[Vídeo] O que é uma mãe suficientemente boa?

Esta é uma pequena fatia da aula “LENDO WINNICOTT 10 – A Psicanálise realmente culpabiliza as mães?” que já está disponível no módulo AULAS TEMÁTICAS – WINNICOTT da CONFRARIA ANALÍTICA.


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Para a Psicanálise, a culpa é da mãe?

Muitos detratores da Psicanálise alegam que ela teria propagado a falsa ideia de que “a culpa [dos problemas emocionais de uma pessoa] é da mãe”.

De fato, trata-se de uma afirmação que não corresponde à verdade. Porém, é igualmente falso que os psicanalistas defendam tamanha tolice.

Mas, então, como surgiu essa fake news?

Ela decorre de uma compreensão equivocada, fruto de má-fé ou pura ignorância, de uma descoberta psicanalítica importantíssima e indiscutível:

A descoberta de que o suporte físico e emocional oferecido normalmente aos bebês nos primeiros meses de vida é indispensável  para o estabelecimento das condições básicas da vida psíquica, como a integração do self, por exemplo.

E se tal cuidado é imprescindível, isso significa, obviamente, que sua ausência pode comprometer seriamente o desenvolvimento emocional.

É claro que os danos ao bebê podem variar de intensidade e estar associados a outros fatores, mas, em algum grau, tendem a ocorrer.

Ora, em 99,9% dos casos, quem oferece o suporte é a própria mãe.

Logo, quando o bebê o recebe de maneira insuficiente (o que, diga-se de passagem, não é comum), podemos dizer tranquilamente que houve uma falha no cuidado materno.

Isso não significa culpabilizar a mãe, até porque tal falha pode ter acontecido por motivos que estão fora de seu controle, como uma depressão pós-parto, por exemplo.

Quer entender isso melhor?

Então, assista à AULA ESPECIAL publicada hoje na CONFRARIA ANALÍTICA.

Nela, eu comento trechos do artigo “A mãe dedicada comum”, de Winnicott, em que o autor explica por que reconhecer os efeitos patogênicos de falhas no cuidado materno não é o mesmo que atribuir culpa às mães.

O título da aula é “LENDO WINNICOTT #10 – A Psicanálise realmente culpabiliza as mães?” e ela já está disponível no módulo AULAS TEMÁTICAS – WINNICOTT.

A Confraria é hoje a maior e mais acessível escola de formação em teoria psicanalítica do Brasil.

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[Vídeo] A importância de um ambiente seguro na infância


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No início da vida, precisamos não só de braços que nos segurem, mas, principalmente, de um ambiente seguro.

O psicanalista inglês Donald Winnicott (1896-1971) descobriu que todo bebê precisa de uma mãe que seja capaz de segurá-lo.

— Uai, Lucas, como assim ele “descobriu” isso? Não é uma coisa óbvia?

Não.

Eu não estou me referindo apenas ao ato físico de segurar. Desse, sim, é evidente que o bebê precisa.

Afinal, é claro que uma mãe frequentemente estará com o recém-nascido em seus braços.

O que Winnicott descobriu é que esse “segurar” não deve acontecer apenas fisicamente, mas, sobretudo, num sentido EMOCIONAL.

O termo em inglês utilizado pelo autor é HOLDING, que pode ser traduzido tanto pelo ato de segurar quanto por contenção ou sustentação.

Uma mãe precisa segurar fisicamente seu filho recém-nascido porque ele ainda não consegue se locomover sozinho, certo?

Então, para amamentá-lo, por exemplo, ela precisa pegá-lo no berço e segurá-lo junto a si.

Se a genitora solta o bebê, ele simplesmente cai, pois ainda não é capaz de ficar de pé por conta própria.

Uma dinâmica semelhante ocorre na dimensão emocional.

O recém-nascido ainda não possui maturidade suficiente para se perceber como uma pessoa particular com um eixo subjetivo próprio.

Por isso, ele precisa de alguém que seja capaz de segurá-lo, contê-lo, sustentá-lo também no plano psíquico.

Se a principal função do segurar físico é evitar que a criança caia, o propósito essencial do segurar psíquico é não perturbar o desenvolvimento natural do bebê.

Assim, na prática, segurar emocionalmente o recém-nascido significa proporcionar a ele uma atmosfera de segurança, confiabilidade e previsibilidade.

Como ainda não se percebe como uma pessoa separada, o bebê experimenta EM SI as instabilidades que porventura aconteçam no ambiente à sua volta.

É como se a criança vivenciasse uma espécie de terremoto psíquico já que, nessa fase, o ambiente exerce, para ela, uma função de “chão” emocional.

Se esses “terremotos” não são muito frequentes, o bebê vai aos poucos se distinguindo como pessoa e se apropriando da segurança proporcionada pelo ambiente.

Se, num primeiro momento, precisava ser segurado emocionalmente pela mãe, paulatinamente ele vai adquirindo a capacidade de SE SEGURAR por conta própria.


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[Vídeo] O que é um ambiente suficientemente bom?


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[Vídeo] Winnicott: noções introdutórias

Dá pra ser feliz? Freud e Winnicott respondem (final)

Vimos até aqui que, por tudo o que Freud escreveu, sobretudo a partir de 1920 com a introdução do conceito de pulsão de morte, a felicidade para o pai da psicanálise é um sonho humano fatalmente destinado à frustração. Espero ter deixado claro que essa conclusão faz todo o sentido se levarmos em conta as premissas que guiaram o pensamento do médico vienense.

De fato, se pressupormos como verdadeiras as seguintes asserções:

(1) que entre o indivíduo e a cultura há um conflito inexorável oriundo da presença em cada organismo humano de uma pulsão destrutiva que se contrapõe à vida em sociedade;

(2) que, para que o indivíduo possa se inserir no campo que Lacan chamará de grande Outro, isto é, o campo da cultura, cuja estrutura basilar é a linguagem e suas leis, ele deve necessariamente abdicar de parte de suas tendências pulsionais – o que coloca em jogo novamente um conflito eterno entre o indivíduo e a pulsão;

(3) que a felicidade seria a possibilidade de que tal conflito inexistisse, ou seja, que, no limite, pudéssemos atualizar nossas intencionalidades sem qualquer tipo de impedimento por parte da cultura;

Logo,

(conclusão) a felicidade é de fato impossível.

Em outras palavras, para Freud a felicidade é impossível porque, ao defini-la, ele se coloca na posição do neurótico clássico, incapaz de superar o drama edipiano. Ora, o que significa ser feliz para tal neurótico? Fantasisticamente, poder ter a mãe só para si. Nos termos de Jacques Lacan, poder ter acesso a um gozo pleno, que não existe, mas que o neurótico, em sua fantasia, supõe que exista em algum lugar da terra.

Ora, por que o limite imposto pela cultura aos nossos desejos tem que ser visto necessariamente a partir da ótica da falta, da insatisfação, do mal-estar? Esse é o ponto de vista do neurótico, que sonha em ultrapassar o rochedo da castração. Por que não podemos enxergar no limite a instauração da dimensão do possível na existência humana? Sim, porque todo limite, ao mesmo tempo em que impede a execução de uma determinada intenção, nos mobiliza a inventar uma nova forma de agir, de modo que o limite ou a resistência do real aos nossos desejos nos põe na trilha da criatividade, da invenção. Não obstante, para que paremos de nos queixar diante do limite e passemos a utilizá-lo como motor de criação, nossa âncora subjetiva deve estar em outro lugar que não o da satisfação pulsional. Era assim que Donald Woods Winnicott pensava.

Para-além do mecanicismo: Winnicott e o ser

Refém do modelo mecanicista proveniente da modernidade, Freud jamais conseguiu pensar que para o sujeito humano há algo mais fundamental que as pulsões, algo que, inclusive, possibilita o uso saudável da dimensão pulsional. Para o pai da psicanálise, o ser humano é uma máquina de descarregar pulsões que se complica por sua pertença ao campo da cultura. Para Freud, não há nada na natureza do humano que o singularize com exceção do fato de que nele há pulsões e não instintos, o que faz com que a subjetividade deva ser concebida necessariamente como uma construção social (o que Lacan expressará com sua fórmula: “o sujeito é o que um significante representa para outro significante”).

Em contrapartida, para Winnicott, que não tinha experiência apenas com neuróticos insatisfeitos com a castração, mas com bebês doentes e saudáveis, antes de o homem se ver às voltas com a dinâmica pulsional, algo de caráter muito mais essencial deverá ser constituído. Trata-se do que Winnicott chama de “experiência de continuidade do ser” ou “a experiência de que a vida faz sentido, de que vale a pena viver.”. Para o psicanalista inglês, é esse o elemento fundamental que possibilita uma vida saudável. É essa a âncora subjetiva que todo ser deve possuir para conseguir lidar de modo não problemático nem doentio com as limitações da existência.

A construção do fundamento para a felicidade

Como se constitui essa experiência de continuidade do ser? Winnicott, diferentemente de Freud, não conseguiu ver no bebê humano uma maquininha de descarregar pulsões. A experiência clínica do analista inglês com crianças não lhe deixou dúvidas de que o pequeno filhote de Homo sapiens é dotado de determinadas tendências para o desenvolvimento que, para serem realizadas, precisam de uma contrapartida ambiental, ou seja, a adaptação ativa de alguém. Portanto, o homem não é, nem a princípio nem posteriormente uma máquina burra. Trata-se de um organismo orientado para o amadurecimento.

Num primeiro momento, as necessidades do bebê demandam uma atenção tão intensa por parte do ambiente (mãe) que o bebê não tem condições de discernir-se como um ser separado dele. Se o ambiente for suficientemente bom, isto é, se conseguir atender adequadamente as necessidades da criança, o único registro psíquico que o bebê fará dessa experiência será o de “estar sendo”, ou seja, de existir.

Gradativamente, a dependência do infans em relação ao ambiente vai se relativizando, de modo que a mãe pode se desligar um pouco do bebê. Ainda assim, ela não pode se ausentar por muito tempo. Do contrário, como o bebê ainda não se constituiu como uma pessoa inteira capaz de reconhecer o outro como independente, se for deixado desamparado por longo tempo, ele sente como se estivesse desaparecendo, uma experiência que Winnicott chamou de “angústia inimaginável” e que quebra aquele sentimento de “estar sendo” que vem sendo solidificado desde o nascimento.

Se tudo correr bem, ou seja, se o ambiente não provocar a emergência de angústias inimagináveis no bebê, o indivíduo vai paulatina e naturalmente aceitando o fato de que o outro é independente e possui corpo e psiquismo próprios. Essa passagem ao reconhecimento da alteridade só é feita de maneira saudável, isto é, não-traumática, se o sujeito conseguir consolidar esse estofo subjetivo, essa âncora, que é o sentimento de “estar sendo” ou “sentimento de continuidade da existência”. Esse sentimento funciona como algo que capacita o indivíduo a enfrentar as intempéries da vida sem se deixar abater de modo doentio. É como se, dotado desse sentimento, o sujeito pudesse dizer: “Aconteça o que acontecer, eu sou.”.

