Fort-da: simbolizando o trauma para neutralizar o sofrimento

Por volta de 1919, Freud andava intrigado com o grande número de ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) que retornara do campo de batalha apresentando vários sintomas psicopatológicos, como depressão e problemas motores.

Mas o que de fato vinha deixando Freud pensativo não eram exatamente esses sintomas, típicos de neuroses traumáticas, mas os SONHOS que esses homens costumavam apresentar.

Com efeito, eram sonhos nos quais o sujeito era levado de volta aos dolorosos eventos vivenciados na guerra, como se a pessoa estivesse se obrigando a REVIVER tais experiências traumáticas.

Em meio à tentativa de compreender esse fenômeno que aparentemente contradizia sua teoria dos sonhos como realizações de desejos, Freud teve a oportunidade de observar as brincadeiras de seu netinho Ernst e perceber que o garoto também parecia BUSCAR VOLUNTARIAMENTE a repetição de vivências de sofrimento.

Ernst, que na época tinha cerca de 1 ano e meio, era a típica criança que não dá trabalho.

Freud diz que ele “não incomodava os pais à noite, obedecia conscientemente às ordens de não tocar em certas coisas, ou de não entrar em determinados cômodos e, acima de tudo, nunca chorava quando sua mãe o deixava por algumas horas”.

O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele e gostava de brincar de lançar esse objeto para fora de sua cama, segurando-o pelo cordão e puxá-lo de volta alguns segundos depois.

Quando o carretel era lançado, Ernst emitia o som “o-o-ó” que Freud e a mãe do garoto interpretaram como sendo uma tentativa de dizer a palavra “Fort” (“foi embora”, em alemão).

Já quando puxava o objeto de volta, o garoto dizia com muita alegria a palavra “Da” (“aí”, em alemão).

Freud chegou à conclusão de que a brincadeira era uma espécie de representação simbólica das idas e vindas da mãe.

Mas por que será que o menino brincava de REPETIR a experiência do afastamento da genitora já que isso certamente era fonte de sofrimento para ele?

Por que será que muitas vezes nós (nós!) BUSCAMOS reviver situações dolorosas?

A resposta está na AULA ESPECIAL que aqueles que estão na CONFRARIA ANALÍTICA receberão daqui a pouco.

Te vejo lá!


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O estrago que péssimos pais provocam na alma de seus filhos

Toda criança naturalmente espera ser tratada com zelo, carinho e valorização pelos seus pais.

Não passa pela cabeça dela a ideia de que eles podem não estar à altura da função parental.

Os pequenos dão como certo que são fonte de orgulho e satisfação para seus genitores.

E não há nada que deixe uma criança mais feliz do que ter comprovações disso.

No entanto, a experiência nos mostra que nem todo o mundo que coloca filhos no mundo deveria de fato ter tido a dádiva de ser pai ou mãe.

A clínica evidencia que há certos indivíduos que jamais deveriam ter sido genitores, pois nunca souberam exercer adequadamente o papel de pais.

Refiro-me àquelas pessoas que sempre trataram seus filhos desde a mais tenra infância com distanciamento, frieza, excesso de críticas ou violência.

Não, elas não deveriam ter sido pais.

Nós, terapeutas, sabemos o estrago que tais atitudes hostis provocam na alma de seus filhos.

Diante de uma mãe excessivamente severa e que está o tempo todo apontando defeitos e falhas, a filha não se sente triste ou injustiçada. Ela se sente CULPADA!

O mesmo se passa com o garoto que cresceu tendo em casa um pai frio, distante, que parecia viver num mundo à parte. Esse menino morre de CULPA!

Sim, incapaz de entender por que os pais se comportam de forma hostil, a criança começa a achar que o problema está nela mesma.

Estabelece-se, assim, uma situação extremamente perversa:

Sentindo-se a responsável pelos maus tratos que recebe, a criança começa a fazer de tudo para agradar a mãe ou o pai.
Mas, obviamente, a situação não muda.

Isso leva o indivíduo a crescer não só com esse injustificável sentimento de culpa, mas também com uma sensação constante de inadequação e insegurança.

As chances dessa pessoa, já na idade adulta, se envolver em relacionamentos abusivos é MUITO grande.

A explicação é simples: ela PRECISA encontrar um homem ou uma mulher abusivos para que possa REENCENAR a situação infantil traumática e continuar tentando simbolicamente “converter” o papai ou a mamãe.

Toda criança deve ser objeto de afeição, carinho, proteção, presença, validação, valorização e reconhecimento.

Quem não tem a capacidade de oferecer isso não deveria ser pai ou mãe. PONTO.


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Nem repressão nem frouxidão: sobre o papel dos pais na vida das crianças

Quando a gente se propõe a refletir sobre as funções que os pais exercem na vida de seus filhos (ou deveriam exercer), existem muitos pontos de partida.

Podemos pensar, por exemplo, no papel crucial que eles desempenham no processo de socialização da criança.

Sempre costumo dizer em minhas aulas que, no início da vida, somos apenas filhotinhos de Homo sapiens e que só depois nos tornamos de fato SÓCIOS da grande sociedade humana.

A passagem para a condição de sócio não é automática. Ela demanda de nós a internalização de certos parâmetros, regras e padrões que não vêm conosco “de fábrica”.

Uma das principais tarefas dos pais é a de introduzir a criança gradualmente na dimensão dessas normas sociais. Com efeito, os pais são os primeiros “sócios” com os quais a criança se depara.

E é por meio da convivência com eles que os pequenos vão incorporando os requisitos básicos que os tornarão capazes de viver socialmente.

Por outro lado, os pais também exercem um papel determinante no DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL de seus filhos.

Um elemento fundamental da saúde mental é a experiência de se sentir SENDO, isto é, a sensação de que a gente está efetivamente VIVENDO de forma autêntica e não apenas reagindo passivamente ao que acontece.

A conquista dessa experiência está diretamente relacionada ao que acontece na relação entre pais e filhos na infância.

De fato, a criança só poderá vivenciar essa sensação de liberdade e autenticidade se puder contar com pais que não a reprimem, mas, ao mesmo tempo, não a deixam perdida e insegura.

Uma criação repressiva tolhe o movimento espontâneo da criança e a leva a trocar sua criatividade natural pela adaptação passiva e submissa aos ditames do outro.

Por outro lado, o viver autêntico só é possível num contexto de confiabilidade. Ninguém consegue VIVER tranquilamente se precisa estar o tempo todo preocupado em SOBREVIVER.

Por isso, os pais não devem ser invasivos e repressivos, mas também não podem ser frouxos e negligentes.

Cabe a eles oferecer à criança um ambiente confiável e seguro para que ela vá pouco a pouco internalizando esses atributos e se torne capaz de confiar em si mesma e se sentir naturalmente segura.


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O que são espaço e objetos transicionais? (final)

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Livro narra depoimento de um pai sobre os sinais de autismo

Giovani era o bebê que todos os pais gostariam de ter. Falo dos pais contemporâneos que se dividem entre o trabalho, o cuidado dos filhos e seus projetos pessoais. Calmo, silencioso e com pouca propensão a chorar, Giovani era capaz de passar horas brincando sozinho, folheando um livro ou vendo televisão sem solicitar a atenção de seus pais. Em outras palavras, diferentemente da maioria das crianças, o garoto pouco demandava de seus pais, produzindo neles uma sensação de conforto e tranquilidade bastante atípica para quem estava cuidando de um bebê com poucos meses de vida. Essa sensação, todavia, não durou muito tempo.

Seu pai, Francisco Paiva Junior, dono de uma aguçada capacidade de observação própria da profissão de jornalista, logo notou que além de ser excessivamente calmo para um bebê, Giovani apresentava outros comportamentos que o distinguiam da maioria das crianças: não utilizava os brinquedos de acordo com a função para a qual haviam sido feitos (carrinhos, por exemplo, eram jogados ou chutados como bolas); repetia durante um bom tempo uma mesma ação, como levantar até a altura do rosto uma peça de um jogo de montar e depois deixá-la cair; dificilmente atendia ao ser chamado por seu nome; não olhava nos olhos de ninguém etc.

