Por que Winnicott não aderiu ao conceito de pulsão de morte? (parte 1)

A partir de 1920, com a publicação do livrinho chamado “Para-além do princípio do prazer”, Freud introduz, ainda que, naquele momento, de modo meramente especulativo, um novo conceito ao edifício teórico da Psicanálise. De acordo com o médico vienense, tal conceito poderia servir como ferramenta de explicação de uma série de fenômenos com os quais vinha se deparando recentemente. Freud deu a ele o nome de pulsão de morte, o qual já foi explicado aqui mesmo no blog. Mas para aqueles que não querem ter o trabalho de ir até o link e ler toda a explicação, farei aqui uma breve síntese acerca da funcionalidade da noção de pulsão de morte para Freud.

Relembrando por que Freud inventou a “pulsão de morte”

Trata-se de uma engenhoca teórica relativamente simples e que se originou de uma suspeita de Freud em relação à validade da sua primeira explicação do aparelho psíquico como tendo uma tendência imperativa à busca do prazer e à fuga do desprazer (princípio do prazer). Com efeito, alguns fenômenos pareciam contradizer tal princípio como, por exemplo, (1) a chamada “reação terapêutica negativa” que consistia no fato de aparentemente o analisando não querer melhorar embora o analista estivesse trabalhando de maneira competente; (2) os sonhos de ex-combatentes de guerra que, em vez de realizar disfarçadamente seus desejos (como acontecia com a maioria das pessoas), revivia as imagens aterrorizantes do campo de batalha e (3) certas brincadeiras infantis cujo mote era a representação simbólica de uma experiência de sofrimento, como a ausência da mãe.

Todas essas experiências foram levando Freud a duvidar da força do império do prazer no psiquismo humano e a aventar a hipótese de que talvez esse império fosse, na verdade, a colônia de um império maior, cuja tendência não seria para o prazer (reequilíbrio homeostático), mas sim para a eliminação completa de todas as excitações, ou seja, para a morte. Seria isso o que tanto as crianças com suas brincadeiras “masoquistas” quanto os neuróticos de guerra e os pacientes que persistiam em seu sofrimento na verdade buscavam de maneira indireta: a morte.

Nesse sentido, o princípio do prazer ou, dito de outra maneira, o “princípio da vida”, seria um desdobramento secundário da pulsão de morte, resultante do contato do organismo com os estímulos do mundo externo. No entanto, como a pulsão original é a de morte, o organismo sempre tenderia, até mesmo utilizando o princípio do prazer, para o retorno ao estado original de ausência de estímulos. A vida seria, portanto, aquilo que durante certo período de tempo, seria capaz de resistir ao imperativo da morte.

Uma das condições para a existência da vida seria o deslocamento da pulsão de morte, originalmente voltada para o próprio organismo, para o mundo externo na forma de agressividade. No fundo, era esse o grande problema que Freud queria resolver: a agressão. Freud só conseguiu explicá-la através do conceito de pulsão de morte. Assim, desse ponto de vista, os homens se matariam porque possuem em si mesmos um impulso destrutivo, do qual determinada parcela é dirigida para o mundo externo.

Quando a morte ganha vida

Para que possamos entender a crítica que Winnicott fará à noção de pulsão de morte, é preciso que observemos que, no momento em que Freud a formula, a idéia da morte como um processo singular ou, em outras palavras, como um ente distinto da vida, já se encontra disseminada, de modo que o contraste entre vida e morte como duas coisas que podem ser diferenciadas por essência já era um pressuposto da elaboração freudiana. Se tal distinção já não estivesse presente na cultura européia do início do século XX, dificilmente Freud seria levado a cogitar a hipótese de uma pulsão de morte. De fato, anteriormente, morte significava simplesmente um ponto final da vida. Ora, o ponto final, no nível da linguagem, apenas sinaliza o encerramento de uma frase, mas em si mesmo não é nada. A partir do momento em que os primeiros médicos da anatomia patológica, cujo expoente maior foi Bichat, necessitaram distinguir no cadáver aquilo que era próprio da doença e aquilo que advinha do próprio processo de morte, se tornou necessário forjar a idéia de morte como oposta à da vida. Assim, enquanto a vida buscaria a organização, o desenvolvimento e a complexificação, a morte tenderia ao oposto: à desorganização, ao declínio das funções orgânicas e à regressão. Em outras palavras, a morte seria uma espécie de negativo da vida.

