Tentei demonstrar até aqui a tese de que nossos desejos não são causados pela falta dos objetos capazes de saciá-los. Utilizando o exemplo do desejo de beber água (sede), expliquei que a ausência parcial (“falta”) de água no organismo não pode ser causa suficiente para o surgimento desse desejo na medida em que tal condição também pode se fazer presente, por exemplo, em um copo d’água e, contudo, não se diz por conta disso que o copo sente sede. Creio ter provado, portanto, que para explicar o desejo de beber água é preciso admitir nos organismos animais (os únicos que aparentemente expressam as reações que nos acostumamos a chamar de sede) a presença de uma força que, nas ocasiões em que se verifica uma reduzida quantidade de água no corpo, mobiliza o indivíduo na busca de um objeto (água) capaz de extinguir essa “falta” e, por consequência, manter vivo o ser, aumentando, assim, sua potência de agir no mundo. Neste sentido, conforme expliquei, não é a falta que move o indivíduo na busca do objeto de desejo, mas sim esse esforço de perseveração na existência que nada mais é do que a própria essência do ser.
Não obstante, na medida em que estamos aqui dialogando com a teoria lacaniana, fizemos nosso interlocutor fictício expressar uma objeção que poderia estar presente na mente de muitos analistas lacanianos que porventura tivessem lido o texto até aqui. Trata-se da tentativa de derrubar meus argumentos através da recorrência à distinção proposta por Lacan entre necessidade e desejo. Com efeito, para o psicanalista francês, o desejo não possuiria objetos fixos e adequados para saciá-lo, diferentemente das necessidades, como fome e sede as quais, para serem satisfeitas, precisariam tão somente de alimento e água, respectivamente. O desejo, por seu turno, seria constitutivamente insaciável. Qualquer objeto utilizado para tentar satisfazer um desejo seria sempre insuficiente, ou seja, jamais conseguiria fornecer uma satisfação completa, mas sempre parcial. Nesse sentido, haveria sempre uma desarmonia entre o desejo e o objeto, pois nada no mundo seria capaz de preencher um suposto furo radical instaurado no ser por sua condição de habitante da linguagem. Como já repetimos por diversas vezes, seria esse furo, de acordo com Lacan, a causa do desejo.
Atendendo, pois, ao pedido de meu interlocutor fictício, demonstrarei que a diferença entre necessidade e desejo – a qual, em tese, ratificaria o argumento de que o desejo é causado pela falta – é, na verdade, uma distinção produzida a partir de uma fantasia: a fantasia do gozo pleno, do absoluto, que implicitamente admite a existência de um ser transcendente, completo, impassível e imóvel, um ser sem desejos.
Outrossim, demonstrarei que a tese que propusemos, a saber: a de que o desejo é causado primariamente pelo esforço de perseveração na existência e não pela falta, pode ser sustentada utilizando o exemplo não apenas de uma “necessidade” (como a sede), mas também de um “desejo” (no sentido que Lacan confere a esses termos – daí as aspas).
Tomemos o desejo de comer uma barra de chocolate como sobremesa. Já não estamos mais no campo da “necessidade”, pois tal desejo não visaria propriamente à satisfação da fome, mas sim, à obtenção de um prazer oral. Vale ressaltar que nesse exemplo estamos supondo que o indivíduo em questão já se alimentou, de modo que não sente mais fome. Entretanto, malgrado isso, deseja ainda saborear, como sobrepasto, o delicioso produto derivado do cacau. Estamos falando, portanto, de um legítimo exemplo de “desejo” e não de “necessidade”.
Como explicar esse desejo? Se não há falta de alimento no organismo, visto que o sujeito já se nutriu, como se sustenta nesse caso a tese lacaniana de que o desejo é causado por uma falta?
No limite, poderíamos descrever o argumento lacaniano da seguinte forma: o sujeito buscaria obter o prazer parcial proporcionado pelo chocolate, ou seja, devoraria esse alimento ainda que não mais estivesse sentindo fome unicamente com o intuito de saboreá-lo, porque no indivíduo humano haveria uma falta impossível de ser preenchida que o levaria a buscar no mundo objetos que ilusória e temporariamente “tamponariam” (para usar outro jargão lacaniano) a falta sem jamais conseguirem preenchê-la de fato. A existência, por conseguinte, seria um longo ciclo de ilusões e decepções.
Assim, do ponto de vista lacaniano, o desejo de comer chocolate como sobremesa – e todos os demais desejos – seria uma espécie de compensação pela falta de um objeto mítico que ofereceria ao sujeito um gozo absoluto e infinito ou uma tentativa sempre frustrada de encontrar esse objeto. Em outras palavras, o indivíduo só deseja comer a barra de chocolate, só deseja transar com a vizinha gostosa, só deseja ser um ator famoso, só deseja ficar rico, só deseja comprar uma TV de 50 polegadas, só deseja escrever uma poesia, porque não possui o objeto primordial de gozo absoluto e infinito que satisfaria plenamente a suposta falta originária. Se o possuísse, não precisaria desejar. Logo, o desejo seria sempre uma nostalgia do objeto mítico de gozo absoluto.