Graças à Internet, Paiva Junior pôde ter acesso a informações que o levaram a suspeitar do que poderia estar acontecendo com seu filho e – o que é o mais importante – buscar ajuda especializada. Pesquisando acerca dos comportamentos atípicos de Giovani, o jornalista descobriu que o filho poderia ser autista.

Diferentemente do que o público leigo imagina, o autismo não é uma categoria diagnóstica que comporta apenas uma única caracterização sintomatológica. Dito de outro modo, indivíduos com autismo não são todos iguais. Fala-se no campo psicopatológico, de um espectro autista, ou seja, de uma faixa que comporta vários níveis e graus de autismo. Nesse sentido, há casos leves, moderados e graves de autismo, com sintomatologias específicas em cada um dos níveis. O elemento comum que permite designar os diferentes quadros nosológicos como autismo é a existência de um atraso no desenvolvimento das funções de comunicação e socialização, o que caracteriza essa psicopatologia como um transtorno global do desenvolvimento (TGD).

Em “AUTISMO: não espere, aja logo! Depoimentos de um pai sobre os sinais de autismo” (M.Books, 2012, 132 páginas, R$39), o jornalista Paiva Junior corajosamente narra todo o percurso que vai desde o complicado parto de seu filho Giovani, passando pelo recebimento do diagnóstico de autismo, até o começo do tratamento do filho. Não se trata, porém, de um relato destinado a satisfazer a curiosidade que grande parte das pessoas sente em relação aos comportamentos de uma pessoa autista.

O interesse de Paiva Junior é utilizar o caso de Giovani como ilustração para a necessidade que os pais têm de estarem atentos aos comportamentos de seus filhos a fim de que, caso haja a suspeita de autismo, o diagnóstico seja feito o mais precocemente possível para que se inicie imediatamente o tratamento.

Paiva Junior, ao longo de todo o livro, insiste no seguinte ponto: tanto pais quanto profissionais, ao perceberem qualquer sinal que possa indicar que a criança seja autista, não devem ficar na expectativa de que o tempo lhes vá trazer a confirmação da suspeita. Muitas vezes, o tempo de espera poderia ter sido utilizado para a concretização do tratamento caso o diagnóstico de autismo fosse efetivamente feito. Quanto mais precoce for a intervenção, maiores serão as chances de que os comprometimentos nas áreas de comunicação e socialização do indivíduo sejam minimizados.

Giovani, como o leitor pode notar ao longo do livro, não apresentava sinais muito evidentes de que fosse uma criança autista. Tanto é que uma pediatra a quem os pais foram consultar no início, disse que os comportamentos atípicos do garoto eram apenas traços de sua personalidade, que “aquele era o jeito dele”.

Se não fosse pelo insistente (e saudável) desejo do pai de compreender o que de fato se passava com seu filho, Giovani só teria sido diagnosticado com autismo muitos anos depois, quando muitos dos problemas já teriam se agravado. Paiva Junior e sua esposa buscaram a ajuda de um neuropediatra (que, inclusive, escreve o prefácio do livro) e dele obtiveram a resposta que tanto esperavam e que ao mesmo tempo temiam: o diagnóstico de autismo.

Aliás, a reação dos pais diante da confirmação do diagnóstico é outro ponto bastante enfatizado no livro. Paiva Junior, através de uma descrição íntima e direta da experiência que vivenciou com a esposa, mostra que a negação é a primeira resposta da maioria dos pais diante do diagnóstico de autismo. Muitos se recusam a acreditar no que ouvem do médico e, por conta disso, acabam procrastinando o início do tratamento. O que está em jogo é a perda da imagem do filho perfeito que todos os pais idealizam para seus descendentes e da qual muitos resistem a se desfazer.

O livro ainda traz os casos de outras crianças autistas e suas famílias, abordando a descoberta dos sinais, a confirmação do diagnóstico e a reação dos familiares. Tais relatos foram fornecidos por pais que faziam parte de listas de discussão sobre autismo na internet das quais Paiva Junior participa. O jornalista, aliás, tem contribuído ativamente para o processo de propagação de conhecimento acerca do autismo. Em 2010, criou a Revista Autismo, gratuita e sem fins lucrativos, que se dedica a disseminar informação sobre o transtorno, colaborando para a desconstrução das imagens preconceituosas ainda existentes sobre o indivíduo autista.

A M.BOOKS, editora responsável pela publicação do livro, disponibilizou um exemplar da obra para presentear um dos leitores. O escolhido será aquele que elaborar o comentário mais criativo e bem fundamentado acerca do tema AUTISMO. Sugestões: história do conceito de autismo; como o autismo tem sido visto pela psicologia e pela psicanálise; teorias sobre a causalidade do autismo; a inclusão do indivíduo autista na sociedade etc. A intenção é transformar o espaço de comentários em um pequeno mural de informações a respeito do tema. O dono do comentário mais criativo e bem fundamentado receberá o livro diretamente em sua casa. Não se esqueça de inserir seu nome completo e email.

Por que muitos adolescentes atravessam uma fase de excessiva timidez em relação ao sexo oposto?

Diferentemente do que insistem em dizer os médicos e psicólogos, de acordo com o saber psicanalítico (que, a propósito, é derivado da clínica), a adolescência não é o primeiro momento de manifestação da sexualidade.

Guerra e paz
Freud demonstrou que a sexualidade já se faz presente desde o nascimento e, sobretudo, nos primeiros cinco anos de vida se apresenta de modo bastante intenso. Nesse primeiro momento de irrupção da pulsão sexual, a libido circula predominantemente por zonas do corpo que estão mais diretamente ligadas às necessidades básicas do indivíduo, a saber: a boca e o ânus. É só na puberdade que os órgãos genitais irão adquirir proeminência como zonas de excitação sexual e, ainda assim, por uma necessária intervenção da cultura.

Nesse sentido, o período da adolescência testemunha um segundo movimento de expressão aguda da pulsão sexual. Entre mais ou menos os cinco ou seis anos de idade e a puberdade (por volta dos dez ou onze anos) estabelece-se um período que Freud chamou de “latência”, pois durante essa faixa de tempo a pulsão sexual estaria num período de relativa calmaria, permitindo ao sujeito internalizar de modo tranqüilo os ensinamentos morais e educacionais que lhe são impostas pelos pais e pela sociedade. Na adolescência, esse período de “trégua” da pulsão sexual é abruptamente desfeito e a sexualidade retoma suas armas com uma força tão grande que chega a assustar o jovem que, em função do período de latência, esquecera-se de que em seu corpo habitava tamanha volúpia.

“Por isso essa força estranha…”

Esse retorno súbito da pulsão sexual, sem aviso prévio, é um dos motivos que leva o adolescente a se sentir inadequado, desconfortável, envergonhado e, por conta disso, a refugiar-se, muitas vezes, numa atitude de isolamento e timidez. Ao ser tomado de assalto por aquela estranha força que curiosamente advém de si mesmo e que traz consigo uma série de alterações no corpo (pêlos, menstruação, crescimento dos seios etc.) o adolescente se sente como se estivesse o tempo todo nu. Isso ocorre porque a pulsão se manifesta de modo tão intenso que começa a parecer ameaçadora, de modo que a imagem egóica que o sujeito havia constituído até então para si torna-se frágil. A sensação de nudez perene é uma das formas possíveis de elaboração pela via da fantasia da da insegurança gerada por tais alterações subjetivas.

Fantasmas de amor

No entanto, um número grande de adolescentes experimenta um retraimento muito mais severo em relação ao sexo oposto e isso está ligado não tanto à segunda irrupção ameaçadora da pulsão sexual, mas à primeira. Explico: no advento da pulsão sexual na infância, dissemos que a libido está bastante fixada na boca e no ânus, que são zonas do corpo ligadas à satisfação de necessidades fisiológicas do indivíduo.

