Nascemos condenados à cadeia significante?

the-little-baby-hand_422_18073O estruturalismo nasceu como uma corrente teórico-metodológica que supostamente legitimaria o estatuto científico das chamadas Humanidades, isto é, a psicologia, a antropologia, a sociologia, dentre outros saberes cujo objeto está diretamente ligado à condição humana. Na etapa inicial de seu ensino nos anos 1950, o psicanalista Jacques Lacan estava bastante entusiasmado com a proposta estruturalista, utilizando-a como uma espécie de pano de fundo para sua reinterpretação do pensamento freudiano, o famoso projeto de “retorno a Freud”.

Como se sabe, o estruturalismo está baseado em duas premissas básicas, a saber: (1) a de que um elemento de um determinado universo não possui significação em si mesmo, ou seja, seu sentido depende dos demais elementos do sistema (estrutura) aos quais se encontra vinculado e (2) a de que essa estrutura ou sistema pode ser inferida dos fenômenos empíricos (pleonasmo intencional) na medida em que é inconsciente.

Primazia do discurso do Outro?

Pois bem, ao aplicar tais premissas à teoria psicanalítica, Lacan chega à paradoxal tese que sustenta, ao mesmo tempo (daí o paradoxo), a existência do sujeito e a determinação desse sujeito pela linguagem. Trata-se de uma ideia que foi sintetizada na famosa fórmula “o sujeito é aquilo que um significante representa para o outro significante.”. Dito de modo mais simples, o que Lacan quis expressar com essa afirmação é a tese de que o lugar que cada um de nós ocupa na existência seria pré-determinado.

Do ponto de vista lacaniano, isso aconteceria porque nasceríamos em um mundo já estruturado não só materialmente, mas também e, sobretudo, culturalmente. Em outras palavras, cairíamos de paraquedas em um mundo já abarrotado de discursos, desejos e interesses. Só nos restaria, portanto, a opção de nos adequarmos, nos adaptarmos, nos submetermos a esse ambiente já organizado, inserindo-nos no lugar já preparado de antemão pelo desejo do Outro para nos receber.

Lacan, a meu ver, não estava de todo equivocado, a não ser no que diz respeito a certo fatalismo que pode ser depreendido de sua teorização. Os lacanianos certamente poderão discordar do que vou dizer, reivindicando como fundamento de sua réplica o último estágio do ensino do psicanalista francês em que a ênfase teria sido posta no registro do real, o qual excederia o alcance da linguagem. Em decorrência, não haveria uma pré-determinação tão rígida assim.

Creio, não obstante, que a formulação “o sujeito é o que um significante representa para outro significante” perpassa todo o ensino de Lacan e carrega de maneira implícita a ideia de que não existe espontaneidade e que o exercício da criatividade é sempre reativo, ou seja, sempre exercido a partir da primazia do significante. Dito de outro modo, o desejo do Outro, a linguagem, a cadeia significante seria o elemento primário, já que o próprio sujeito é visto puramente como um efeito do funcionamento da linguagem.

A espontaneidade como anterior à estrutura

Donald Woods Winnicott, por seu turno, ao postular a ideia de um verdadeiro self existente em cada um de nós de maneira potencial ou virtual e que ao longo da existência pode ser atualizado ou permanecer potencial, me parece dar ensejo a uma visão menos passiva e reativa da subjetividade.

De fato, Winnicott não ignora que o fato de que o mundo já se encontra discursivamente estruturado antes de nascermos e de que nossos pais já possuem uma série de desejos a nosso respeito que podem se configurar para nós como uma espécie de pré-determinação. Winnicott não é ingênuo. Contudo, a diferença crucial existente entre o ponto de vista do psicanalista inglês em relação a Lacan diz respeito à primazia que Winnicott reconhece na espontaneidade do bebê face ao desejo do Outro.