A experiência de “estar sendo” permite a atualização na vivência cotidiana de uma dimensão humana que Freud sequer cogitou existir que é o que Winnicott chama de “verdadeiro self”, que é o ponto subjetivo a partir do qual podemos criar. Trata-se de um aspecto do sujeito que Winnicott qualifica como “indevassável” no sentido de que ele é irredutível a qualquer tentativa de incorporação cultural. Ele é a marca de nossa singularidade. No indivíduo saudável, que conseguiu consolidar o sentimento de continuidade da existência, o verdadeiro self não precisa ficar oculto, não precisa ser defendido, pois possui a força daquele sentimento para resistir às limitações do mundo externo.

A presença do verdadeiro self na existência individual possibilita a experiência de sentir que a vida faz sentido. Isso porque só sentimos que a vida faz sentido quando nos sentimos vivendo e, ao mesmo tempo, criando nossa própria experiência vital. Trata-se de uma sensação oposta àquela que experimentamos quando temos que vivenciar situações que nos foram impostas. Nesses casos, vivenciamos uma sensação de futilidade, justamente por não nos sentirmos co-criadores no processo. A experiência do sujeito freudiano clássico é dessa ordem. É um indivíduo que sente as limitações colocadas em jogo por nossa pertença à cultura como meras imposições externas que o tornam insatisfeito. Tal sujeito fundamenta seu ser não na experiência de continuidade de ser, mas na satisfação pulsional. Por isso, sua conclusão será inevitavelmente a de que a vida não vale a pena, ou seja, de que não é possível ser feliz.

Felicidade a toda prova

Finalmente, para Winnicott, a felicidade é sim, possível, e pode ser vista como sinônimo de saúde. E o que é a saúde para Winnicott? Não se trata de uma existência sem desprazer ou sem limitações. Pelo contrário, ser saudável para Winnicott significa ser capaz de incorporar e fazer frente a tais experiências. E isso só é possível se o indivíduo tiver construído seu ser sobre a rocha, para usar uma metáfora bíblica. Construir o ser sobre a rocha significa ter conseguido vivenciar nos momentos iniciais da vida a experiência de ser sem interrupções e sem angústias traumáticas. Essa experiência constitui-se em uma espécie de amparo ambiental introjetado, uma rocha que permitirá ao ser sobreviver às chuvas, aos ventos e às tempestades. Mais do que isso: essa experiência permitirá ao indivíduo encarar a vida não como algo pronto ao qual nosso papel é unicamente o de adaptação, mas sim como uma algo que se abre às contribuições espontâneas e criativas do vivente.

Concluindo, diria que a felicidade, do ponto de vista winnicottiano, não tem a ver com a dimensão dos afetos. Ser feliz não significa experimentar alegria ou prazer, pois isso implicaria em considerar a felicidade como algo fugaz, momentâneo, passageiro. Também não se trata, como pensara Freud, de uma felicidade utópica cuja impossibilidade reside precisamente no fato de ser descrita como estando na dependência daquilo que é barrado pela inserção na cultura. Não. Para Winnicott, a felicidade é uma condição existencial experimentada pelo ser que se sente existindo de modo criativo, ou seja, que não encara a vida como um fardo ou na posição de mero espectador. O que está em jogo é uma felicidade que contempla o imprevisto, o desprazer, a ansiedade como contingências necessárias à existência e não como elementos que tornam o ser infeliz. Em outras palavras, para Winnicott uma felicidade autêntica só pode ser concebida como aquela capaz de sobreviver ao sofrimento sem desfalecer.

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Defesa e Viver Criativo – Um Estudo sobre a Criatividade nas Obras de S. Freud e D. W. Winnicott

Megamente e as conseqüências de um ambiente falho (final)

Decepcionado por não ter conseguido conquistar Rosana, o herói artificial Titã resolve fazer exatamente o contrário do que lhe havia sido proposto por Megamente. Começa a aterrorizar Metrocity com uma crueldade que nem mesmo Megamente seria capaz de empregar.

A gênese da destrutividade em Titã

Essa mudança no comportamento de Titã evidencia mais uma vez o caráter reativo do mal e da agressividade, cuja intensidade é diretamente proporcional ao impacto das decepções vivenciadas pelo sujeito. Titã não age movido pela força de uma pulsão de morte exteriorizada, mas sim por uma dinâmica afetiva marcada pelos sentimentos de humilhação e desilusão decorrentes da interação com um ambiente que o frustrou. Ele poderia ter reagido de modo diferente, até mesmo não agressivo, caso não tivesse se sentido tão onipotente como se sentira ao saber dos poderes que havia adquirido. Ao se julgar capaz de conseguir tudo o que queria no momento em que se tornara um herói, o jovem Hal refugiou-se numa fantasia de onipotência que não o permitiu reconhecer a resistência que a realidade estabelece à realização de todo desejo.

Titã acreditara que se havia se tornado irresistível à repórter e ao ter seu desejo frustrado, o anti-herói acabou se dando conta do caráter fantasioso do seu sentimento de onipotência, constatação que o fez se sentir ameaçado. Afinal, se mesmo se tornando um herói, ele não era capaz de conquistar seu objeto de amor, isso significava que ele era essencialmente um incompetente, um fraco, enfim, todos os adjetivos com os quais seu supereu lhe caracterizara. Sentindo-se, portanto, humilhado e ameaçado pelas críticas superegóicas que, nesse momento, devem ter grassado, Titã percebe que a única forma de recuperar sua potência e repelir esse sentimento de humilhação é tornando-se agressivo, cruel e utilizando seus poderes para o mal.

Um herói artificial

Na outra ponta da história temos uma situação radicalmente diferente. Megamente, cuja vida afetiva outrora era bastante semelhante à atualmente experimentada por Titã, vivencia agora outra modalidade de relação com o mundo, um tipo de interação espontânea, não-agressiva, benevolente. Como vimos, essa transformação foi produzida pelo encontro com o amor e a acolhida sincera da repórter Rosana Rocha que, não obstante, ainda cria que se relacionava com o bibliotecário Bernard. Num dos encontros entre Megamente e a repórter, o ex-vilão deixa, sem querer, que Rosana o veja tal como é, ou seja, como um ET azul de cabeça grande. É mais um momento de decepção no filme, que faz com que a repórter encerre o encontro e vá para casa.

Megamente, no entanto, volta a procurar Rosana a fim de ir com ela até a antiga casa de Metroman com vistas a encontrar uma forma de parar Titã, o qual vinha fazendo da cidade um caos. A repórter concorda em ir com o ex-vilão e, na residência de Metroman, acabam se encontrando com o próprio de roupão e barba por fazer. O herói não havia morrido, mas apenas saído de cena e é a explicação sobre o que o levara a fazer isso que nos interessa aqui.

Metroman disse que estava se sentindo cansado de ter que enfrentar cotidianamente aquelas batalhas com Megamente e ter que sustentar aquele papel de “o salvador de Metrocity”. Tudo aquilo parecia não fazer mais sentido pra ele. Na verdade, o que fica claro é que, de fato, jamais fizera sentido, pois o que motivava as atitudes heróicas de Metroman não era o seu desejo de fazer o bem, mas as demandas do Outro que lhe reivindicaram desde a infância a assunção da identidade de herói. Nunca lhe perguntaram o que ele de fato gostaria de fazer da vida. O ambiente à sua volta escolheu seu destino à sua revelia, pressupondo que, pelo fato de apresentar superpoderes, ele devesse necessariamente tornar-se um herói.

É nessa parte do filme que nos damos conta de que tanto Megamente quanto o Sr. Perfeitinho foram formados em um ambiente falho, insuficientemente bom. No caso de Megamente, as falhas se manifestaram como hostilidade e ausência de acolhimento às suas potencialidades. Já no caso do Sr. Perfeitinho, a expressão da insuficiência do ambiente foi bem mais sutil. Com efeito, o garoto só recebia elogios, era adorado por todos à sua volta, não experimentando um minuto sequer de hostilidade. Por que, então, o ambiente foi falho?

As duas modalidades de falha ambiental

Tragamos Winnicott novamente à baila para nos ajudar a pensar acerca disso. Para Winnicott, o ambiente pode falhar na adaptação ao bebê de duas maneiras. Uma delas (é a que ocorreu no caso de Megamente) acontece quando o ambiente frustra precocemente as expectativas do bebê, não permitindo a ele estabelecer uma relação de confiabilidade com o mundo. O protótipo dessa interação é a mãe que só fornece o seio ao bebê após o momento em que o infans alucina a presença do seio à sua frente, ou seja, ocorre um desencontro entre a necessidade do bebê e a presença do objeto que satisfaria essa necessidade. Nesse estágio da vida da criança, tal desencontro não pode ocorrer, pois, para estabelecer uma relação de confiança com o ambiente, o bebê precisa experimentar a ilusão de que foi ele próprio quem criou o seio, ilusão que só pode ser vivenciada se o seio aparece no exato momento em que o bebê o deseja.

O outro ripo de falha ambiental possível ocorre quando o ambiente não deixa espaço para a manifestação espontânea do desejo do sujeito. Naquela situação modelar a que fizemos referência, essa falha se manifestaria pela apresentação do seio antes que o bebê sentisse a necessidade de mamar. Essa condição impossibilita a ilusão de onipotência da criança da mesma forma que a anterior. Se naquela o seio veio atrasado, nessa veio adiantado. De todo modo, não veio no tempo do bebê, ou seja, o ambiente não agiu de acordo com a espontaneidade da criança, mas sim de acordo com suas próprias demandas.

A conseqüência desse segundo tipo de falha ambiental é, como no primeiro, a criação de um falso-self. Todavia, enquanto no primeiro caso o falso-self é criado marcado pela reação agressiva à frustração perpetrada pelo ambiente e após uma cogitação prévia acerca do que ele espera do sujeito, no segundo caso as coisas se passam de forma um pouco diferente. As demandas ambientais já se presentificam no momento mesmo da falha. De fato, ao apresentar o seio antes que o bebê tivesse necessidade dele, o ambiente já está obrigando a criança se sujeitar a seu ritmo, isto é, à suas demandas. O bebê é forçado a trocar seu desejo espontâneo pelo desejo do ambiente e, em decorrência, adotar uma identidade artificial que agrade a esse ambiente. Junto com a espontaneidade, vai-se embora também a agressividade que não tem sequer ocasião de manifestar-se naturalmente, pois o ambiente não permite que o bebê apresente frustrações. Ao invadir a existência do bebê com um seio inesperado, é como se o ambiente dissesse à criança: “Não se preocupe, você não precisará nem mesmo sentir a necessidade do seio. Ele estará aqui o tempo todo. Mame-o”.