No entanto, para que o pequeno infante pudesse se satisfazer sexualmente a partir dessas zonas, outras pessoas tiveram que se fazer presentes na vida do bebê. Que pessoas são essas? A mãe, o pai e/ou outros que estivessem cuidando do bebê na época. Uma dessas outras pessoas forneceu o seio ou algum substituto para a satisfação da necessidade de alimentação e, ao mesmo tempo, estimulou a mucosa da boca do bebê fazendo com que ele obtivesse um prazer a mais, um prazer que não era o da saciedade por ter sido alimentado, mas um prazer ligado propriamente à estimulação da mucosa da boca, um prazer, portanto, sexual. Embora esse prazer fosse essencialmente autoerótico, ele passou a estar irremediavelmente ligado à pessoa que forneceu o objeto para que ele fosse sentido. Lembrando que essa pessoa geralmente é a mãe. O mesmo ocorre com o prazer ligado à satisfação da necessidade de excreção. Conquanto esse prazer, para ser sentido, independa de outra pessoa, afinal a estimulação do ânus é feita pelas próprias fezes, o pequeno animal civilizado humano depende de alguém que limpe seu bumbum, o que faz com que o prazer de defecar passe também a estar ligado a uma pessoa. Lembrando que geralmente quem faz a higiene do bebê é a mãe ou o pai.

O que quero dizer com tudo isso? Que na infância a pulsão sexual está geralmente associada a pessoas bastante específicas: os pais! Nesses primeiros momentos, tradicionalmente chamados de fase oral e fase anal, o sexo dos pais não é relevante, pois o mais importante é o prazer localizado que o bebê sente. No entanto, por volta dos cinco anos, a criança começa a se fazer perguntas acerca da diferença entre homem e mulher e, concomitantemente, a se interessar sexualmente e ter fantasias com o genitor do sexo oposto, iniciando uma relação de rivalidade com o genitor do mesmo sexo. Trata-se do que Freud chamou de “complexo de Édipo”.

Curiosamente, nesse trágico momento, em que as fantasias sexuais em relação ao genitor do sexo oposto começam a se intensificar, a pulsão sexual resolve proclamar trégua e se inicia o período de latência! Como a sexualidade, durante toda a latência, estará num estado de calmaria, o sujeito inevitavelmente recalcará (esquecer-se-á deliberadamente) a paixão que nutria pelo genitor do sexo oposto. Em outras palavras, na latência, a menina não mais se lembrará do seu sonho de casar-se com o papai e tampouco o garoto se recordará dos sonhos que nutria de ocupar o lugar do papai na cama da mamãe.

Quando chega a adolescência e a pulsão sexual novamente se levanta, para-além de ser invadido por tamanha força libidinal, o jovem se vê às voltas com um terrível impasse: por um lado, a cultura lhe diz que ele deve se engajar num processo de busca por alguém que seja ao mesmo tempo do sexo oposto e de fora do seu círculo familiar. Por outro, a retomada da pulsão sexual traz consigo os antigos objetos de amor dos tempos de criança, ou seja, os pais e, especialmente, o genitor do sexo oposto. A diferença é que agora o jovem já está com a proibição do incesto inculcada na sua cabeça, de modo que em vez de experimentar o intenso desejo sexual que nutria pelo genitor do sexo oposto aos cinco anos de idade, ele sente nojo, vergonha, dor psíquica. Ao mesmo tempo, e para desespero do adolescente, como o seu referencial de objeto de amor é o genitor do sexo oposto, toda vez que ele olha para alguém que lhe desperta desejo sexual o que ele vê é o genitor do sexo oposto, ou seja, incesto!

É óbvio que tudo isso não acontece de modo consciente. Portanto, não tente perguntar a nenhuma adolescente se ela fica vendo a imagem do pai em todo garoto pelo qual se interessa. Ela provavelmente lhe dirá que isso é ridículo e que se sente apenas insegura e com medo de levar um fora, mas sequer suspeitará que, por trás dessas racionalizações, há uma fantasia de incesto que ainda roda com bastante força em seu inconsciente. Não obstante, a clínica com sujeitos adolescentes (e adultos) demonstra que essa inferência é plenamente justificada.

Tente, todavia, fazer um exercício mental. Tente se imaginar no inconsciente de um jovem de 13 anos que está apaixonado por uma colega de sala. Você verá que toda vez que ele se imagina ao lado da garota surpreende-se ao constatar que quem de fato está ao seu lado é sua mãe! Ora, não seria natural que esse adolescente não conseguisse sequer se aproximar da jovem?

Pois é exatamente isso o que acontece com inúmeros adolescentes. Sua timidez não é oriunda da situação atual em si, ou seja, ele não é tímido porque teme não conseguir conquistar a garota. Essa é uma modalidade já adulta de timidez. O adolescente não consegue sequer cortejar a garota por que ainda é assombrado pela imagem daquela que na infância fora a rainha de seus sonhos, a mãe. No inconsciente do jovem, a libido ainda está bastante aferrada ao objeto primitivo materno, de sorte que ainda demorará algum tempo até que ele possa contar com uma conta suficiente de libido para investir em outro objeto sexual. Alguns, sequer com a passagem do tempo, conseguem se desvencilhar do fantasma materno. Encontrá-los-emos, provavelmente, no divã.

Quer saber mais sobre adolescência na perspectiva da psicanálise? Adquira agora mesmo, por apenas R$ 17,91, Adolescência – ato e atualidade, de Bianca Bergamo Savietto, que é doutora em Teoria Psicanalítica. Veja a sinopse do livro:

Esta obra, fruto de uma pesquisa de mestrado em Teoria Psicanalítica, pretende explorar o incremento do fenômeno das passagens ao ato entre os sujeitos adolescentes. Partimos de um breve estudo sobre a especificidade do trabalho psíquico demandado na adolescência, o qual serve de base para uma reflexão sobre a revivência da situação de desamparo. A partir dessa reflexão, tentamos mostrar como uma eventual convocação do corpo, sob a forma do ato, possui caráter de resposta extrema, à qual o ego pode apelar diante de uma vivência interna de transbordamento pulsional, aliada a um estado de fragilidade narcísica. Tais aspectos, de natureza metapsicológica e psicopatológica, são também articulados com peculiaridades do contexto em que vivem hoje os adolescentes ocidentais. Buscamos demonstrar o quanto a dimensão de desamparo, com toda sua complexidade, tem sido determinante no incremento do fenômeno das passagens ao ato na atualidade. A análise dessa questão é desenvolvida tendo como pano de fundo primordial o âmbito privado da família.

Megamente e as conseqüências de um ambiente falho (final)

Decepcionado por não ter conseguido conquistar Rosana, o herói artificial Titã resolve fazer exatamente o contrário do que lhe havia sido proposto por Megamente. Começa a aterrorizar Metrocity com uma crueldade que nem mesmo Megamente seria capaz de empregar.

A gênese da destrutividade em Titã

Essa mudança no comportamento de Titã evidencia mais uma vez o caráter reativo do mal e da agressividade, cuja intensidade é diretamente proporcional ao impacto das decepções vivenciadas pelo sujeito. Titã não age movido pela força de uma pulsão de morte exteriorizada, mas sim por uma dinâmica afetiva marcada pelos sentimentos de humilhação e desilusão decorrentes da interação com um ambiente que o frustrou. Ele poderia ter reagido de modo diferente, até mesmo não agressivo, caso não tivesse se sentido tão onipotente como se sentira ao saber dos poderes que havia adquirido. Ao se julgar capaz de conseguir tudo o que queria no momento em que se tornara um herói, o jovem Hal refugiou-se numa fantasia de onipotência que não o permitiu reconhecer a resistência que a realidade estabelece à realização de todo desejo.

Titã acreditara que se havia se tornado irresistível à repórter e ao ter seu desejo frustrado, o anti-herói acabou se dando conta do caráter fantasioso do seu sentimento de onipotência, constatação que o fez se sentir ameaçado. Afinal, se mesmo se tornando um herói, ele não era capaz de conquistar seu objeto de amor, isso significava que ele era essencialmente um incompetente, um fraco, enfim, todos os adjetivos com os quais seu supereu lhe caracterizara. Sentindo-se, portanto, humilhado e ameaçado pelas críticas superegóicas que, nesse momento, devem ter grassado, Titã percebe que a única forma de recuperar sua potência e repelir esse sentimento de humilhação é tornando-se agressivo, cruel e utilizando seus poderes para o mal.