Viver para morrer?

Foi justamente essa sistematização do conceito de “morte” como ente e processo que ensejou expressões corriqueiras que utilizamos irrefletidamente como “Fulano está morrendo”. Essa frase, aparentemente banal, contém em si, de maneira implícita, uma negação: ao dizermos que o indivíduo está morrendo, estamos igualmente afirmando que ele não está mais vivendo, ou seja, que ele se encontra num outro regime de existência ao qual nós damos o nome de “morte” e que tem início, meio e fim! Ora, vocês hão de concordar comigo que se trata de um evidente paradoxo, pois só pode morrer aquele que está vivo, como me disse, certa vez, um sábio transeunte. Nós acabamos por dar vida à morte, ao ponto em que um pensador da envergadura de Freud se sentiu obrigado a postular a existência de uma verdadeira tendência natural para a morte!

Não sei se vocês, caros leitores, conseguem perceber a contradição, mas para mim é nítido, afinal, se há uma tendência para a morte, logo a morte é o objetivo, certo? Ora, quando se tem um objetivo, se o busca da maneira mais direta possível, concordam? Sendo assim, por que então a pulsão de morte enfrentaria a vida para se manifestar? A explicação de Freud é: a experiência com o Outro institui o princípio do prazer e a pulsão de vida, constituindo um adversário à pulsão de morte. Se aceitarmos essa réplica, caberia ainda outra indagação: se é, de fato, como o próprio Freud afirma, a pulsão de morte que, em última instância, governa os rumos do aparelho psíquico, por que razão ela não seria capaz de superar a pulsão de vida de maneira mais rápida e direta? Em outras palavras, a pergunta fundamental é: por que a morte precisaria da vida para morrer?

É óbvio que se trata de uma questão a que não se pode dar resposta alguma, pois sua própria enunciação é absurda. E é justamente essa contradição interna que será o ponto de partida da crítica que Winnicott fará à validade do conceito de pulsão de morte. Esmiuçaremos essa crítica no próximo post.

13 comentários sobre “Por que Winnicott não aderiu ao conceito de pulsão de morte? (parte 1)

  1. Interessante Lucas. É realmente paradoxal a típica frase de “estamos a morrer de dor… estou a morrer sem aquela pessoa… estou a morrer de fome…”. O que é certo, é que na ausência da dor, do Outro, e da fome, a presença da morte é uma constante na vida. Aliás, a vida só existe pois encontra-se inscrita no significado da morte e sem esse significado, o signo da vida carece da espontaneidade e da vivacidade que realmente lhe é característico. Se calhar fui um pouco confuso, mas basicamente traduz a ideia de “Vive a vida como se fosse o último dia, pois um dia será mesmo o último”.

    Não conheço muito da obra de Winnicott, só tenho o livro Natureza Humana. Tenho de aprofundar o meu conhecimento nesse autor.

    Aguardo o próximo post 😉

    Abraço!

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  2. Alexandre Brito

    “Quando a morte ganha vida” Bom título! Tenho uma observação sobre algumas linhas anteriores a ele. Quando voce diz da “exteriorização” da agressividade, isto é, no encontro com o objeto, há ‘mais’ pulsão sexual do que de morte.
    Penso nisto através da obra de Reich, pois ele também não suporta (e todos sentidos) a noção de pulsão de morte mas conceitua o sadismo e masoquismo.
    Os 3 fenomenos q voce trouxe que contradizem o princípio são, ao meu ver, aquém do princípio do prazer. Com a inauguração do princípio, que suscita uma especie de “””ordem”””(mil aspas), o ‘caos originário’ torna-se além. Jung e sua visão exclusivamente imaginária de mundo (ele precisava desta bengala para se sustentar) também foi incapaz de pensar essa maluquice do velho Freud.
    No texto “Mal-estar ..” há um elogio à pulsão de morte. Um dos problemas esta na palavra PULSÃO e MORTE. Um problema comum dos maus leitores de Freud é o de entender os conceitos com seus preconceitos.

