência constitui-se em um aspecto próprio, particular, característico, inerente apenas a esse tipo de objeto.

A causa da sede, portanto, não pode ser a falta da quantidade adequada de água no organismo, como queríamos demonstrar.

Por outro lado, se considerarmos que a água, nas ocasiões em que o indivíduo está com níveis reduzidos desse líquido no organismo, ao mesmo tempo em que se configura para ele como algo desejável, lhe é útil, logo damo-nos conta de que há no indivíduo uma tendência, uma inclinação, uma força atávica que o leva a buscar o que é útil para si a fim de manter-se vivo e como que regenerar-se continuamente. Nesse sentido, a causa do desejo, ou o próprio desejo, nada mais é do que essa tendência, que o filósofo Benedictus de Spinoza chamou de tendência de perseveração na existência. A falta de água, portanto, é uma mera condição transitória experimentada pelo indivíduo em determinadas ocasiões, que não causa o desejo, mas apenas modula a forma como a tendência a perseverar na existência – que se expressa ininterruptamente – se manifestará naquele momento específico em que falta água, ou seja, em forma de sede.

Uma possível nova objeção de meu interlocutor, já combalido, poderia ser a seguinte: “Para Lacan, sede não é desejo. Trata-se de algo da ordem da necessidade. As necessidades possuem objetos adequados para saciá-las; o desejo não. Portanto, seu exemplo, não é adequado ao argumento. Encontre outro”.

No próximo post, tentarei debelar essa nova investida demonstrando que a diferença entre necessidade e desejo, preciosa para Lacan, é também, do meu ponto de vista, questionável.

Questionando o “óbvio”: a falta é a causa do desejo? (parte 1)

Durante boa parte do período em que estava me graduando em psicologia ouvi da boca de vários professores e colegas a seguinte afirmação dita de modo mais ou menos sofisticado: “O ser humano só deseja porque nele há uma falta.”. Eu mesmo, durante muito tempo, reproduzi essa ideia, empregando termos teoricamente mais apropriados como, por exemplo, “furo” em vez de “falta”. Não o fazia apenas por ser essa tese um dos fundamentos da teoria de Jacques Lacan, mas também porque ela me parecia ser de uma obviedade tremenda.

De fato, qualquer desejo, por mais bobo que fosse, parecia encaixar-se perfeitamente naquela afirmativa! Exemplificando: por que desejo um salário melhor? Resposta aparentemente mais do que óbvia: por que não o tenho, ora bolas! Logo, seria essa falta do objeto de desejo (salário melhor) que me faria desejar, certo? Lacan parecia, portanto, estar apenas “chovendo no molhado”, isto é, dizendo aquilo que todo mundo intuitivamente já sabe sem precisar estudar psicanálise.

No decorrer deste artigo, contudo, demonstrar-lhes-ei que a ideia de que o desejo é produzido pela falta não se trata efetivamente de um “senso comum”, mas antes de um equívoco comum, legitimado na psicanálise pela doutrina lacaniana.

Antes, porém, sejamos justos com o nada ingênuo psicanalista francês.

É óbvio que ao elaborar sua teoria a respeito do desejo Lacan não tomara como objeto de reflexão meramente os desejos e vontades nossos de cada dia, como o desejo banal de comer bife no almoço. O que ele tinha em vista era naturalmente o desejo que de fato interessa ao psicanalista: o desejo inconsciente. De todo modo, Lacan acaba fornecendo um enquadramento teórico que serve tanto para o último quanto para os primeiros.

O desejo inconsciente, esse desejo radical que a clínica de Freud dizia ser o desejo edípico, desejo de consumar o incesto, seria fruto da existência prévia de uma falta. Para Freud, falta da mãe enquanto objeto sexual. Falta, por seu turno, instaurada pela interdição do incesto presente em toda e qualquer formação cultural.

Num primeiro momento, Lacan apenas repetiu essa tese de Freud com a ajuda de outros conceitos. Em vez da mãe, resgatou o conceito freudiano de Coisa (das Ding), objeto primordial de gozo cujo acesso seria barrado ao sujeito pelo registro simbólico (Lei) via Nome-do-Pai. A falta da Coisa faria com que o sujeito passasse a desejar. Desejar o quê? Objetos capazes de substituírem parcialmente a Coisa. O desejo, portanto, seria uma reação à perda do objeto primordial de gozo, uma busca no mundo de objetos capazes de tamponar a falta da Coisa.

A partir do seminário sobre a angústia Lacan modifica um pouco sua posição a respeito do tema. O desejo passa a não ser mais visto como fruto da interdição do incesto. Já não é a Lei que produz a emergência da falta. A perda da mãe como objeto sexual apenas reproduz uma perda atávica, fundamental, cuja gênese é desconhecida, só se sabe que existe. Perda relativa a que objeto? Não se sabe. Só se sabe que esse objeto foi perdido. Freud intuiu a existência dessa perda fundamental ao dizer que não há objeto adequado para a pulsão. Lacan aventurou-se a dar um nome a esse objeto inexistente: chamou-o de objeto a, um objeto que seria desde sempre perdido e que poderia ser ilustrado pelos vários objetos de gozo que vamos perdendo ao longo da vida: o útero, o seio, as fezes, etc.

Nota-se, portanto, que mesmo ao reformular suas ideias, retirando a centralidade do mito de Édipo e do tabu do incesto, ainda assim Lacan permanece defendendo uma concepção negativa do desejo, ou seja, do desejo como decorrente de uma falta. Num primeiro momento, falta do objeto materno interditado pela Lei. Num segundo, falta constitutiva, originária, estrutural, de um objeto adequado à pulsão.

Mais uma vez, procedamos com honestidade, a enunciação pura e simples das teses lacanianas parece conferir a elas um ar de total evidência! De fato, não há objeto adequado à pulsão. Como disse o próprio Lacan, “A relação sexual não existe”. A clínica do adoecimento neurótico e a experiência cotidiana das perversões comprovam de maneira categórica a ideia. A pulsão é extremamente plástica, pode se “enganchar” em qualquer coisa: de um par de sapatos vermelhos a uma pessoa morta. Aparentemente tudo pode se tornar capaz de levar um ser humano a sentir excitação sexual; a pulsão é acéfala nesse sentido.

Não obstante, quando nos propomos a ser um pouco mais rigorosos tanto filosófica quanto logicamente, nos damos conta da existência de uma sutil falha de raciocínio na concepção lacaniana do desejo como fruto de uma falta fundamental. É sobre isso que falaremos a seguir.

O que é objeto a?

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