Um herói artificial

Na outra ponta da história temos uma situação radicalmente diferente. Megamente, cuja vida afetiva outrora era bastante semelhante à atualmente experimentada por Titã, vivencia agora outra modalidade de relação com o mundo, um tipo de interação espontânea, não-agressiva, benevolente. Como vimos, essa transformação foi produzida pelo encontro com o amor e a acolhida sincera da repórter Rosana Rocha que, não obstante, ainda cria que se relacionava com o bibliotecário Bernard. Num dos encontros entre Megamente e a repórter, o ex-vilão deixa, sem querer, que Rosana o veja tal como é, ou seja, como um ET azul de cabeça grande. É mais um momento de decepção no filme, que faz com que a repórter encerre o encontro e vá para casa.

Megamente, no entanto, volta a procurar Rosana a fim de ir com ela até a antiga casa de Metroman com vistas a encontrar uma forma de parar Titã, o qual vinha fazendo da cidade um caos. A repórter concorda em ir com o ex-vilão e, na residência de Metroman, acabam se encontrando com o próprio de roupão e barba por fazer. O herói não havia morrido, mas apenas saído de cena e é a explicação sobre o que o levara a fazer isso que nos interessa aqui.

Metroman disse que estava se sentindo cansado de ter que enfrentar cotidianamente aquelas batalhas com Megamente e ter que sustentar aquele papel de “o salvador de Metrocity”. Tudo aquilo parecia não fazer mais sentido pra ele. Na verdade, o que fica claro é que, de fato, jamais fizera sentido, pois o que motivava as atitudes heróicas de Metroman não era o seu desejo de fazer o bem, mas as demandas do Outro que lhe reivindicaram desde a infância a assunção da identidade de herói. Nunca lhe perguntaram o que ele de fato gostaria de fazer da vida. O ambiente à sua volta escolheu seu destino à sua revelia, pressupondo que, pelo fato de apresentar superpoderes, ele devesse necessariamente tornar-se um herói.

É nessa parte do filme que nos damos conta de que tanto Megamente quanto o Sr. Perfeitinho foram formados em um ambiente falho, insuficientemente bom. No caso de Megamente, as falhas se manifestaram como hostilidade e ausência de acolhimento às suas potencialidades. Já no caso do Sr. Perfeitinho, a expressão da insuficiência do ambiente foi bem mais sutil. Com efeito, o garoto só recebia elogios, era adorado por todos à sua volta, não experimentando um minuto sequer de hostilidade. Por que, então, o ambiente foi falho?

As duas modalidades de falha ambiental

Tragamos Winnicott novamente à baila para nos ajudar a pensar acerca disso. Para Winnicott, o ambiente pode falhar na adaptação ao bebê de duas maneiras. Uma delas (é a que ocorreu no caso de Megamente) acontece quando o ambiente frustra precocemente as expectativas do bebê, não permitindo a ele estabelecer uma relação de confiabilidade com o mundo. O protótipo dessa interação é a mãe que só fornece o seio ao bebê após o momento em que o infans alucina a presença do seio à sua frente, ou seja, ocorre um desencontro entre a necessidade do bebê e a presença do objeto que satisfaria essa necessidade. Nesse estágio da vida da criança, tal desencontro não pode ocorrer, pois, para estabelecer uma relação de confiança com o ambiente, o bebê precisa experimentar a ilusão de que foi ele próprio quem criou o seio, ilusão que só pode ser vivenciada se o seio aparece no exato momento em que o bebê o deseja.

O outro ripo de falha ambiental possível ocorre quando o ambiente não deixa espaço para a manifestação espontânea do desejo do sujeito. Naquela situação modelar a que fizemos referência, essa falha se manifestaria pela apresentação do seio antes que o bebê sentisse a necessidade de mamar. Essa condição impossibilita a ilusão de onipotência da criança da mesma forma que a anterior. Se naquela o seio veio atrasado, nessa veio adiantado. De todo modo, não veio no tempo do bebê, ou seja, o ambiente não agiu de acordo com a espontaneidade da criança, mas sim de acordo com suas próprias demandas.

A conseqüência desse segundo tipo de falha ambiental é, como no primeiro, a criação de um falso-self. Todavia, enquanto no primeiro caso o falso-self é criado marcado pela reação agressiva à frustração perpetrada pelo ambiente e após uma cogitação prévia acerca do que ele espera do sujeito, no segundo caso as coisas se passam de forma um pouco diferente. As demandas ambientais já se presentificam no momento mesmo da falha. De fato, ao apresentar o seio antes que o bebê tivesse necessidade dele, o ambiente já está obrigando a criança se sujeitar a seu ritmo, isto é, à suas demandas. O bebê é forçado a trocar seu desejo espontâneo pelo desejo do ambiente e, em decorrência, adotar uma identidade artificial que agrade a esse ambiente. Junto com a espontaneidade, vai-se embora também a agressividade que não tem sequer ocasião de manifestar-se naturalmente, pois o ambiente não permite que o bebê apresente frustrações. Ao invadir a existência do bebê com um seio inesperado, é como se o ambiente dissesse à criança: “Não se preocupe, você não precisará nem mesmo sentir a necessidade do seio. Ele estará aqui o tempo todo. Mame-o”.

Ora, a infância do Sr. Perfeitinho não fora basicamente assim? Empanturrado com as demandas à sua volta que o solicitavam a demonstrar seus incríveis superpoderes e, posteriormente, a utilizá-los no combate ao mal, Metroman jamais teve a oportunidade de expressar-se espontaneamente, de fazer o que verdadeiramente desejava. Aquele que todos aclamavam como herói, possuía, na verdade, pretensões muito mais modestas. Queria fazer o que todo cidadão comum faz e, além disso, tornar-se cantor de rock, mesmo que não tivesse lá muito talento para isso…

O herói Megamente

Conquanto tenham ouvido Metroman dizer isso com toda a clareza, Megamente e Rosana continuam fazendo o papel de ambiente falho para o agora ex-herói, pedindo insistentemente a ele que vá até a cidade para vencer o Titã. Felizmente, para sua saúde, Metroman recusa-se a submeter-se novamente às demandas do Outro, atitude que tem um efeito terapêutico duplo, pois leva Megamente a encontrar-se com sua verdadeira vocação, que é a de herói! É nesse momento que o ET azul abandona de vez a identidade de vilão, indo combater Titã. Após algumas reviravoltas, Megamente finalmente consegue recuperar o aparelho capaz de retirar daquele a essência de herói, transformando-o novamente no tímido câmera Hal. Megamente é, então, aclamado por toda Metrocity como o novo herói da cidade e recebe, por tabela, o amor de Rosana.

Concluindo

“Megamente” se apresenta como uma ilustração riquíssima dos modos singulares de manifestação de um espectro psicopatológico que afeta essa dimensão essencial da experiência humana à qual denominamos de identidade. No centro do palco temos um sujeito cuja experiência de ser de modo autêntico é perturbada pela hostilidade e rejeição que recebe quando criança e que se reage a essa frustração ambiental tornando-se destrutivo. Do outro lado, temos um herói artificialmente construído pelas demandas à sua volta e que, de fato, nunca quis ocupar essa função, mas tivera que fazê-lo à força, pois não fora respeitado em sua espontaneidade.

Ao final do filme ambos encontram seu verdadeiro destino e exibem aquela alegria que brota naturalmente no corpo daquele que sente que a vida faz sentido e que sentem aquela experiência que Winnicott descobriu ser a mais fundamental e imprescindível na vida de qualquer indivíduo, que é a experiência de continuidade do ser. De fato, Megamente e Metroman só conseguem resgatar essa experiência que neles sofrera interrupção na infância quando o falso-self de ambos perde a consistência e dá lugar ao verdadeiro self. Em Megamente isso aconteceu a partir da interação com um ambiente acolhedor, espontâneo e interessado representado pela repórter. Já com Metroman, a transformação ocorreu como o fruto de uma decisão corajosa, motivada pelo cansaço da identidade artificial.