Ora, a infância do Sr. Perfeitinho não fora basicamente assim? Empanturrado com as demandas à sua volta que o solicitavam a demonstrar seus incríveis superpoderes e, posteriormente, a utilizá-los no combate ao mal, Metroman jamais teve a oportunidade de expressar-se espontaneamente, de fazer o que verdadeiramente desejava. Aquele que todos aclamavam como herói, possuía, na verdade, pretensões muito mais modestas. Queria fazer o que todo cidadão comum faz e, além disso, tornar-se cantor de rock, mesmo que não tivesse lá muito talento para isso…

O herói Megamente

Conquanto tenham ouvido Metroman dizer isso com toda a clareza, Megamente e Rosana continuam fazendo o papel de ambiente falho para o agora ex-herói, pedindo insistentemente a ele que vá até a cidade para vencer o Titã. Felizmente, para sua saúde, Metroman recusa-se a submeter-se novamente às demandas do Outro, atitude que tem um efeito terapêutico duplo, pois leva Megamente a encontrar-se com sua verdadeira vocação, que é a de herói! É nesse momento que o ET azul abandona de vez a identidade de vilão, indo combater Titã. Após algumas reviravoltas, Megamente finalmente consegue recuperar o aparelho capaz de retirar daquele a essência de herói, transformando-o novamente no tímido câmera Hal. Megamente é, então, aclamado por toda Metrocity como o novo herói da cidade e recebe, por tabela, o amor de Rosana.

Concluindo

“Megamente” se apresenta como uma ilustração riquíssima dos modos singulares de manifestação de um espectro psicopatológico que afeta essa dimensão essencial da experiência humana à qual denominamos de identidade. No centro do palco temos um sujeito cuja experiência de ser de modo autêntico é perturbada pela hostilidade e rejeição que recebe quando criança e que se reage a essa frustração ambiental tornando-se destrutivo. Do outro lado, temos um herói artificialmente construído pelas demandas à sua volta e que, de fato, nunca quis ocupar essa função, mas tivera que fazê-lo à força, pois não fora respeitado em sua espontaneidade.

Ao final do filme ambos encontram seu verdadeiro destino e exibem aquela alegria que brota naturalmente no corpo daquele que sente que a vida faz sentido e que sentem aquela experiência que Winnicott descobriu ser a mais fundamental e imprescindível na vida de qualquer indivíduo, que é a experiência de continuidade do ser. De fato, Megamente e Metroman só conseguem resgatar essa experiência que neles sofrera interrupção na infância quando o falso-self de ambos perde a consistência e dá lugar ao verdadeiro self. Em Megamente isso aconteceu a partir da interação com um ambiente acolhedor, espontâneo e interessado representado pela repórter. Já com Metroman, a transformação ocorreu como o fruto de uma decisão corajosa, motivada pelo cansaço da identidade artificial.

Megamente e as conseqüências de um ambiente falho (parte 2)

Após assumir definitivamente a identidade de vilão, a única possível de adotar dentro do contexto hostil em que vivia, Megamente passa a travar grandiosas batalhas com o outrora Sr. Perfeitinho e agora herói da cidade, Metroman. O vilão cresce tendo tais lutas como sua principal ocupação.

Fama de mau

O acontecimento principal do filme, que deflagrará as condições em que se dará o desfecho da narrativa, é o último combate entre Megamente e Metroman. Nessa ocasião, fica evidente aos olhos do espectador que a identidade de vilão em Megamente é uma construção fundamentalmente artificial (falso-self) que não corresponde àquilo que o personagem de fato é em sua dimensão mais íntima. Com efeito, é impossível não notar o modo afetado com o qual Megamente expressa sua suposta maldade. Age como se de fato estivesse encarnando um personagem. Fica notório o fato de que, metaforicamente, está trajando uma vestimenta prêt-à-porter. Além disso, volta e meia Megamente mostra sinais de fragilidade e surtos de infantilismos (como os freqüentes erros nas pronúncias das palavras) que deixam bastante claro sua condição de imaturidade e do uso da identidade de vilão como defesa.

Em outras palavras, Megamente aí se apresenta como um ser que se sente permanentemente ameaçado e que precisa fazer uso da “fama de mau” para conseguir suprimir essa sensação de desamparo e medo. Demonstrei anteriormente que são justamente esses os sentimentos que, despertados precocemente no sujeito pelas falhas ambientais, suscitam a formação de um falso-self, na medida em que o self verdadeiro não foi suficientemente fortalecido para lidar com eles.

Sem Metroman, sem Megamente

Dissemos que se trata da última batalha entre Megamente e Metroman porque esse último morre no combate, ou melhor, finge que morre, como veremos adiante. Por ora, sigamos a sequência do filme e nos coloquemos na posição do espectador incauto que ainda não sabe os acontecimentos posteriores da história. Pois bem, a princípio, Metroman é considerado como morto, o que faz de Megamente o novo “dono” de Metrocity já que não haveria outra pessoa além do herói capaz de lutar contra ele.

Logo que se dá conta da suposta vitória, Megamente comemora o “feito” e passa a gozar a nova vida de “manda-chuva” da cidade. No entanto, gradualmente vai-se abatendo sofre ele uma profunda melancolia, cujas razões o próprio vilão explica a seu fiel companheiro, o peixe “Criado”, que não conseguia entender o porquê daquele estado. Megamente queixa-se de que sua vida perdera o sentido depois que ele havia “vencido” a batalha. Não havia mais ninguém com quem lutar e lutar contra Metroman era a única coisa que ele vinha fazendo ao longo de toda a sua vida.

Temos aqui a ilustração perfeita do momento em que o falso-self é colocado em xeque. Com efeito, a identidade falsificada é criada com a função doentia de servir como a máscara que o sujeito utiliza para se adaptar a mundo hostil, caótico e falho. Quando o mundo em questão, ou seja, o mundo que demandou do sujeito o forjamento de um falso-self, desaparece, esse perde a sua consistência, pois não fora uma identidade criada espontaneamente, baseada na experiência psicossomática autêntica do sujeito, mas sim por oposição a algo. Nesse sentido, para existir, o falso-self precisa de um ambiente ameaçador e desfavorável, o que coloca o sujeito na situação de só saber reconhecer quem é por oposição a outrem. É essa a problemática de Megamente.

Não obstante, diferentemente do que poderíamos pensar à primeira vista, a vacilação, isto é, a perda de consistência do falso-self, expressa frequentemente através de estados depressivos, como o que viveu Megamente, não é ruim para o sujeito. Pelo contrário: a tristeza que se abate sobre o personagem é justamente o elemento que propiciará uma mudança em sua existência e o reencontro com sua espontaneidade perdida na infância.

O último suspiro do falso-self

Isso, todavia, não acontece de imediato. O falso-self de vilão é tão forte e necessário para Megamente que, a princípio, o personagem tenta mantê-lo através da criação artificial de um novo herói para a cidade. Com esse intuito, Megamente extrai das caspas recolhidas de Metroman uma espécie de “essência do herói” com vistas a inoculá-la em algum homem a fim de fazer do sujeito escolhido o novo herói, contra o qual o vilão pudesse duelar. Entretanto, a essência acaba sendo introduzida por acaso no assistente da repórter Rosana Rocha que Megamente geralmente seqüestrava para atrair a atenção de Metroman.

O sujeito em questão trata-se de Hal, um jovem gordo, tímido e imaturo que nutre uma paixão secreta pela repórter. Ao se aperceber forte e com superpoderes devido à injeção da essência de Metroman, o jovem coloca para fora os traços de personalidade que se lhe encontravam latentes e transforma-se curiosamente na antítese de um herói: egoísta, irresponsável e narcisista. Descobre-se, então, que Hal alimentava forte inveja de Metroman, julgando que sua colega estava interessada no herói. Por conta disso, supõe que, por tornar-se herói, adquirira os requisitos suficientes para conquistar Rosana – o que não acontece. Essa é sua primeira decepção. A segunda é relacionada a Megamente. Quando o vilão descobrira que a essência do herói havia sido inoculada no assistente da repórter, Megamente se transformara em um velho sábio e dissera ser o “pai espacial” do novo herói, ao qual dá o “criativo” nome de Titã. Quando Hal descobre que, na verdade, o suposto “pai espacial” era Megamente, sente-se novamente decepcionado. Essa decepção aliada à primeira concernente ao amor da repórter leva Titã a tornar-se mau. A cidade passa, então, a ter dois vilões: Megamente e Titã.

Múltiplas personalidades

Antes de prosseguir com os acontecimentos que levarão ao desfecho da história, gostaria de comentar essa capacidade de Megamente de assumir a identidade de quem quisesse de maneira mágica. Trata-se de um traço colocado no personagem que revela mais uma vez o significativo conhecimento psicológico do autor da película. De fato, essa habilidade de se transformar em qualquer pessoa aponta mais uma vez para a problemática central de Megamente e que diz respeito à sua identidade. A facilidade em se comportar de acordo com as exigências do ambiente ou, em outras palavras, em trocar o agir espontâneo pelas respostas às demandas do Outro é uma característica particularmente interessante do falso-self. Por não construir sua identidade sobre a rocha da espontaneidade, o indivíduo que forja um falso-self passa a assumir diferentes identidades de acordo com o ambiente em que se encontra. Trata-se de um verdadeiro camaleão que existe unicamente para se adaptar às cores dos ambientes pelos quais passeia, sem um eixo irredutível que expresse sua singularidade, que o diferencie da massa. Na experiência analítica, é preciso que o analista tome cuidado para não contribuir para o reforço de um falso-self, pois pacientes nessa condição frequentemente adotam uma postura de submissão que pode ser aparentemente agradável ao terapeuta e acabar sendo confundida com a velha “transferência positiva”.

O advento do verdadeiro self     

Numa dessas várias transformações, Megamente acaba assumindo a identidade de um funcionário do museu dedicado a Metroman chamado Bernard, um jovem intelectual. Aos poucos, Rosana começa a se apaixonar por Bernard, isto é, por Megamente se passando por Bernard, de modo que o vilão passa a experimentar pela primeira vez na vida o amor sincero de alguém por ele. Megamente sente, então, o primeiro contato com um ambiente acolhedor, afetuoso, não-hostil, representado pela figura da repórter. Nessa passagem do filme, podemos observar com nitidez a proposta winnicottiana de que nós nos constituímos a partir da interação entre nossas potencialidades inatas e o ambiente. O ambiente acolhedor proporcionado pela repórter extrai de Megamente (ainda disfarçado na imagem de Bernard) toda a espontaneidade que o vilão teve que “recalcar” em função da hostilidade do ambiente se sua infância. Na pele de Bernard, Megamente não é reativamente desagradável nem manifesta qualquer tipo de comportamento afetado, como anteriormente. Pelo contrário, conversa com naturalidade, sente-se bem e até provoca alegria em Rosana.