Em outras palavras, para Winnicott, embora o discurso do Outro exista, ele é secundário em relação aos gestos espontâneos do bebê. Nesse sentido, primeiro o indivíduo agiria, sentiria, experimentaria o ambiente afetivo à sua volta, ou seja, a própria mãe enquanto condições sensórias de cuidado, para só depois (não cronológica, mas logicamente) lidar com o aparelho cultural pré-organizado.

Além disso, do ponto de vista winnicottiano, o desejo do Outro não engolfaria o sujeito fazendo dele meramente um efeito da cadeia significante. Justamente por não reduzir a subjetividade ao domínio de uma linguagem vista como estrutura, Winnicott pode reivindicar a ideia de que a entrada no registro simbólico pode se dar de modo ativo, criativo em continuidade com os gestos espontâneos.

6 comentários sobre “Nascemos condenados à cadeia significante?

  1. Luiz Fernando Coelho

    É fácil de imaginar a influência que uma estrutura(sociedade ou cultura) já formada deva exercer em um ser(indivíduo) que chega ao mundo e se desenvolva nele, mas penso que todos seres mesmo estando inserido numa gama de sentidos e significados, são capazes de se desgarrar dessas amarras sociais e/ou culturais e criar seu próprio sentido e significado da existência. É claro que isso não é uma tarefa tão simples. Gostei do paradigma Lucas. Um abraço. Luiz Fernando Coelho.

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  2. Lucas Nápoli

    Olá Tânia! Muito obrigado pelo pertinente comentário e pelo elogio!

    É sempre um prazer tê-la por aqui.

    Um forte abraço!

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  3. Mirella

    Oi, Lucas, acompanho seus textos pelo blog e FB, sempre bem escritos e claros. Parabéns pelo trabalho. Aprendo muito com eles, e reflito, mais ainda. Queria aproveitar o espaço para lhe sugerir um assunto sobre o qual gostaria de conhecer sua opinião. Abujamra, uma vez, perguntou a Jorge Forbes se a psicanálise tem mais perguntas do que respostas a oferecer? Qual a sua resposta para essa pergunta? E mais (vou falar em termos lacanianos que é a linha da análise em que estou analisante): se a ética lacaniana é não ceder em seu desejo; se o ser humano não vive sozinho, precisa dos outros (por isso criou a família, a sociedade, etc); se, ou se está no seu desejo, ou assujeitado ao desejo do outro; até onde essa máxima lacaniana vai? Como conviverem em sociedade desejos muitas vezes inconciliáveis, incomunicáveis, porque fundados numa radicalidade? A ruptura não seria inevitável, um risco que corre aquele que opta por não ceder em seu desejo, por assumir sua singularidade? Abs, Mirella.

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  4. Lucas Nápoli

    Olá Mirella! Primeiramente, quero dizer que sinto-me muito satisfeito com feedbacks de leitores como você!

    Com relação à pergunta que o Abujamra fez ao Forbes, eu responderia com outra pergunta: “A Psicanálise enquanto prática clínica ou a psicanálise como teoria da subjetividade?”. Com efeito, a psicanálise como prática clínica de fato tem mais perguntas do que respostas a oferecer, pois o que leva o paciente à clínica é justamente um acúmulo de respostas que não funcionam mais. Já a psicanálise enquanto teoria da subjetividade, acredito que tenha boas respostas a dar à sociedade em relação a temas como a sexualidade, por exemplo. Sou bastante freudiano nesse ponto.

    Com relação à sua segunda pergunta, penso que Lacan ao formular a tese de que a ética da psicanálise convoca o sujeito a não ceder de seu desejo não estava apagando a figura do Outro. Penso que, sobretudo no final de seu ensino, Lacan propõe uma saída muito semelhante ao obscuro conceito freudiano de “sublimação”. Para Lacan, trata-se de conseguir elaborar um saber-fazer com nosso sinthoma, sendo esse justamente o laço estabelecido entre nosso gozo e o Outro. Estou apenas pensando alto, pois preciso examinar a questão um pouco mais.

    Um grande abraço e apareça sempre por aqui!

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