Megamente e as conseqüências de um ambiente falho (parte 2)

Após assumir definitivamente a identidade de vilão, a única possível de adotar dentro do contexto hostil em que vivia, Megamente passa a travar grandiosas batalhas com o outrora Sr. Perfeitinho e agora herói da cidade, Metroman. O vilão cresce tendo tais lutas como sua principal ocupação.

Fama de mau

O acontecimento principal do filme, que deflagrará as condições em que se dará o desfecho da narrativa, é o último combate entre Megamente e Metroman. Nessa ocasião, fica evidente aos olhos do espectador que a identidade de vilão em Megamente é uma construção fundamentalmente artificial (falso-self) que não corresponde àquilo que o personagem de fato é em sua dimensão mais íntima. Com efeito, é impossível não notar o modo afetado com o qual Megamente expressa sua suposta maldade. Age como se de fato estivesse encarnando um personagem. Fica notório o fato de que, metaforicamente, está trajando uma vestimenta prêt-à-porter. Além disso, volta e meia Megamente mostra sinais de fragilidade e surtos de infantilismos (como os freqüentes erros nas pronúncias das palavras) que deixam bastante claro sua condição de imaturidade e do uso da identidade de vilão como defesa.

Em outras palavras, Megamente aí se apresenta como um ser que se sente permanentemente ameaçado e que precisa fazer uso da “fama de mau” para conseguir suprimir essa sensação de desamparo e medo. Demonstrei anteriormente que são justamente esses os sentimentos que, despertados precocemente no sujeito pelas falhas ambientais, suscitam a formação de um falso-self, na medida em que o self verdadeiro não foi suficientemente fortalecido para lidar com eles.

Sem Metroman, sem Megamente

Dissemos que se trata da última batalha entre Megamente e Metroman porque esse último morre no combate, ou melhor, finge que morre, como veremos adiante. Por ora, sigamos a sequência do filme e nos coloquemos na posição do espectador incauto que ainda não sabe os acontecimentos posteriores da história. Pois bem, a princípio, Metroman é considerado como morto, o que faz de Megamente o novo “dono” de Metrocity já que não haveria outra pessoa além do herói capaz de lutar contra ele.

Logo que se dá conta da suposta vitória, Megamente comemora o “feito” e passa a gozar a nova vida de “manda-chuva” da cidade. No entanto, gradualmente vai-se abatendo sofre ele uma profunda melancolia, cujas razões o próprio vilão explica a seu fiel companheiro, o peixe “Criado”, que não conseguia entender o porquê daquele estado. Megamente queixa-se de que sua vida perdera o sentido depois que ele havia “vencido” a batalha. Não havia mais ninguém com quem lutar e lutar contra Metroman era a única coisa que ele vinha fazendo ao longo de toda a sua vida.

Temos aqui a ilustração perfeita do momento em que o falso-self é colocado em xeque. Com efeito, a identidade falsificada é criada com a função doentia de servir como a máscara que o sujeito utiliza para se adaptar a mundo hostil, caótico e falho. Quando o mundo em questão, ou seja, o mundo que demandou do sujeito o forjamento de um falso-self, desaparece, esse perde a sua consistência, pois não fora uma identidade criada espontaneamente, baseada na experiência psicossomática autêntica do sujeito, mas sim por oposição a algo. Nesse sentido, para existir, o falso-self precisa de um ambiente ameaçador e desfavorável, o que coloca o sujeito na situação de só saber reconhecer quem é por oposição a outrem. É essa a problemática de Megamente.

Não obstante, diferentemente do que poderíamos pensar à primeira vista, a vacilação, isto é, a perda de consistência do falso-self, expressa frequentemente através de estados depressivos, como o que viveu Megamente, não é ruim para o sujeito. Pelo contrário: a tristeza que se abate sobre o personagem é justamente o elemento que propiciará uma mudança em sua existência e o reencontro com sua espontaneidade perdida na infância.

O último suspiro do falso-self

Isso, todavia, não acontece de imediato. O falso-self de vilão é tão forte e necessário para Megamente que, a princípio, o personagem tenta mantê-lo através da criação artificial de um novo herói para a cidade. Com esse intuito, Megamente extrai das caspas recolhidas de Metroman uma espécie de “essência do herói” com vistas a inoculá-la em algum homem a fim de fazer do sujeito escolhido o novo herói, contra o qual o vilão pudesse duelar. Entretanto, a essência acaba sendo introduzida por acaso no assistente da repórter Rosana Rocha que Megamente geralmente seqüestrava para atrair a atenção de Metroman.

O sujeito em questão trata-se de Hal, um jovem gordo, tímido e imaturo que nutre uma paixão secreta pela repórter. Ao se aperceber forte e com superpoderes devido à injeção da essência de Metroman, o jovem coloca para fora os traços de personalidade que se lhe encontravam latentes e transforma-se curiosamente na antítese de um herói: egoísta, irresponsável e narcisista. Descobre-se, então, que Hal alimentava forte inveja de Metroman, julgando que sua colega estava interessada no herói. Por conta disso, supõe que, por tornar-se herói, adquirira os requisitos suficientes para conquistar Rosana – o que não acontece. Essa é sua primeira decepção. A segunda é relacionada a Megamente. Quando o vilão descobrira que a essência do herói havia sido inoculada no assistente da repórter, Megamente se transformara em um velho sábio e dissera ser o “pai espacial” do novo herói, ao qual dá o “criativo” nome de Titã. Quando Hal descobre que, na verdade, o suposto “pai espacial” era Megamente, sente-se novamente decepcionado. Essa decepção aliada à primeira concernente ao amor da repórter leva Titã a tornar-se mau. A cidade passa, então, a ter dois vilões: Megamente e Titã.

Múltiplas personalidades

Antes de prosseguir com os acontecimentos que levarão ao desfecho da história, gostaria de comentar essa capacidade de Megamente de assumir a identidade de quem quisesse de maneira mágica. Trata-se de um traço colocado no personagem que revela mais uma vez o significativo conhecimento psicológico do autor da película. De fato, essa habilidade de se transformar em qualquer pessoa aponta mais uma vez para a problemática central de Megamente e que diz respeito à sua identidade. A facilidade em se comportar de acordo com as exigências do ambiente ou, em outras palavras, em trocar o agir espontâneo pelas respostas às demandas do Outro é uma característica particularmente interessante do falso-self. Por não construir sua identidade sobre a rocha da espontaneidade, o indivíduo que forja um falso-self passa a assumir diferentes identidades de acordo com o ambiente em que se encontra. Trata-se de um verdadeiro camaleão que existe unicamente para se adaptar às cores dos ambientes pelos quais passeia, sem um eixo irredutível que expresse sua singularidade, que o diferencie da massa. Na experiência analítica, é preciso que o analista tome cuidado para não contribuir para o reforço de um falso-self, pois pacientes nessa condição frequentemente adotam uma postura de submissão que pode ser aparentemente agradável ao terapeuta e acabar sendo confundida com a velha “transferência positiva”.

O advento do verdadeiro self     

Numa dessas várias transformações, Megamente acaba assumindo a identidade de um funcionário do museu dedicado a Metroman chamado Bernard, um jovem intelectual. Aos poucos, Rosana começa a se apaixonar por Bernard, isto é, por Megamente se passando por Bernard, de modo que o vilão passa a experimentar pela primeira vez na vida o amor sincero de alguém por ele. Megamente sente, então, o primeiro contato com um ambiente acolhedor, afetuoso, não-hostil, representado pela figura da repórter. Nessa passagem do filme, podemos observar com nitidez a proposta winnicottiana de que nós nos constituímos a partir da interação entre nossas potencialidades inatas e o ambiente. O ambiente acolhedor proporcionado pela repórter extrai de Megamente (ainda disfarçado na imagem de Bernard) toda a espontaneidade que o vilão teve que “recalcar” em função da hostilidade do ambiente se sua infância. Na pele de Bernard, Megamente não é reativamente desagradável nem manifesta qualquer tipo de comportamento afetado, como anteriormente. Pelo contrário, conversa com naturalidade, sente-se bem e até provoca alegria em Rosana.