Poderíamos fazer uma analogia entre a atitude da repórter em relação a Megamente e a postura adotado pelo analista diante de um paciente massacrado por um falso-self. Conquanto a repórter estivesse enganada quanto à pessoa com quem de fato estava se relacionando, sua atitude de acolhimento em relação a Megamente foi o elemento que permitiu ao personagem prescindir da sua identidade de vilão e passar a agir com espontaneidade. Em outras palavras, Megamente tornou-se “do bem” quando encontrou um ambiente que o permitiu ser assim, que não o obrigou a adotar uma máscara “do mal” para sobreviver. Essa dinâmica é semelhante àquela que acontece na relação entre o analista e uma analisando encarcerado nas jaulas do falso-self. É óbvio que o terapeuta não tem que se apaixonar pelo paciente para permitir a ele ser espontâneo. A função do analista é produzir um ambiente de acolhimento autêntico e adaptado às necessidades do paciente. Num ambiente dessa natureza, o falso-self perde sua função, pois o paciente não será obrigado a reagir nem a criar uma personalidade alienígena para se adaptar, pois é o ambiente quem se adaptará a ele. Winnicott dizia que o falso-self era uma crosta criada pelo sujeito para proteger seu fragilizado verdadeiro self que não pôde se atualizar pela hostilidade do ambiente. Numa análise bem feita, essa função se torna supérflua.

No próximo post, o último desta série, abordarei o destino e a personalidade de Metroman, personagem que, como veremos não era tão diferente de seu adversário, Megamente. Será a ocasião propícia para apresentarmos as conclusões gerais a que o filme nos leva do ponto de vista da psicanálise.

Megamente e as conseqüências de um ambiente falho (parte 1)

Muitas produções cinematográficas dirigidas ao público infantil buscam proporcionar às crianças o acesso a algum ensinamento ético mais do que meramente entretê-las com animações coloridas e engraçadas. Inspiram-se, para tanto, nos tradicionais contos de fada que sempre traziam de maneira mais ou menos explícita a chamada “moral da história”. Esse é o caso da animação “Megamente” produzida pela Dreamworks. No entanto, não pretendo abordar neste texto a sabedoria subjacente ao filme – ainda que eu o pudesse, pois o filme é, de fato, prenhe em ensinamentos – mas a riqueza psicológica que nele se faz presente. Farei, portanto, uma análise psicanalítica da película à moda das que proliferavam fartamente nas primeiras décadas de existência da psicanálise.

O ideal seria que todos os leitores assistissem ao filme antes de lerem este texto. Todavia, como sei que isso não acontecerá, procurarei fazer minhas considerações teóricas ao mesmo tempo em que conto o desenrolar da animação.

Megamente e Sr. Perfeitinho

A história se inicia com Megamente, um extraterrestre azul, sendo enviado por seus pais, ainda bebê, para fora de seu planeta de origem, o qual estaria em risco. No trajeto, Megamente encontra outro bebê, que ele chama de Sr. Perfeitinho. Ambos aterrissam na Terra. O Sr. Perfeitinho será criado por uma família normal do interior e Megamente por presidiários, pois acabara indo parar numa prisão. Numa leitura psicanalítica apressada, poderíamos pensar aqui que Megamente havia sido colocado em um ambiente falho ao passo que Sr. Perfeitinho havia ido parar num ambiente suficientemente bom. Adiante veremos porque essa interpretação não é adequada.

Megamente e Sr. Perfeitinho estudam numa mesma escola, mas experimentam dois tipos distintos de relação com o ambiente. Enquanto Sr. Perfeitinho recebe elogios pela exibição de seus superpoderes como a capacidade de voar, Megamente é desprezado e rejeitado por seus professores e colegas por ser desajeitado e não conseguir realizar adequadamente tarefas que demandam habilidades físicas. Não obstante, Megamente possui uma aptidão intelectual muito acima da média de seus colegas (o que é indicado pelo seu nome-próprio e por sua enorme cabeça). Com tamanha inteligência, o jovem ET azul era capaz de bolar os mais mirabolantes planos para se vingar dos que o haviam repudiado. Ao se dar de seu potencial e do uso que faz dele, Megamente chega a uma surpreendente conclusão sofística: se ele possui aquela incrível capacidade para pensar e se o que ele só consegue pensar é em modos pelos quais pode retaliar seu ambiente, logo aquilo para o qual ele tem mais talento é… ser mau! A partir daí, Megamente se tornará o grande vilão da cidade (Metrocity) e terá como opositor justamente o Sr. Perfeitinho que se tornará o herói Metroman.

O vilão Megamente como falso-self

Como eu já disse em outro texto, do ponto de vista winnicottiano, ninguém é mal espontaneamente, em virtude da atuação de uma suposta pulsão de morte. Para Winnicott, o mal é sempre reativo e se apresenta como a única saída encontrada pelo sujeito para defender-se contra uma ameaça à sua continuidade do ser perpetrada por uma falha ambiental. No caso de Megamente essa tese é confirmada com clareza. Ele se torna vilão como uma reação a um ambiente que não o acolheu, que o rejeitou.

O fato de o personagem ser intelectualmente superdotado é uma daquelas coincidências que costumam levar nós, psicanalistas, a supor que os artistas possuem um conhecimento intuitivo das realidades psíquicas. Com efeito, ao conceber Megamente como um indivíduo altamente inteligente, mas pouco habilidoso em tarefas que exigem desempenho corporal, o autor do filme retratou com exímia fidelidade algumas descobertas winnicottianas. Com efeito, Winnicott notou a partir de sua experiência com adultos e bebês que quando o ambiente no qual a criança está se constituindo falha tanto a ponto de impedir que o sujeito faça as pequenas correções naturais que o permitem continuar tendo um desenvolvimento saudável, o bebê é obrigado a substituir sua espontaneidade por uma atitude artificial criada unicamente para se adaptar ao ambiente caótico em que se encontra. Nesse sentido, a lógica natural é invertida: em vez do ambiente se adaptar ao bebê, é o bebê quem tem que se adaptar ao ambiente. A essa atitude artificial, Winnicott chamou de “falso-self”. No caso de Megamente, o falso-self é ilustrado por sua identidade de vilão, que é criada por ele não espontaneamente, mas com a finalidade de se adaptar àquele ambiente que não o amava como ele naturalmente era.

Mega-mente sem vida

Winnicott diz que, em muitos casos, a criação do falso-self vem acompanhada de uma exacerbação da atividade mental. O leitor que já leu meus textos sobre Winnicott aqui no blog sabe que o psicanalista inglês faz uma diferenciação entre psique e mente. Psique é a elaboração imaginativa que nós fazemos da nossa experiência corporal. Mente é a função que utilizamos para entender o mundo. E só precisamos entender o mundo porque ele nem sempre está de acordo com nossas expectativas, ou seja, porque o mundo falha em se adaptar a nós. Não obstante, no início da vida, o nosso mundo é bastante reduzido, trata-se apenas da mãe ou de quem quer que esteja cuidando de nós. Porém, nesse período inicial nós precisaríamos que esse mundo não falhasse ou falhasse pouquíssimo, pois assim poderíamos utilizar a função mental apenas quando fosse estritamente necessário e essa função estaria conectada com o todo de nossa experiência psicossomática. Se o ambiente falhar muito, o que acontecerá? Nós teremos que utilizar a mente muito mais do que deveríamos naquele momento para entender aquele excesso de falhas. Isso fará com que a mente adquira um funcionamento independente do restante da nossa experiência com o mundo. Ficaremos mais inteligentes, intelectualizados, mas a função mental não estará integrada à nossa vida como um todo.

Em Megamente, essa dinâmica fica bastante explícita: o personagem, apesar de ser bastante inteligente, é um desastre em habilidades que demandem o engajamento do corpo. Esse desajeitamento evidencia a fragilidade do vínculo entre psique e soma, fragilidade que, para Winnicott, caracteriza a falha do ambiente em sustentar a tarefa de personalização. Nesses casos, é bastante comum o indivíduo tentar escapar à angústia gerada por essa falha ambiental se refugiando na função mental. No filme, isso também aparece de maneira clara quando Megamente aparece fazendo invenções e criando pequenas máquinas, enquanto as outras crianças estão simplesmente brincando, vivendo e experimentando o ambiente de modo natural. Temos, portanto, nesse personagem, uma precisa ilustração de um falso-self com a função mental artificial e exageradamente desenvolvida bem como desvinculada da experiência efetiva com o mundo.

Como ainda resta uma série de outros aspectos relevantes do filme para serem analisados e eu não quero cansar o leitor com uma exposição muito longa, continuarei o texto na semana que vem.

Psicossomática e Psicanálise II: Donald Winnicott

Via de regra, tendemos a ver no sintoma psicossomático, como em qualquer outra afecção que nos cause sofrimento, algo a ser extirpado, combatido, eliminado de nosso ser. No entanto, poderíamos nos perguntar: o que nos garante que sem a afecção psicossomática estaríamos melhores? Essa indagação foi feita por Donald Woods Winnicott e a resposta que encontrou para ela foi o reconhecimento da função positiva que o sintoma psicossomático tem para aquele que o apresenta. Vejamos como o psicanalista inglês chegou a tal conclusão.

Quem foi D. W. Winnicott?

Para aqueles que não conhecem Winnicott, os quais imagino não serem legião, é suficiente saber que esse senhor viveu entre 1896 e 1971, atuando como pediatra e psicanalista na Inglaterra. Winnicott elaborou contribuições tão significativas para a psicanálise que alguns autores acreditam que ele tenha dado origem a um novo paradigma psicanalítico, superando anomalias do modelo freudiano. Quem quiser se aprofundar um pouco mais nas inovadoras proposições teóricas do autor encontrará no final deste post uma lista de textos aqui do blog em que eu as abordo. Por ora, vejamos o que Winnicott diz acerca do transtorno psicossomático.

Entre vômitos e loucos

É de sua experiência como pediatra que Winnicott retira suas primeiras observações sobre a dinâmica imanente à constituição do sintoma psicossomático. Ele nota que amiúde os bebês fazem uso de problemas de ordem orgânica para se expressarem e agem assim com uma frequência que aparentemente é muito maior do que nos adultos. Trata-se de crianças que ficam com febre em função de uma ausência longa da mãe, de bebês que vomitam quando querem expulsar de si conteúdos psíquicos atemorizantes, etc.