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  3. Lucas Nápoli

    Olá Alexandre!
    Em primeiro lugar, obrigado pelo comentário, sempre pertinente e instigador.
    A princípio, isto é, antes de 1920, Freud pensou a agressividade dessa forma que você expressou, como sendo um dos componentes da pulsão sexual (necessidade de dominar o objeto para a cópula). No entanto, a partir da pulsão de morte, a agressividade é, em certo sentido, destilada da pulsão sexual, de modo que ela passa a constituir a exteriorização da pulsão de morte que pode ser posta a serviço da sexualidade mas isso às custas de se mesclar com a pulsão de vida que, de fato, passa a existir a partir do encontro com o outro.
    A resposta de Freud a Einstein acerca da pergunta que esse lhe fez (“Por que a guerra?”) é de o ser humano conta com um imperativo à agressividade derivado da pulsão de morte.
    ***
    Me explique mais detalhadamente a seguinte frase, pois acho que não consegui pegar o fio da meada: “Os 3 fenomenos q voce trouxe que contradizem o princípio são, ao meu ver, aquém do princípio do prazer. Com a inauguração do princípio, que suscita uma especie de “””ordem”””(mil aspas), o ‘caos originário’ torna-se além. ”

    GRANDE ABRAÇO!!

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  4. Alexandre Brito

    Sim, mas eu estava falando justamente de meados de 1920, por isso a citação Reichiana, que assim como Jung, estava criando sua própria postulação.
    O ‘problema’ é que Einstein não foi capaz de pensar a pulsão de morte, por isso das cartas ao simpático Freud. Nem Newton seria, pois ambos tem uma visão unitária de mundo em que “Deus não joga dados” (1926). E ao pensar dessa forma, Freud logo responde à questão do masoquismo como primário. Ou seja: todo gozo é masoquista. [Gostaria de ver voce escrever sobre isso, pois é um assunto opaco]
    A leitura que faço da obra freudiana sobre isto (e é sempre uma leitura com prejuízos), é que há uma espécie de “caos originário”, disforme, que nem sequer tende a realização do desejo. Nem sequer responde ao princípio do prazer, é sem princípio. Esta minha afirmação é baseada no Além do princípio do prazer, quando ele diz, pela primeira vez, que há essa exceção ao sonho como realização de desejo. Isso seria ao mesmo tempo o aquém do principio e o além.
    Não sei se me fiz claro, mas já valeu pelas riquissimas trocas que realizamos por aqui.

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  5. Lucas Nápoli

    Oi Alexandre! Se fez claro sim! Agora entendi o que você quis dizer com “aquém do princípio do prazer”! Você estava se referindo a esse caos originário, em que o sujeito ainda não se constitui como desejante. Um dos pontos capitais da crítica do Winnicott vai ser justamente essa idéia do caos originário e das relações entre orgânico e inorgânico às quais Freud faz menção no “Além…”. O outro ponto capital é o problema da agressividade, cujo ponto de vista de Winnicott é bem interessante. Voce verá no próximo post.
    Grande abraço!!

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  6. Lucas, sei que deve estar corrido… mas continue o texto… rsrsrsrs.. to doido pra ver a segunda parte… até já indiquei o blog para os amigos… rsrsrsrsrs

    Abraços

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  7. Lucas Nápoli

    Olá Marco! Muito obrigado pela indicação! A segunda parte já está quase pronta. Vou publicá-la provavelmente no final da tarde.

    Grande abraço, amigo!

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  13. Emerson Velloso

    Eu também considero o conceito de pulsão de morte desnecessário. Para cada argumento que se defenda a existência dela, existe um contra-argumento derrubando-a de vez.
    Talvez o argumento mais forte seja o do fato de sermos tão animais quanto os outros e, portanto, não poderíamos ter um aparelho psíquico cuja finalidade fosse descarregar toda a energia mental até extingui-la completamente.
    Para Freud, um bebê era uma criatura predominantemente autoerótica e alienada do mundo exterior. Mais tarde (seminário 20), Lacan criticou essa visão. Segundo ele, antes da fala, o mundo exterior é algo excitante aos bebês e não vêem mais do que isso.
    A persistência das lembranças traumáticas se deve ao fato de que o aparelho psíquico não pare de tentar produzir uma solução para um problema que ameaça o narcisismo do sujeito. Eis porque as brincadeiras infantis do tipo Fort-Da não são realmente masoquistas, mas tentativas de “domesticar” a idéia da morte.

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