Poderíamos fazer uma analogia entre a atitude da repórter em relação a Megamente e a postura adotado pelo analista diante de um paciente massacrado por um falso-self. Conquanto a repórter estivesse enganada quanto à pessoa com quem de fato estava se relacionando, sua atitude de acolhimento em relação a Megamente foi o elemento que permitiu ao personagem prescindir da sua identidade de vilão e passar a agir com espontaneidade. Em outras palavras, Megamente tornou-se “do bem” quando encontrou um ambiente que o permitiu ser assim, que não o obrigou a adotar uma máscara “do mal” para sobreviver. Essa dinâmica é semelhante àquela que acontece na relação entre o analista e uma analisando encarcerado nas jaulas do falso-self. É óbvio que o terapeuta não tem que se apaixonar pelo paciente para permitir a ele ser espontâneo. A função do analista é produzir um ambiente de acolhimento autêntico e adaptado às necessidades do paciente. Num ambiente dessa natureza, o falso-self perde sua função, pois o paciente não será obrigado a reagir nem a criar uma personalidade alienígena para se adaptar, pois é o ambiente quem se adaptará a ele. Winnicott dizia que o falso-self era uma crosta criada pelo sujeito para proteger seu fragilizado verdadeiro self que não pôde se atualizar pela hostilidade do ambiente. Numa análise bem feita, essa função se torna supérflua.

No próximo post, o último desta série, abordarei o destino e a personalidade de Metroman, personagem que, como veremos não era tão diferente de seu adversário, Megamente. Será a ocasião propícia para apresentarmos as conclusões gerais a que o filme nos leva do ponto de vista da psicanálise.

Megamente e as conseqüências de um ambiente falho (parte 1)

Muitas produções cinematográficas dirigidas ao público infantil buscam proporcionar às crianças o acesso a algum ensinamento ético mais do que meramente entretê-las com animações coloridas e engraçadas. Inspiram-se, para tanto, nos tradicionais contos de fada que sempre traziam de maneira mais ou menos explícita a chamada “moral da história”. Esse é o caso da animação “Megamente” produzida pela Dreamworks. No entanto, não pretendo abordar neste texto a sabedoria subjacente ao filme – ainda que eu o pudesse, pois o filme é, de fato, prenhe em ensinamentos – mas a riqueza psicológica que nele se faz presente. Farei, portanto, uma análise psicanalítica da película à moda das que proliferavam fartamente nas primeiras décadas de existência da psicanálise.

O ideal seria que todos os leitores assistissem ao filme antes de lerem este texto. Todavia, como sei que isso não acontecerá, procurarei fazer minhas considerações teóricas ao mesmo tempo em que conto o desenrolar da animação.

Megamente e Sr. Perfeitinho

A história se inicia com Megamente, um extraterrestre azul, sendo enviado por seus pais, ainda bebê, para fora de seu planeta de origem, o qual estaria em risco. No trajeto, Megamente encontra outro bebê, que ele chama de Sr. Perfeitinho. Ambos aterrissam na Terra. O Sr. Perfeitinho será criado por uma família normal do interior e Megamente por presidiários, pois acabara indo parar numa prisão. Numa leitura psicanalítica apressada, poderíamos pensar aqui que Megamente havia sido colocado em um ambiente falho ao passo que Sr. Perfeitinho havia ido parar num ambiente suficientemente bom. Adiante veremos porque essa interpretação não é adequada.

Megamente e Sr. Perfeitinho estudam numa mesma escola, mas experimentam dois tipos distintos de relação com o ambiente. Enquanto Sr. Perfeitinho recebe elogios pela exibição de seus superpoderes como a capacidade de voar, Megamente é desprezado e rejeitado por seus professores e colegas por ser desajeitado e não conseguir realizar adequadamente tarefas que demandam habilidades físicas. Não obstante, Megamente possui uma aptidão intelectual muito acima da média de seus colegas (o que é indicado pelo seu nome-próprio e por sua enorme cabeça). Com tamanha inteligência, o jovem ET azul era capaz de bolar os mais mirabolantes planos para se vingar dos que o haviam repudiado. Ao se dar de seu potencial e do uso que faz dele, Megamente chega a uma surpreendente conclusão sofística: se ele possui aquela incrível capacidade para pensar e se o que ele só consegue pensar é em modos pelos quais pode retaliar seu ambiente, logo aquilo para o qual ele tem mais talento é… ser mau! A partir daí, Megamente se tornará o grande vilão da cidade (Metrocity) e terá como opositor justamente o Sr. Perfeitinho que se tornará o herói Metroman.

O vilão Megamente como falso-self

Como eu já disse em outro texto, do ponto de vista winnicottiano, ninguém é mal espontaneamente, em virtude da atuação de uma suposta pulsão de morte. Para Winnicott, o mal é sempre reativo e se apresenta como a única saída encontrada pelo sujeito para defender-se contra uma ameaça à sua continuidade do ser perpetrada por uma falha ambiental. No caso de Megamente essa tese é confirmada com clareza. Ele se torna vilão como uma reação a um ambiente que não o acolheu, que o rejeitou.

O fato de o personagem ser intelectualmente superdotado é uma daquelas coincidências que costumam levar nós, psicanalistas, a supor que os artistas possuem um conhecimento intuitivo das realidades psíquicas. Com efeito, ao conceber Megamente como um indivíduo altamente inteligente, mas pouco habilidoso em tarefas que exigem desempenho corporal, o autor do filme retratou com exímia fidelidade algumas descobertas winnicottianas. Com efeito, Winnicott notou a partir de sua experiência com adultos e bebês que quando o ambiente no qual a criança está se constituindo falha tanto a ponto de impedir que o sujeito faça as pequenas correções naturais que o permitem continuar tendo um desenvolvimento saudável, o bebê é obrigado a substituir sua espontaneidade por uma atitude artificial criada unicamente para se adaptar ao ambiente caótico em que se encontra. Nesse sentido, a lógica natural é invertida: em vez do ambiente se adaptar ao bebê, é o bebê quem tem que se adaptar ao ambiente. A essa atitude artificial, Winnicott chamou de “falso-self”. No caso de Megamente, o falso-self é ilustrado por sua identidade de vilão, que é criada por ele não espontaneamente, mas com a finalidade de se adaptar àquele ambiente que não o amava como ele naturalmente era.

Mega-mente sem vida

Winnicott diz que, em muitos casos, a criação do falso-self vem acompanhada de uma exacerbação da atividade mental. O leitor que já leu meus textos sobre Winnicott aqui no blog sabe que o psicanalista inglês faz uma diferenciação entre psique e mente. Psique é a elaboração imaginativa que nós fazemos da nossa experiência corporal. Mente é a função que utilizamos para entender o mundo. E só precisamos entender o mundo porque ele nem sempre está de acordo com nossas expectativas, ou seja, porque o mundo falha em se adaptar a nós. Não obstante, no início da vida, o nosso mundo é bastante reduzido, trata-se apenas da mãe ou de quem quer que esteja cuidando de nós. Porém, nesse período inicial nós precisaríamos que esse mundo não falhasse ou falhasse pouquíssimo, pois assim poderíamos utilizar a função mental apenas quando fosse estritamente necessário e essa função estaria conectada com o todo de nossa experiência psicossomática. Se o ambiente falhar muito, o que acontecerá? Nós teremos que utilizar a mente muito mais do que deveríamos naquele momento para entender aquele excesso de falhas. Isso fará com que a mente adquira um funcionamento independente do restante da nossa experiência com o mundo. Ficaremos mais inteligentes, intelectualizados, mas a função mental não estará integrada à nossa vida como um todo.