Dessa experiência com bebês Winnicott extrai a conclusão de que corpo e psique estão intimamente associados. Todavia, a clínica com pacientes psicóticos lhe colocará uma pulga atrás da orelha, pois se deparará com diversos sujeitos que, curiosamente, não se relacionam com o próprio corpo, alegando viverem no organismo de outrem. Como isso é possível? Essa é a pergunta que Winnicott se faz. Como é possível que os bebês lhe apresentem uma vinculação tão profunda entre corpo e psique a ponto de expressarem corporalmente eventos de ordem psicológica e determinados adultos lhe demonstrem exatamente o oposto, isto é, uma total cisão entre corpo e psique?

Se não há quem una, como permanecer uno?

A solução que Winnicott encontra para esse problema é o reconhecimento de que embora corpo e psique possam se vincular, nem todos os indivíduos conseguem realizar essa tarefa. Em outras palavras, no início da vida corpo e psique não estão unidos, podendo ao longo da história do sujeito vir a estar ou não. O que vai determinar um desfecho ou outro? A atuação de Winnicott como pediatra não lhe deixa dúvidas: é o cuidado que a criança recebeu nos primeiros meses de vida. O psicanalista reconhece que a tendência para integrar corpo e psique é inerente a nossa espécie. No entanto, se o ambiente em que nascemos (que para a maioria de nós é a mãe) não ajudar, essa tendência não se realiza. Fora isso o que acontecera com os pacientes psicóticos que diziam viver no corpo do próximo! O ambiente no qual nasceram foi tão falho que sua existência psíquica se constituíra de forma totalmente dissociada de sua corporalidade.

Aqui, cabe uma delimitação conceitual: a palavra psique em Winnicott não é sinônimo de mente. Essa última é entendida pelo autor como uma função intelectual que emerge no momento em que o ambiente começa a fazer a tarefa saudável de quebrar gradualmente a ilusão de onipotência do bebê (“tudo o que eu quero vira realidade”). Nesse processo, o bebê, que antes só se deleitava sem precisar pensar, agora precisa olhar para a realidade e tentar entender o que está acontecendo. É nessa hora que a função mental aparece. A psique, no entanto, já existe. Ela é a elaboração imaginativa de partes e funções do corpo ou, em outras palavras, é a amálgama de fantasias que o bebê elabora sobre o que ele vivencia no nível somático. Se o ambiente é suficientemente bom, ele permite ao bebê integrar essas fantasias ao corpo e passar a ter uma existência psicossomática, isto é, ter a experiência de existir dentro de um corpo.

Caso o ambiente seja muito ruim (no sentido de não auxiliar o bebê nessa tarefa de integrar psique e corpo, a qual Winnicott chama de personalização) a criança não percebe a vinculação entre o que ela produziu de fantasias sobre a experiência corporal e o próprio corpo, ficando refém de uma angústia inimaginável. A saída encontrada pelo bebê nesse caso é cindir completamente tais fantasias do corpo e refugiar-se na mente, na função mental – como acontece com muitos psicóticos nos quais se observa uma capacidade intelectual fora de série.

Está doendo, graças a Deus…

Entre esses dois extremos, isto é, entre um ambiente suficientemente bom e um ambiente que falha muito, existe o que a gente pode chamar de “ambiente mais-ou-menos”. Trata-se de um ambiente que não é bom o bastante, mas também não falha tão drasticamente a ponto de gerar uma cisão entre psique e soma. Quando o bebê é cuidado por um ambiente assim, ele consegue concluir a tarefa de personalização, mas de maneira muito precária. É como se a integração entre corpo e psique se desse de maneira frouxa, de sorte que o indivíduo se desenvolve normalmente, mas com uma tendência para a cisão (isto é, para a psicose) sempre à espreita.

É nesse momento que o sintoma psicossomático revela sua faceta positiva, pois é justamente ele que impede que a cisão aconteça! Explico: pelo fato da integração corpo-psique ter se dado de maneira debilitada, sempre que o indivíduo experimentar situações de grande abalo emocional como lutos, separações conjugais, perda de empregos etc. essa integração frouxa será abalada e a tendência à cisão emergirá. Nessas ocasiões, o organismo lança mão de uma doença psicossomática como que para assegurar a frágil vinculação existente entre corpo e psique. Assim a cisão não acontece, mas em compensação o indivíduo agora se torna refém de uma doença.

Notem, portanto, que, do ponto de vista winnicottiano, ao adotarmos o belicismo terapêutico que vê nos sintomas algo como Bin-Ladens a serem extirpados, incorreremos num grave erro, pois estaremos atacando justamente a tábua de salvação do indivíduo, a pedra onde ele se agarrou para não cair no despenhadeiro da psicose. Além disso, não estaremos levando em conta a “verdadeira” doença constituída pela personalização frouxa e sua correlata a tendência à cisão.

É por isso que, para Winnicott, o tratamento de uma doença psicossomática passa pela provisão de um ambiente suficientemente bom por parte do terapeuta, um ambiente em que o indivíduo se sinta seguro para poder retomar a tarefa que outrora foi feita “porcamente” pelo ambiente “mais-ou-menos”. Agora, o analista assume o papel de ambiente, mas de um ambiente bom o bastante para ajudar o paciente a integrar corpo e psique. Se isso for levado a cabo, não será necessário fazer nada com o sintoma psicossomático. Ele simplesmente desaparecerá, pois perderá sua serventia.

Concluindo

O sintoma psicossomático, para Winnicott, é o último recurso empregado por um indivíduo vivenciando situações difíceis que ocasionam intensas emoções para manter corpo e psique unidos. Tal indivíduo só lança mão da doença por ter realizado o processo de personalização de maneira precária em função das falhas ambientais.

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Se você se interessou pelo pensamento de Winnicott e quer saber mais sobre as teses do autor, leia os posts abaixo:

Winnicott e o Samba

Pedofilia, estupro: a necessidade da Lei

A mente em Winnicott (parte 1)

A mente em Winnicott (final)

O amor como afeto e o amor como ação: Freud com Winnicott (parte 1)

O amor como afeto e o amor como ação: Freud com Winnicott (final)

Série “Winnicott e o Cristianismo” (sete posts até o momento)

Por que Winnicott não aderiu ao conceito de pulsão de morte? (parte 1)

Por que Winnicott não aderiu ao conceito de pulsão de morte? (final)

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Winnicott e o cristianismo VII – Da maturidade da fé cristã face à puerilidade do paganismo

À guisa de introdução a este ensaio, abordarei alguns pressupostos da teoria winnicottiana  já descritos nos outros textos, mas que aqui em especial terão uma relevância maior. O núcleo das teses inovadoras de Winnicott para a psicanálise pode ser definido como sendo a dialética entre dois pólos: de um lado a tendência inata ao amadurecimento, à saúde, ao desenvolvimento e de outro o ambiente que, em sendo suficientemente bom permitirá a atualização daquela tendência ou, em sendo insuficiente e invasivo, colocará obstáculos à potência inata, fazendo com que o sujeito tenha que criar formas reativas de adaptação ao ambiente, o que, em outras palavras, redundará em imaturidade.

O conceito de amadurecimento não tem absolutamente nada a ver com o sentido que essa palavra adquiriu no senso comum. O amadurecimento winnicottiano expressa exatamente o contrário de um controle dos impulsos e uma adaptação eficaz ao meio social, o que subjaz à idéia de maturidade no blábláblá cotidiano. Em outros termos, o indivíduo maduro para Winnicott não é o indivíduo careta, mas sim o sujeito que consegue ver sentido na vida e sentir-se criativo. Para alcançar essa maturidade, é preciso que a pessoa tenha experimentado suas tendências inatas dentro de um ambiente suficientemente bom que, como dissemos antes, possibilita a colocação dessas tendências em ato. Essas visam à realizam de tarefas básicas da existência que, se realizadas, terão como conseqüência a formação de um indivíduo maduro. Correndo o risco da simplificação, poderíamos sintetizar essas tarefas da seguinte forma:

 

1. Integração: capacidade que o bebê adquire de conjugar as diversas experiências pelas quais passa num mesmo contínuo, percebendo a si mesmo como uma mesma pessoa que experimentou diversos momentos e não como várias pessoas experimentando cada uma um momento diferente.

2. Personalização: capacidade de integrar suas vivências subjetivas à experiência do corpo, percebendo-se como estando inserido no corpo, o qual é limitado pela pele.

3. Experiência criativa do mundo: ao fornecer um cuidado suficientemente bom, a mãe atende satisfatoriamente as necessidades do bebê, fazendo com que ele tenha a ilusão de ter sido ele próprio a criar os objetos que lhes satisfazem as necessidades. O bebê adquire, portanto, o sentimento de que é possível criar um mundo.

4. Sentimento ético espontâneo: quando ainda não realizou a tarefa da integração, o bebê ainda não consegue reconhecer-se como a mesma pessoa nas diferentes situações. Por conseguinte, também não consegue perceber que não obstante as experiências mudem, o mundo permanece o mesmo. O mundo, no caso, para o lactente, ainda é apenas a mãe. Logo, o bebê que mama com uma voracidade agressiva não é o mesmo bebê que, saciado, desfruta do aconchego materno. Assim também a mãe que é “atacada” por aquela voracidade toda e que, por conta disso, acaba sendo “machucada” não é a mesma mãe que cuida, que lhe dá segurança. Essas duas realidades do bebê e essas duas realidades do mundo que é a mãe só serão integradas e vistas como duas facetas de uma mesma realidade após a conquista do estágio de integração. Quando isso ocorre, acontece uma espécie de insight na cabeça do bebê e ele então se dá conta não só da agressividade que o habita como também do uso que fez dessa agressividade contra a mãe que lhe aconchegava e lhe sustentava. Ocorre então a emergência do sentimento que Winnicott chama de concern, isto é, um sentimento de preocupação, de concernimento, de compaixão pelo outro que, no caso, é a mãe. Se essa mãe for suficientemente boa ela aceitará um ato de reparação que o bebê fará como forma de se desculpar pelos danos causados a ela nos momentos de voracidade.

 

Essa última tarefa é a mais complexa das quatro, mas também a mais instrutiva. Ela contextualiza de que modo o outro emerge na realidade da criança e evidencia a necessidade da separação entre esse outro e o bebê para a existência de uma relação de amor entre eles. É justamente em torno dessa separação que gira nossa analogia nesse momento.

A maior parte dos leitores e estudiosos de Winnicott tenta extrair de sua obra algumas conseqüências para o entendimento do sentimento religioso. E essa maioria é unânime em dizer que Winnicott propõe uma concepção imanentista da divindade, bastante comum nas religiões orientais. Deus não seria transcendente a nós, mas seria uma espécie de Alma Universal da qual somos partes, de modo que o verdadeiro exercício religioso seria uma conexão entre nós (partes) e Deus (todo). Para isso fazem uso de uma origem etimológica suspeita do vocábulo religião, que seria a palavra latina religare (religar). A verdadeira religião seria um religare com o cosmos, pois Deus seria o cosmos.