Observem que o conceito de falta é irremediavelmente correlato da ideia de um gozo absoluto, pleno, infinito. É, por assim dizer, o avesso de uma fantasia que sustenta a existência, em algum lugar do universo, de um ser absolutamente satisfeito e sem desejos. Em outras palavras, para admitir a existência da falta somos obrigados a supor a existência ainda que imaginária de um todo completo. Somos obrigados a considerar a realidade efetiva, sensível, experiencial, como imperfeita, insuficiente, inadequada, aleijada, defeituosa. Em relação a quê? Essa é a pergunta fundamental! Só podemos considerar algo como imperfeito se já soubermos, de antemão, como se configura o perfeito. Exemplificando, só podemos julgar que uma cadeira de três pernas é imperfeita em relação a uma modelo anterior de cadeira com quatro pernas que imaginamos ser perfeito. Nesse sentido, só podemos considerar que o ser humano é essencialmente um ente faltoso, furado, esburacado ou qualquer outro termo correlato utilizado para designar uma insuficiência, insatisfação ou imperfeição constitutiva se, e somente se, tivermos em mente um modelo ideal do humano, plenamente satisfeito e, por conseguinte, sem desejos, já que o desejo decorre da falta! Um corolário óbvio que pode ser extraído dessa concepção, a meu ver, equivocada, é a ideia de que o desejo é uma propriedade da imperfeição, ou seja, que o ideal, a suma perfeição, seria não desejar!
Ora, não é exatamente esse o núcleo da fantasia neurótica, expressão da doença daqueles que frequentam nossos divãs?
Falaremos mais sobre isso adiante. Por ora, retornemos ao nosso exemplo inicial a fim de tomarmos o problema do desejo a partir de outra perspectiva.
Será, de fato, que o desejo de saborear uma barra de chocolate é tão somente uma expressão “dessa saudade que eu sinto de tudo o que eu ainda não vi” (nas palavras do poeta)? Não seria esse desejo, assim como a sede, fruto da tendência que todo indivíduo tem de buscar, na existência, aquilo que lhe é útil (esforço de perseveração na existência)?
Minha indagação serve de “deixa” para meu interlocutor: “Útil?”, pergunta ele, “Desde quando uma barra de chocolate é útil para alguém que já não tem mais fome? É justamente isso o que levou Lacan a diferenciar necessidade e desejo, pois os objetos de desejo são, a rigor, inúteis do ponto de vista da preservação do indivíduo; servem unicamente para proporcionar prazer”.
Ora, por que restringir a noção de utilidade apenas à dimensão da sobrevivência? E também: por que considerar que o fato de o chocolate produzir prazer significa que a finalidade do desejo de comê-lo é exclusivamente a fruição de prazer como compensação pela falta?
Podemos admitir tranquilamente que um determinado objeto pode nos ser útil não apenas no sentido biológico ou pragmático do termo, até por que uma barra de chocolate possui alguns componentes não só inúteis para a preservação do organismo como até deletérios para a saúde. Uma coisa pode ser designada como útil na medida em que aumenta real ou imaginariamente nossa potência de agir na existência, aumento que afetivamente experimentamos como alegria.
As diversas experiências da vida, sobretudo as mais precoces, podem fazer com que determinadas pessoas passem a desejar, às vezes até de modo compulsivo, o chocolate como forma de se sentirem seguras e potentes, ou seja, de terem sua potência de agir aumentada. Em decorrência, podemos dizer que o prazer proporcionado pelo chocolate não é o alvo do desejo, até porque eventualmente temos desejos por coisas que não nos trazem prazer algum, mas que, através de mecanismos de deslocamento, condensação etc. são capazes de aumentar nossa potência de agir – esse, sim, o verdadeiro alvo do desejo.
Só consideraremos o prazer proporcionado pelo chocolate como parcial, incompleto, insuficiente, se estivermos imersos na fantasia que sustenta a esperança em uma satisfação plena e eterna. Por outro lado, se considerarmos que a transitoriedade do prazer oferecido pelo chocolate, isto é, o fato de que se trata de um prazer finito, é tão somente uma característica própria e inerente à experiência com o objeto, não precisaremos imaginar que haja um descompasso entre os objetos do mundo e um suposto objeto mítico de gozo, pois esse último não passaria de uma fantasia. Em decorrência, não precisaremos igualmente supor a existência de falta originária nenhuma.
Dito de outro modo, se o fato de que a degustação de uma barra de chocolate não nos impede de desejar outra barra e muitas outras coisas na vida, isso não significa que haja em nós um buraco que nunca pode ser preenchido. Uma coisa não tem nada a ver com a outra!
Desejamos muitas coisas primeiramente porque somos um esforço ininterrupto de perseveração na existência, o que nos leva sempre a buscar no mundo objetos que aumentem nossa potência de agir. Isso significa admitir que existir é o mesmo que desejar. O fato de jamais encontrarmos um objeto que, em sendo encontrado, faria com que não mais precisássemos desejar, não é um indício de que em nós exista um furo, pois a possibilidade de encontro com esse objeto mítico de gozo pleno já é uma fantasia, produto de uma defesa psíquica contra a transitoriedade inerente às experiências de prazer. Nesse sentido, desejamos muitas e variadas coisas porque praticamente todos os objetos da existência são capazes de aumentarem nossa potência de agir seja de modo imediato seja através de mecanismos psíquicos como deslocamento, condensação etc.
Creio ter conseguido demonstrar até aqui que na verdade o desejo não é, como propõe Lacan, causado pela falta, mas é a expressão autêntica do nosso esforço de perseveração na existência. A título de adendo, na parte final deste texto, mostrarei como a concepção de desejo como tributário de uma suposta falta é decorrente da forma defensivamente neurótica com a qual Lacan entende o conceito freudiano de Trieb (pulsão).
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