Em Megamente, essa dinâmica fica bastante explícita: o personagem, apesar de ser bastante inteligente, é um desastre em habilidades que demandem o engajamento do corpo. Esse desajeitamento evidencia a fragilidade do vínculo entre psique e soma, fragilidade que, para Winnicott, caracteriza a falha do ambiente em sustentar a tarefa de personalização. Nesses casos, é bastante comum o indivíduo tentar escapar à angústia gerada por essa falha ambiental se refugiando na função mental. No filme, isso também aparece de maneira clara quando Megamente aparece fazendo invenções e criando pequenas máquinas, enquanto as outras crianças estão simplesmente brincando, vivendo e experimentando o ambiente de modo natural. Temos, portanto, nesse personagem, uma precisa ilustração de um falso-self com a função mental artificial e exageradamente desenvolvida bem como desvinculada da experiência efetiva com o mundo.

Como ainda resta uma série de outros aspectos relevantes do filme para serem analisados e eu não quero cansar o leitor com uma exposição muito longa, continuarei o texto na semana que vem.

Winnicott e o cristianismo III – a confiança no ambiente e a fé

De acordo com Winnicott, uma das condições básicas para um desenvolvimento psíquico saudável é a capacidade do sujeito de sentir confiança no ambiente. Por ambiente entenda-se o mundo e suas peculiaridades, ou seja, tanto o relacionamento com outras pessoas quanto com as coisas. Faz parte do ambiente também o que concebemos como nosso passado e nossas expectativas quanto ao futuro. Enfim, pode-se considerar o ambiente como a própria experiência de existir no mundo. E, para Winnicott, tal experiência tem que estar fundada numa confiança fundamental. Por quê? Ora, porque só estando dotado de uma confiabilidade na existência (ambiente) é que o sujeito poderá ser capaz de experimentar acontecimentos que lhe causam desprazer e apreensão, ou seja, acontecimentos que não correspondem a suas expectativas sem considerar que sua própria existência está em perigo. Em outras palavras, a confiabilidade dá condições para que o sujeito, diante das vicissitudes desagradáveis da vida, não se desespere. Por outro lado, é também essa confiança que permite ao sujeito se sentir relativamente feliz sem a necessidade de objetos e estímulos externos que lhe dêem prazer. Com efeito, a busca constante e compulsiva de coisas externas que nos proporcionem alegria, só revela o quanto estamos na dependência do mundo externo e não somos capazes de fruir felicidade a partir de nós próprios. Portanto, podemos dizer que a confiança no ambiente possibilita não só conseguir enfrentar as decepções sem desesperar quanto não ficar submetido às flutuações do mundo para se sentir feliz.

Vejamos agora como se produz essa confiança básica no sujeito. Como bem sabemos pelos posts anteriores, o foco maior de Winnicott é o bebê recém-nascido e é justamente nesses primeiros momentos após o nascimento que o analista inglês encontra as raízes da confiabilidade. Segundo Winnicott, a confiança (trust) é resultante da criação de um objeto bom na realidade psíquica do bebê. Caros leitores, prestem bastante atenção no que vou dizer sobre o “objeto interno bom”, pois será essencial na nossa analogia com o cristianismo.

Esse objeto bom que precisa existir no psiquismo do bebê é uma espécie de construção imaginária baseada nas experiências da criança com uma mãe suficientemente boa. Como vimos, essa mãe (que, repito, é a mais comum) é aquela que consegue atender às necessidades do bebê, ou seja, é aquela que fornece a contrapartida ambiental necessária para o desenvolvimento das tendências inatas do bebê.

Logo no início da vida, até por volta dos seis meses de vida, a mãe boa o bastante fornece um tipo de configuração ambiental para a criança na qual essa ainda não consegue reconhecer um mundo para-além dela. É como se o bebê, nesse momento, vivesse num mundo de faz-de-conta onde todos os seus desejos são atendidos. E isso acontece justamente porque quando a criança sente fome ou sede a mãe já aparece com o seio para lhe dar leite. É justamente por isso que a criança não tem consciência de que existe um mundo externo a ela, pois basta que ela sinta a necessidade de algo que esse algo aparece. Ela tem a impressão de que foi ela própria quem criou o objeto que a satisfaz. O que acontece com quem acredita que é onipotente, que pode criar coisas pela força de seu pensamento? Óbvio: sente-se confiante.

Gradualmente, o bebê sai desse estado e vai tomando consciência do mundo externo. Isso acontece justamente em função das pequenas falhas da mãe – como a demora ao fornecer alimento – que sinalizam pra criança que não é ela quem cria o objeto, mas que é o ambiente que lhe fornece. Todavia, o bebê só vai ser capaz de lidar com essas pequenas – e necessárias – falhas maternas sem se desesperar se tiver passado por aquela fase inicial em que tudo era sonho. Assim, é como se o bebê pensasse: “Ah, naquela época era só eu pensar que a coisa aparecia, agora não vai ser diferente. Pode até demorar um pouco, mas virá.”. Ela confia, portanto, na eficácia do ambiente.

Se a mãe for boa o suficiente, suas falhas não serão tão freqüentes ou tão intensas ao ponto de fazer com que o bebê ponha em questão a capacidade dela de fornecer o objeto de satisfação e, aí sim, considere que sua existência está ameaçada. Pelo contrário, ela falhará apenas o suficiente para que o bebê não se considere como onipotente e reconheça a realidade de um mundo para-além dele. Todavia, continuará gratificando o bebê. E é justamente essa repetição de gratificações o que fará com que o bebê construa em sua realidade psíquica a idéia de um objeto bom para onde se refugiar caso as coisas fiquem ruins. A partir de então, é como se o sujeito nunca mais se visse sozinho, pois “ainda se vier noites traiçoeiras e se a cruz pesada for” (como diz o poeta) ele sabe que poderá contar com esse objeto interno dentro de si, o que nada mais é, que a fé num ambiente que um dia não lhe desamparou.

Creio eu que os leitores mais perspicazes já perceberam as analogias com a fé cristã. Não lhes parece bem semelhante à fase de dependência absoluta do bebê, em que tudo parecia o sonho, em que seus desejos eram todos atendidos, o período da existência de Jesus na Terra? A própria descrição de Jesus a João batista deixa clara a analogia: “[…] os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a Boa Notícia é anunciada aos pobres.” (Cf. Lc 7, 22). Da mesma forma como as necessidades do bebê eram plenamente satisfeitas pela mãe, assim também as doenças do povo judeu eram curadas por Jesus, o que, num sentido mais profundo, corresponde ao atendimento feito pelo Cristo de uma verdadeira necessidade daquele povo (e de toda a humanidade) que era a libertação do pecado.

Vocês se lembram de que nesse momento de sonho da vida do bebê, ele se sentia onipotente porque tinha a impressão de que era ele próprio quem criava o seio que o alimentava. Na verdade, era a mãe que lhe dava o seio no exato momento em que ele o queria. Jesus, em alguns momentos, faz um papel bastante análogo ao da mãe que permite ao bebê se sentir onipotente. Para muitas pessoas que curou ele dizia: “A sua fé te curou”. Com isso Jesus estava dando um ensinamento importantíssimo que, infelizmente, a cristandade esqueceu. O Filho de Deus estava dizendo que a única coisa necessária para ser salvo (salvação que ali era personificada na cura da doença) era ter fé de que Deus era capaz de fazer aquilo. Nos termos de Winnicott, seria dizer que o essencial para que a criança recebesse o seio pelo qual ansiava não era o comportamento da criança, não era o fato de ela ser uma criança boazinha. Pois a mãe suficientemente boa não fornece a sustentação em função de como a criança se comporta. Pouco importa se a criança é chata ou educadinha. A maior preocupação (que nem chega a ser uma preocupação de fato, pois que é algo natural) dessa mãe é fornecer um ambiente suficiente para que o bebê possa se constituir como um indivíduo. Ela se interessa pela vida da criança.

Assim também Deus não nos exige que sejamos perfeitos para sermos dignos da salvação operada em Jesus. Ele, como uma mãe suficientemente boa, está interessado na nossa vida. Ele quer resgatar o máximo de vidas que puder da prisão do pecado. E essa salvação, como bem elaborou o apóstolo Paulo, é graça. Ganhar algo de graça é o mesmo que dizer que não se fez nada para ganhá-lo que foi puro dom de quem deu. Ora, não é assim também que faz a mãe com seu bebê? Ela vem de encontro no exato momento e espaço em que o bebê demanda o seio. Assim também Deus nos entregou seu Filho no momento certo para atender a nossa demanda de sermos libertos da prisão do pecado. E assim como a mãe faz o que faz naturalmente, por amor a seu filho, assim também Deus nos salvou gratuitamente, por amor.