De que forma usam a teoria de Winnicott para justificar essa idéia? Simples: Winnicott não diz que nós só nos constituímos como pessoas em meio a um ambiente suficientemente bom? Portanto, há uma continuidade entre nós e o ambiente, de modo que nós não podemos ser vistos como separados dele. Logo, se quisermos pensar no tema da religião a partir dessas teses, Deus seria identificado com o ambiente e o homem com o bebê. Nada mais óbvio. É essa analogia que nos próprios estamos utilizando desde o primeiro ensaio dessa série. Deus é a mãe suficientemente boa. O problema desses intérpretes da obra de Winnicott é de identificar Deus à mãe anterior ao alcance da integração, ou seja, à mãe na fase de dependência absoluta, em que o bebê não consegue distinguir a si mesmo da mãe. É por isso que para esses intérpretes há uma semelhança entre a teoria winnicottiana e as religiões orientais. Se nessas o objetivo da existência é um religare ao Todo, analogamente em Winnicott isso se converteria num retorno à fase de dependência absoluta em que a individualidade do bebê não existe. É exatamente o apagamento da individualidade o que pretendem as religiões orientais.

O problema é que na teoria de Winnicott isso corresponde ao sentido diametralmente oposto ao da tendência inata ao amadurecimento. Amadurecer, na perspectiva winnicottiana, significa justamente tornar-se cada vez mais independente, singular, distinto do ambiente, ou seja, trata-se de um processo de individuação, para utilizar um termo de Jung, e não de uma desconstrução de uma individualidade para a integração no Todo. Portanto, associar as teses de Winnicott às religiões orientais é um procedimento radicalmente equivocado, a não ser que, à revelia dos textos do pediatra inglês, se diga que o sentido da vida é caminhar rumo à imaturidade, ao retorno à dependência absoluta.

Contrariamente a essa perspectiva, o Cristianismo não pressupõe um Deus imanente identificado a uma suposta Alma do Mundo. Na perspectiva cristã, Deus é uma pessoa, distinta de nós. Tudo está em Deus, mas Deus não pode ser reduzido ao Todo. Ele intervém no mundo, não é o Mundo. E é justamente por ser distinto de nós é que nós podemos amá-Lo e Ele pode nos amar, da mesma forma que o bebê só pode sentir compaixão da mãe e, portanto, amar a mãe, ao perceber-se distinto dela. O Cristianismo não postula a necessidade de integração com o Cosmos. Ao converter-se, isto é, ao adquirir a consciência do Reino de Deus, o homem passa a ter um relacionamento pessoal com Deus, um relacionamento de amor, em que Deus, tal como a mãe suficientemente boa que aceita o gesto de reparação do bebê e não se vinga da agressividade a ela dirigida outrora, perdoa o homem de seus pecados. No Cristianismo, contrariamente às religiões orientais, o sujeito é convidado a cada vez ser mais si mesmo no sentido de tornar-se cada vez mais impermeável aos condicionamentos externos, pois a Rocha que o sustenta (que é Deus) está dentro dele mesmo, de modo que, em sendo construída sobre essa Rocha, a casa do seu Eu não desabará mesmo que venha a enchente e a tempestade.

Isso não significa que para o cristão existe uma separação radical entre ele e Deus, do mesmo modo que não se pode dizer que o bebê após o reconhecimento da mãe como outro poderá viver sem seus cuidados. Jesus, ao subir aos Céus, disse que estaria conosco até o fim dos tempos. E ele está com o cristão o tempo todo através do Espírito Santo que é Jesus em nós e que faz com que nós sejamos Nele. O bebê também, para Winnicott, não se torna independente dos cuidados maternos mesmo quando já não é mais bebê e sim um adulto com seus 30, 40, 50 anos. Esse cuidado sofre um processo de incorporação pelo sujeito de modo que, mesmo não existindo como realidade exterior, ele funciona no mundo interior como fonte de segurança e de sustentação. Trabalharemos um pouco mais essa analogia no próximo ensaio.

Por ora, podemos concluir que, se para Winnicott a tendência ao amadurecimento caminha numa via que vai da dependência absoluta à independência, ou seja, é um processo de individuação, em absoluto se pode dizer que uma perspectiva winnicottiana para a religiosidade desembocaria nas religiões orientais para as quais o verdadeiro sentido da existência é precisamente o oposto, ou seja, a “desindividuação”, isto é, o apagamento de si mesmo para a integração no Deus-Cosmos. Se há uma fé cujos princípios são análogos ao processo de maturação winnicottiano, é a fé cristã. Pois se o bebê está amadurecendo quando se dá conta de que a mãe, outrora todo o seu mundo, é uma pessoa distinta dele, ao reconhecer a Deus como transcendente ao homem e distinto da Natureza, o cristão demonstra a maturidade da fé cristã face às religiões orientais. Um taoísta ou um budista é como o bebê de Winnicott na fase de dependência relativa (em que a mãe começa a falhar e o bebê começa a se integrar e se dar conta da realidade externa) que assustado e com medo de ser aniquilado deseja com todas as forças o retorno à fase de dependência absoluta em que ele e a mãe eram Um, ou seja, busca voltar a um estágio anterior do processo de maturação por não conseguir lidar com a angústia de ser si mesmo. O cristão, pelo contrário, é como o bebê que, ao contar com uma mãe suficientemente boa (figura da Graça de Deus) consegue enfrentar a angústia de ter que lidar com suas próprias carências e com a realidade externa. E só consegue isso porque não quer ser Um com Deus, mas por que tem Deus dentro de si.

Winnicott e o cristianismo VI – a gênese da moralidade e a ética cristã

Por que não fazemos tudo o que queremos? Essa questão, aparentemente banal e de fácil resolução, não obstante está no cerne das discussões concernentes aos domínios da moral e da ética. Poderíamos formulá-la em outros termos tais como: “Por que muitas vezes sentimos o desejo de agredir e até matar determinadas pessoas e não o fazemos?” Uma resposta que saltaria da boca de muitos seria a de que não realizamos tais atos porque em condições normais seríamos punidos, oficialmente pela polícia e/ou extra-oficialmente pela própria pessoa, por seus amigos ou familiares. Em suma, o que limitaria nossa ação seria tão-somente o medo da punição.

Essa é uma solução de fato plenamente plausível para o problema e ela era compartilhada por ninguém menos que o doutor Sigmund Freud. Com efeito, para o médico vienense, o conflito entre o que desejamos e o que devemos fazer estava na raiz de nossa estrutura enquanto pessoas; era, por assim dizer, o núcleo de nossa existência. Para Freud, o ser humano na origem é potencialmente capaz de realizar e fruir de todas as perversões existentes, das que já existiram e das que virão a existir no futuro. Essa é a tese que levou Freud a dizer que a criança é um “perverso polimorfo”. Isso significa que, sob a ótica do pai da Psicanálise, a moralidade e os princípios éticos teriam se desenvolvido como uma reação, uma defesa, uma tentativa de regular tanto nossa sexualidade quanto nossa agressividade. Em outras palavras, o homem inicialmente seria um monstro capaz de todas as atrocidades imagináveis, que posteriormente seria “amansado” e “controlado” pela instância moral. Mas não só por ela. Freud dá relevância também ao papel da própria realidade na regulação de nossas ações, visto que por vezes embora não estejamos sob a ameaça de uma punição moral, a realidade não nos fornece condições de realização de nossos desejos, como no caso de alguém que se encontra destituído de liberdade.

Para Freud, a primeira regulação que sofremos, isto é, a primeira concessão que fazemos à moral, abdicando de nosso desejo é a proibição de gozarmos plenamente, no sentido erótico, do corpo de nossa mãe. Como se sabe, o bebê não apenas se alimenta ao engolir o leite materno. Ele também se satisfaz com o prazer gerado a partir de seus lábios pela sucção dos seios da mãe, o que faz com que uma das facetas da mãe, para o bebê, seja a de um objeto sexual. Com o tempo, o bebê, ao explorar seu corpo, descobre que seu órgão genital também lhe proporciona prazeres análogos aos da sucção do seio. Logo, quem surgirá na mente da criança associado a esse prazer genital? Óbvio: a mãe. Não obstante, o bebê logo, logo, terá que se esquecer da mamãe e pensar na priminha ou na coleguinha da escola, porque no mundo dos adultos, ninguém pode desejar a própria mãe, pois a mamãe é do papai.

Da mesma forma se passa com a questão da agressividade. “Já que não posso ficar com a mamãe porque ela é do papai, então é simples resolver a questão: eu mato papai! Não, não posso? Por que não? Ah sim, porque no mundo dos adultos é proibido matar. Poxa, mas tudo o que eu quero é proibido!” Tanto a sexualidade quanto a agressividade são regulados, do ponto de vista de Freud, não por uma compreensão da própria natureza dos atos, mas por sanções que vêm de fora e que não explicam as razões das proibições, apenas apresentam as negativas “Não farás isso, não farás aquilo”.

Jacques Lacan, vendo o perigo que tal entendimento de Freud sobre a moralidade poderia gerar visto que se poderia pensar, como de fato se pensou, que já que é a moralidade que faz com que as pessoas não possam dar livre vazão a seus desejos, é só eliminar boa parte dos princípios morais que as neuroses serão bem menos freqüentes. Foi com base nesse tipo de pensamento que, principalmente nos anos 60, iniciou-se um movimento de liberalização sexual que, no entanto, não extinguiu as neuroses. Pelo contrário, foram gerados novos problemas como compulsões sexuais, promiscuidade e a conseqüente proliferação de doenças sexualmente transmissíveis, entre as quais a AIDS.

Com vistas a impedir que movimentos como esse se dissessem baseados nas teorias da Psicanálise, Jacques Lacan foi obrigado a radicalizar os enunciados freudianos e dizer: “Olha, pessoal, Freud efetivamente disse que a moral limitava o exercício de toda a nossa potencialidade sexual e que muita gente que não dava conta de reprimir seus desejos acabava dando vazão a eles na forma de doença psicológica. No entanto, o que Freud realmente queria dizer é que nem se a gente acabasse com todos os princípios morais, nossa vida seria melhor porque a realização plena de nossa sexualidade é impossível. Sabem por quê? Por que nós somos seres que falam e vivemos num mundo onde tudo está sob o domínio da linguagem. Tudo tem nome e só sabemos o que uma coisa significa tendo em mente todas as outras palavras do mundo que se distinguem do nome da coisa em questão. Enfim, estamos todos alienados na linguagem. Logo, não temos como ter acesso à Coisa da sexualidade, só à sua representação. É por isso que mesmo não estando sujeitos a estatutos morais, nunca estaremos satisfeitos, pois estaremos sempre sujeitos à linguagem que, por sua vez, limita nossa percepção de nós mesmos. Assim, não é a moral que nos divide, fazendo que uma parte de nós deseje uma coisa e outra deseje atingir um ideal de moralidade. É a própria linguagem que, pelo próprio fato de termos um nome, faz com que nos distanciemos de nós mesmos.”

O que Lacan fez, portanto, foi dar um estatuto ontológico, estrutural, necessário às teses contingentes de Freud, pois podemos conceber uma sociedade sem o mínimo de estruturação moral como Sodoma, mas não há sociedade sem linguagem. É por isso que Lacan vai dizer que os dez mandamentos são as próprias leis da linguagem. Assim, não se trata de uma impossibilidade relativa, mas de uma impossibilidade lógica de satisfação plena. É por isso também que Lacan terá que conjugar o conceito de libido de Freud que, na obra desse último, fazia referência à sexualidade entendida não apenas como sexualidade genital e o conceito de pulsão de morte, a explicação freudiana para a agressividade humana, unindo os dois conceitos em um só: o conceito de gozo. Destarte, em Freud a moral regularia e limitaria a libido e a pulsão de morte; em Lacan, a linguagem limitaria o gozo. Daí a idéia de Lacan de que o sujeito se constitui no próprio ato de representar-se na linguagem o que demanda uma escamoteação da dimensão do gozo, o que em Freud equivaleria ao recalque.

Bem, será que as teses freudo-lacanianas seriam os únicos meios para se pensar as relações entre o homem e a moralidade? A meu ver não. Elas não são sequer eficazes. Basta observar que a conclusão a que se chega ao final da apreciação crítica dessas teses é de que, de fato, é impossível ao sujeito humano ser saudável visto que Lacan, ao dar um estatuto estrutural à teoria freudiana, encampando a moral à linguagem, acabou por dizer que o ser humano é natural e eternamente dividido, ou seja, é neurótico por natureza e não por contingência. Assim, o mundo seria dividido entre os mais e os menos neuróticos.

E ainda há outro inconveniente nessa concepção. Tanto Freud quanto Lacan nem chegam a discutir se os princípios éticos e a moralidade, exemplificados nos dez mandamentos, são úteis para nossa vida. Para ambos, eles não possuem significação em si mesmos, servem apenas para impedir que os indivíduos ajam de determinada forma. O que significa dizer que, para eles, não há uma tentativa nos princípios morais de modificar os anseios das pessoas, mas tão-somente limitar suas ações. Portanto, cabe aos indivíduos unicamente a tarefa de submeter-se aos princípios e não compreender a importância deles.

Ora, será que Lacan foi tomar o exemplo dos dez mandamentos por acaso? Por que ele não usou, por exemplo, a orientação de Cristo para não revidar ofensas? Justamente porque os primeiros de fato são dados por Deus via Moisés sem nenhuma explicação aos israelitas sobre o porquê de segui-los. A razão era unicamente a de obedecer a Javé. Tanto é que se você não obedecesse a Lei, ou seja, se pecasse, era obrigado a realizar um determinado ato reparador, como oferendas, sacrifícios etc. Ou seja, a resposta para a pergunta: “Por que não posso matar?” era “Por que Deus disse que não.” Ora, em Jesus vemos uma dinâmica completamente distinta. Cristo não deixou nenhum princípio ético sem explicar as razões pelas quais as pessoas deveriam segui-los. Por exemplo, quanto ao princípio de não revidar ofensas, o Nazareno é enfático em dizer que se deve agir assim porque Deus não se vinga. Ele não dá chuva, sol, alimento só para aqueles que o agradam, mas também para os que o ofendem.

Os mandamentos de Cristo são todos inteligíveis, o que faz com que a pessoa que os segue, faça-o de coração e não como mera obrigação como acontecia com a Lei de Moisés. Os judeus não sentiam e não sentem a Lei como um conjunto de prescrições que lhes possibilita ter uma vida melhor. Pelo contrário, sentem-nas como um peso nas costas. Justamente porque essa Lei me diz para eu não matar aquele pagão miserável que adora Baal e pelo qual eu nutro dia após dia um ódio imenso; que eu não posso pegar a mulher do meu próximo pela qual eu nutro intenso desejo; que eu não posso deixar meu pai na miséria, o mesmo pai que violentou minha irmã quando criança. Ou seja, a Lei de Moisés vai na direção oposta à da natureza humana! Ela impede justamente aquilo que eu tenho mais vontade! Por quê? Porque ela não muda o entendimento, exatamente porque não há justificativas para segui-las a não ser obedecer ao temível Deus Javé.

Os mandamentos de Cristo não pressupõem que o sujeito a eles se submeta sem pensar. Pelo contrário, é por entender que ao segui-los, se terá vida e vida em abundância é que o sujeito os cumpre. E vejam só: não é que Winnicott nos apresenta uma concepção sobre o desenvolvimento da moralidade no indivíduo que vai de encontro justamente à ética cristã?

Muitos analistas de orientação estritamente freudiana ou lacaniana volta e meia questionam à ala winnicottiana do ringue psicanalítico o fato de na teoria de Winnicott a figura do pai ficar um tanto quanto apagada. Até nos textos em que Winnicott aborda a função do pai, ele o faz associando-a a um papel maternal. Essa aparente elisão do pai no discurso winnicottiano não se deu por acaso. Também não se trata de um possível descuido de Winnicott em enfatizar demasiadamente a mãe e subvalorizar o papel do pai no desenvolvimento da criança. É que Winnicott não opera com a diferença clássica que Lacan herdou de Freud entre uma suposta função da mãe como objeto primordial do sujeito e uma também suposta função do pai como responsável pela incidência da Lei, da castração na economia subjetiva da pessoa. Winnicott não trabalha com conceitos como Nome-do-Pai, essa pequena massa lingüística que, segundo Lacan, seria o eixo organizador de nossa dimensão simbólica.

Para Winnicott mãe e pai são elementos que devem exercer uma função que está para-além deles, qual seja, a de proporcionar um ambiente bom o suficiente para que a criança possa desenvolver suas potencialidades. Às vezes a figura da mãe aparece supervalorizada no pensamento de Winnicott não porque é apenas ela quem pode fazer o papel de um ambiente suficientemente bom, mas sim porque no contexto cultural ocidental contemporâneo herdeiro da família tradicional burguesa o pai tende a assumir um lugar de distância dos cuidados e do processo de desenvolvimento da criança, exercendo o papel apenas de provedor e do último recurso reivindicado pela mãe para a correção dos filhos, o famoso: “Vou contar para o seu pai quando ele chegar”. Nesse contexto, é natural que imaginariamente o pai seja tomado como o veículo da Lei, afinal ele funciona nesse regime familiar como o “supremo tribunal federal” para a mãe. Essa por sua vez, fica a cargo sozinha da tarefa de facilitar o desenvolvimento dos filhos. Obviamente essa situação vem se modificando há algumas décadas – e é ótimo que se modifique; os filhos agradecem! Cada vez mais, os pais vêm se conscientizando do seu papel por assim dizer “maternante”. No entanto, ainda vigora lado a lado com essa versão pós-moderna o modelo tradicional em que o pai surge unicamente “para botar as coisas nos eixos”, do jeitinho que Freud e Lacan pensavam…

Por que fiz toda essa digressão quando na verdade deveria estar falando da moralidade em Winnicott? Justamente porque essa concepção do analista inglês sobre as funções de pai e mãe faz toda a diferença quando vamos investigar como Winnicott entende o nascimento da moralidade no indivíduo. Se não há de um lado uma mãe afetuosa cuja função é apenas a de gerar fantasias edípicas e do outro um pai castrador, cuja função é apenas a de “botar ordem na casa”, temos que, para Winnicott, a moralidade não nasce a partir de uma intervenção regulatória de uma Lei transgeracional. Para o pediatra, quanto a isso a Lei é supérflua. Dá quase para colocar as palavras do apóstolo Paulo na carta aos Gálatas na boca de Winnicott: “Olha, essa coisa de Lei é para imaturos. Imaturos é quem precisam de um tutor para dizer a eles tudo o que elas devem fazer. Nós cristãos, amadurecemos. A fé em Deus nos basta para que não façamos o mal.”

Winnicott vai dizer, com outras palavras, o mesmo conteúdo só que ao falar de teoria do desenvolvimento individual e não de cristianismo. Mas a idéia é a mesma: a Lei só é necessária para quem não contou com um ambiente suficientemente bom! E mesmo assim a Lei não resolve as coisas. Pelo contrário: ela piora (e os exemplos que Winnicott dá são ótimos: crianças “agressivas, “rebeldes” etc. A punição, ou seja, o exercício da Lei, não funciona para elas; o que elas precisam é de um ambiente que as acolha, que as entenda e que ajudem a elas próprias a renunciar à agressividade.). A graça cristã pode ser compreendida, assim, por analogia, através do conceito de “ambiente suficientemente bom”.

Para Winnicott, herdeiro do pensamento de Melanie Klein, no início da vida todos nós convivemos imaginariamente com duas mães. Sim, DUAS mães: uma que nos faz muito feliz ao nos amamentar na hora em que sentimos fome, aquela que nos dá carinho, aconchego quando sentimos que as coisas vão mal, que nos dá calor quando a temperatura começa a cair, enfim, aquela mãe que está na hora certa no lugar certo fazendo a gente se sentir plenamente satisfeito – essa é a mãe boa. Mas também há a mãe má, protótipo das bruxas e madrastas dos contos de fada: é a mãe que não vem quando a gente chora de fome, aquela que às vezes não nos dá toda a segurança de que necessitamos no momento, a que nos deixa assando ao demorar em trocar as fraldas, enfim, é a mãe que falha, que não aparece na hora certa, que demora, que mete os pés pelas mãos às vezes. Obviamente, trata-se de DUAS mães apenas na cabecinha maniqueísta da criança. Na realidade, as duas mães são de fato dois aspectos de uma mesma mãe, justamente porque é existencialmente impossível que se possa ser uma mãe totalmente presente e satisfatória o tempo todo. Mas o bebê ainda não entende isso e a forma dele lidar com essa angústia é cindindo a mãe em duas: uma boa e outra má, da mesma forma como nós, às vezes, imaturamente pensamos que as coisas não estão indo bem porque Deus está nos castigando e que quando as coisas vão bem é porque estamos fazendo tudo o que Deus quer. O modelo dessa cisão entre um Deus que pune e um Deus que agracia está aí no precoce maniqueísmo infantil.