E a fé? Pois bem, acabei falando mais da graça do que da fé, talvez porque tais coisas sejam indissociáveis. Pois, assim como o bebê só consegue ter confiança na existência e enfrentar as intempéries do mundo sem se abalar, sem desespero, se tiver experimentado um ambiente suficientemente bom, cujas falhas só o tornaram mais maduro, mas não foram capazes de fazê-lo se sentir em perigo, assim também o cristão só terá fé ao entregar-se à graça de Deus. Com efeito, ao entregar-se assim, o cristão é capaz de experimentar retroativamente o que sentiram os contemporâneos de Jesus, ou seja, a chegada do Reino de Deus e o perdão dos pecados.

Na entrega de si à graça, o cristão experimenta-se imerso numa plenitude tamanha que todos os acontecimentos externos, sejam alegres ou tristes, se apequenam. Ele não é mais submisso ao fluxo da vida visto que a casa de sua existência está fundada sobre a rocha que é o Cristo. Nesse sentido, podemos compreender o objeto interno bom de Winnicott como tendo um sentido análogo ao de Cristo para o cristão, pois o objeto bom é o porto seguro do qual o bebê se lembra quando o ambiente não corresponde a suas expectativas. Da mesma forma, Cristo é o fundamento que permite ao cristão caminhar ainda que “pelo vale tenebroso” e “não temer mal algum”. E, da mesma que é objeto interno bom que permite que o bebê se sinta contente mesmo na ausência de estímulos externos, é Cristo a fonte da felicidade do cristão, que faz com que ele não precise recorrer a prazeres efêmeros para se sentir alegre.

Tudo isso só evidencia que Winnicott, ao contrário de Freud, concebeu um modelo de sujeito que comporta o cristão verdadeiro, visto que, assim como para Winnicott o sujeito não se constitui de forma saudável sem a presença de um ambiente suficientemente bom que lhe faz sentir segurança e confiança na existência, também o cristianismo não concebe que o homem possa ser salvo por si só, sem a graça de Deus – fonte da fé.

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Uma linguagem esquecida

24hoochUm ônibus é um lugar extremamente produtivo para sujeitos que, como eu, ainda são capazes de surpreender com as desventuras dos Homo sapiens e, mais ainda, quando essas desventuras são postas em palavras. Ontem mesmo, estava eu num ônibus quando minha atenção foi atraída por uma conversa entre uma simplória mãe e sua filha, a qual devia ter cerca de 2 ou 3 anos de idade. A conversa se dava sob os olhos do pai da garota que parecia, tal como eu, apenas contemplar a cena.

Lembro-me apenas de um fragmento da conversa pois rapidamente minhas próprias reflexões a substituíram em minha consciência. Dizia a mãe para a garota:

– Não é calor, minha filha. É frio. Você deve estar sentindo frio.

E olhando para o pai:

– Ela sempre troca as palavras. Diz “Apaga a luz” quando quer pedir para acendê-la.

Esse espetáculo cativante de uma mãe introduzindo sua filha no mundo propriamente humano, isto é, no mundo da linguagem, me trouxe à mente um texto de Freud que eu recentemente reli. Chama-se “A significação antitética das palavras primitivas” e pode ser encontrado no volume XI da Standard Edition.

Nesse artigo, escrito em 1910, Freud se propõe a comentar um panfleto de um filólogo chamado Karl Abel que trata exatamente de um curioso fenômeno lingüístico: a utilização de uma mesma palavra para denotar significados opostos. Alguns exemplos que Abel cita são as palavras latinas sacer que significa, ao mesmo tempo, sagrado e maldito e altus, alto e profundo.

A explicação de Abel, que mais tarde viria a servir de mote para o grande lingüista Ferdinand de Saussure que,por sua vez, influenciaria Lacan, é de que não só a significação mas a própria existência de uma palavra só é possível através da oposição a uma outra. Por exemplo, só tivemos necessidade de criar uma palavra para definir a luz por causa da existência de um estado sem luz, isto é, a escuridão. Assim, as palavras são criadas sempre aos pares: dentro-fora, claro-escuro, bonito-feio.

O que as línguas antigas faziam era uma espécie de economia de palavras: uma vez que para saber o que era bonito dever-se-ia ter em mente o feio, poder-se-ia utilizar apenas uma palavra para se referir a ambos.

Mas o que tudo isso tem a ver com a Psicanálise? Muito. Freud resolve comentar o texto de Abel efetivamente porque percebe que o inconsciente, na medida em que, como Lacan disse, ele é estruturado como uma linguagem, o inconsciente pode fazer uso desse mecanismo lingüístico para se fazer presente.

É assim, por exemplo, que a gente pode sonhar que está abrindo a porta de casa quando na verdade, nosso desejo é fechá-la. Na medida em que abrir e fechar só podem existir por oposição um ao outro, o inconsciente toma liberdade de usar um para esconder o outro.

Portanto, nossa garotinha do ônibus estava dando uma aula para a mãe sobre o funcionamento da linguagem. Mas a mãe, como todo mundo, já havia esquecido dessa linguagem primeira. E, logo logo, a filha também o fará.

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Winnicott e o Samba

winnicott20et20enfant1Em 1951, o psicanalista e pediatra Donald Woods Winnicott (cuja obra completa você pode baixar na seção Presentes) escreve um artigo para relatar algumas curiosas observações que vinha fazendo com crianças. Winnicott notou que a imensa maioria das crianças em determinado período da infância escolhia um objeto (na maioria das vezes, um ursinho de pelúcia, uma chupeta, uma fralda), carregava esse objeto pra tudo quanto é canto (em especial pra cama na hora de dormir) e não permitia que ele fosse lavado. Quando não era um objeto o bibelô, a criança elegia um determinado comportamento (como emitir um mesmo som), o qual era constantemente repetido (principalmente na hora de dormir).

Winnicott descobre que a fase em que a criança começa a fazer isso é justamente a fase em que ela está começando a se tornar independente e não necessita o tempo todo da presença da mãe. O psicanalista conclui então que a função desses objetos e comportamentos é fazer a transição entrea fase em que a criança dependia da mãe pra tudo e a etapa em que ela está adquirindo independência. Por isso, Winnicott denomina-os de “objetos e fenômenos transicionais” que é também o nome do artigo de 1951.

Assim, os objetos e fenômenos transicionais são como substitutos imaginários da mãe (por isso são tão importantes na hora de dormir- hora em que a criança fica mais tempo longe da mãe). Acontece que a gente não cura essa “saudade” da mãe e do conforto que era estar junto com ela nunca. E aí, já adultos, não temos mais a fralda ou a chupeta para nos consolar, mas temos as músicas, por exemplo. Quer ver como isso é verdade?

Leia a letra da música “Esta Melodia”, de Bubu da Portela e Jamelão e veja se não é a descrição certinha de tudo o que eu falei acima:

“Eu tinha esperança que um dia ela voltasse
Para a minha companhia
Deus deu resignação
Ao meu pobre coração
Não suporto mais tua ausência,
Já pedi a Deus paciência

Quando vem rompendo o dia
Eu me levanto, começo logo a cantar
Esta doce melodia que me faz lembrar
Daquelas lindas noites de luar
Eu tinha um alguém sempre a me esperar
Desde o dia em que ela foi embora
Eu guardo esta canção na memória
Desde o dia em que ela foi embora
Eu guardo esta canção na memória”

SERVIÇOS:

Ouça “Esta Melodia” na voz de Marisa Monte e a Velha Guarda da Portela:

73973Para saber mais sobre as teorias de Winnicott, adquira o livro “Da Pediatria à Psicanálise”, que conta com os principais artigos do autor. Clique no link abaixo e digite o título do livro na busca.