Acontece que há ainda outro complicador. Pelo fato de mãe e criança estarem, nos primeiros momentos da vida do bebê, em um estado que poderíamos descrever como de contigüidade psíquica, a famosa “simbiose” ou díade de Françoise Dolto, o bebê não consegue se reconhecer como constituindo uma existência separada e distinta da existência da mãe, de tal modo que o que ocorre do lado da mãe é imediatamente repercutido do lado da criança. Portanto, se o bebê imagina existirem uma mãe boa e outra má, logo existirão um eu bom e outro mau. Essa correspondência entre os campos da mãe e do bebê se dá através dos mecanismos psíquicos que Melanie Klein tão brilhantemente descreveu, a saber a introjeção e projeção: a criança, ao mesmo tempo em que se reconhece a partir de características extraídas da mãe/ambiente, também expele para fora de si determinados atributos passando a reconhecê-los como sendo próprios da mãe. Há, portanto, um intercâmbio de representações e sentimentos contínuo entre mãe e bebê sem que as fronteiras entre um lado e outro sejam delimitáveis.

Ocorre, no entanto, que todos nós possuímos uma tendência inata para a integração, isto é, uma potencialidade a reconhecermos nossa identidade como algo inteiro, total, ainda que apresentando aspectos conflitantes. É a realização dessa tendência que faz com que possamos nos reconhecer como uma mesma pessoa ao longo do tempo. Quando as condições ambientais não são favoráveis a que tal potencialidade se efetive, surgem problemas da ordem da identidade como os famosos casos de psicose em que o sujeito possui o que se chama de “múltiplas personalidades” sem um eixo que as organize.

Para que a tendência à integração se torne ato, como já dissemos, faz-se necessário um ambiente suficientemente bom, o que, em termos práticos significa um ambiente que proporcione um mínimo de estabilidade de maneira a partir que o bebê reconheça que o “eu bom” e o “eu mau” são de fato um único eu. O que resulta dessa síntese operada dentro de um ambiente minimamente bom é o sentimento de responsabilidade que descrevemos no último post dessa série associando-o ao arrependimento cristão. O bebê percebe que as “más ações” vêm dele mesmo e não de outro eu.

Não obstante, como já vimos, nessa fase em que o bebê depende quase que absolutamente da presença da mãe, tudo o que ocorre do lado do bebê, apresenta uma correspondência, na vida imaginativa da criança, do lado da mãe. Assim, se há uma síntese do eu bom e do eu mau do bebê, haverá também, para a criança, uma síntese entre a mãe boa e a mãe má! E, vejam é justamente essa última síntese que, para Winnicott, marca o nascimento da moralidade no ser humano. Por quê? Porque a partir do momento em que a criança começa a reconhecer que a mãe má é a mesma pessoa que a mãe boa, ela se conscientiza de que todos os pensamentos, fantasias e ações agressivas dirigidas contra a mãe má, que frustra, que falha, eram também dirigidas contra a mãe boa, que gratifica, que alimenta, que dá carinho! Essa consciência, esse insight é um acontecimento de grandes proporções no psiquismo da criança, pois o primeiro sentimento que ele gera é o de culpa, afinal o bebê começa a perceber que estava agindo e desejando mal para aquele ser que ele mais amava! Melanie Klein, ao reconhecer a força do impacto dessa consciência na mente da criança, chamou a fase em que a criança tem essa constatação de “posição depressiva”, pois para a psicanalista o sentimento de culpa geraria um estado deprimido perene que, nos casos de melancolia (depressão) estaria exacerbado, mas que em todas as pessoas persistiria em maior ou menor grau em estado latente. Ou seja, para Melanie Klein, seguindo Freud, todos nós estaríamos condenados ao fado de carregar uma culpa latente que, por sua vez, geraria uma constante depressão também latente!

Winnicott não pensava assim. Para ele havia solução para o sentimento de culpa e a posição depressiva. E essa solução não passava, como queriam Freud e Lacan, pela incidência da Lei na subjetividade. Para o psicanalista inglês, nós nos livramos da culpa por termos ultrajado nosso maior objeto de amor, apenas pela consciência de termos feito mal a quem amamos. Parece tautológico, redundante, mas não é, pois a compreensão desse processo muda todo nosso entendimento da moralidade. No esquema tradicional freudiano, nós abdicaríamos de fazer o mal apenas para não sermos punidos pela Lei. Já em Winnicott, nós deixaríamos de fazer o mal por termos nos conscientizado de que, em primeiro lugar, ao fazermos o mal estamos agredindo a quem amamos e, em segundo lugar, que nós também temos o mal em nós (síntese entre o “eu bom” e o “eu mau”).

Ora, não é exatamente essa compreensão ética que Jesus nos traz em oposição à Lei judaica? Ele diz: “Olha, você não devem fazer o mau a seu irmão não porque a Lei proíbe mas porque seu irmão também é filho de Deus e Deus não deixa de fazer o bem a ele em nenhum momento não obstante ele aja mau.” E também através do mandamento “Faça aos outros o que você quer que façam a você”. Ao reconhecer que o “eu bom” e o “eu mau” são uma mesma pessoa, o bebê percebe que também é capaz de fazer o mal. Obviamente, ele não vai querer que lhe revidem o mal que fez. Assim, do mesmo modo, não irá retribuir ao ambiente o mal que esse possa ter feito. Além disso, ao reconhecer que a mãe boa e a má são uma única e mesma mãe, o bebê não mais a agredirá, não por obediência ao mandamento “Não matarás”, mas por compreender que ao agredir a mãe má ele está agredindo também a mãe boa. Assim também, o cristão não faz mau ao próximo por reconhecer que o próximo por pior que seja é tanto quanto ele próprio amado por Deus, de tal modo que se ele agride o próximo, por tabela ele está agredindo a Deus, justamente Aquele a quem mais ama. Da mesma forma, o cristão não julga o próximo pelo fato de reconhecer que ele próprio não é inimputável, por reconhecer que traz as potencialidades do pecado do próximo em si.

Winnicott nos fornece, portanto, com sua teoria do desenvolvimento da moralidade no homem a partir do relacionamento da criança com a mãe/ambiente, um modelo teórico que nos auxilia a compreender a ética cristã, o modo como o cristão lida com dilemas morais. Jesus bate o martelo e diz: “Olha, não importa o que dizem os outros mandamentos. Se vocês observar apenas esse: ‘Amarás a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo’ você não precisam mais observar nenhuma regra”. Agora substitua o termo Deus por mãe e você terá nesse único mandamento de Cristo toda a teoria do desenvolvimento da moralidade de Winnicott. O bebê, no estado de dependência absoluta, não só ama como tem a necessidade de amar a mãe sobre todas as coisas pela simples razão de que, naquele momento, a mãe é, de fato, TODAS AS COISAS para o bebê. Quem dera se nós agíssemos para com Deus como o bebê age para com a mãe, tendo-a como essencial para sua sobrevivência, sabendo que vive nela, com ela e para ela. Além disso, o bebê, como no mandamento, ama à mãe como ele mesmo justamente por reconhecer que não há diferença entre ele e a mãe. A partir do momento em que reconhecemos que entre nós e o próximo não há nenhuma diferença aos olhos de Deus, que independente do que ele ou nós façamos, todos estão marcados pela potencialidade do mal, do pecado e que todos são alvo da graça de Deus, que faz a chuva cair “sobre justos e injustos”, nós não fazemos o mal ao próximo, pois, com efeito, “com a mesma medida que julgardes sereis julgados e aqueles que tiverem misericórdia, alcançarão misericórdia”.

Certamente, muitos de vocês podem se perguntar “Mas por que Freud não pensava assim? Por que ele insistia na necessidade do superego e da lei (interpretação lacaniana)?”. Eu tenho uma hipótese: Freud não pensava assim porque era judeu, e porque como judeu, mesmo renegando a fé, ele não conseguia entender a novidade cristã. Por isso, ele não concebia que a moralidade pudesse advir desse processo de metanóia, de renovação do entendimento que o bebê experimenta no desenvolvimento e o cristão na conversão. Freud, como judeu, pensava como judeu, ou seja, que para que façamos o bem se faz necessária uma Lei que nos diga o que é o bem e como fazê-lo. Ora, não é exatamente isso o que fez Moisés ao proclamar para o povo a Lei?

O que faremos então? Ignoraremos Freud, reconhecendo-o como tendo uma concepção de moralidade caduca? De forma alguma! A concepção de Freud será sempre atual – e para a grande maioria das pessoas. Ela só não explica a ética cristã, o modo como os cristãos lidam com o problema da ética. No entanto, ela explica como todo o resto do mundo lida. Por que todo o resto do mundo só não faz o mal por obediência a leis. E não estou falando apenas da lei judaica ou das leis e códigos civis de direito. Estou falando também de leis filosóficas, sociológicas, políticas, religiosas. Tem gente que não faz o mal porque segue a ética de Aristóteles ou de Kant. Isso significa que a ética dessa pessoa está apartada da Lei? De maneira nenhuma. Ele só está seguindo uma lei diferente: a lei de Kant ou Aristóteles. É só a ética de Jesus de Nazaré a que traz uma libertação de fato de qualquer tipo de Lei. E a minha tese é de que a teoria winnicottiana nos oferece um modelo teórico de entendimento, uma analogia bastante útil para compreendermos essa libertação.

Mas Freud continua valendo para todos os não-cristãos. E é por isso que a psicanálise ainda faz sucesso e nunca será extinta. E é também por isso que a análise não funciona e é completamente desnecessária para um cristão efetivamente convertido. Mas quantos há que ainda não o são…

Winnicott e o cristianismo V – o arrependimento e a capacidade de se preocupar

Em algum post anterior havíamos dito que Winnicott assinala uma distinção entre dois aspectos da mãe na relação com o bebê. O analista inglês diferencia uma mãe-objeto de uma mãe-ambiente. A primeira seria a mãe que é vista pelo bebê como aquela que é ou possui o objeto de satisfação de suas necessidades. Freud considerava que esse era o único papel da mãe na relação com a criança, isto é, servir como um protótipo dos objetos de satisfação que o sujeito buscará posteriormente ao longo da vida. Já Winnicott vislumbrava outro atributo materno que é justamente o que ele denomina de mãe-ambiente, que visa dar conta do trabalho de sustentação e manejo que a mãe realiza para com a criança com o objetivo de facilitar o desenvolvimento de suas tendências inatas para a integração. Assim, temos que a mãe, ao mesmo tempo em que é o primeiro objeto de satisfação do bebê, é também o ambiente primordial que lhe permitirá sentir ou não confiança em si e no mundo ao longo da vida.

Winnicott estabelece essa diferenciação entre os dois aspectos da mãe em um texto, de 1963, chamado “O desenvolvimento da capacidade de se preocupar”. A palavra “preocupação” foi o melhor termo encontrado pelos tradutores brasileiros para expressar o que, em inglês, Winnicott denomina de “concern”. O problema é que “preocupação” possui uma conotação ruim, pois na raiz do termo está a idéia de se ocupar previamente de algo, amiúde em função de uma ansiedade, o que não tem absolutamente nada a ver com o uso da palavra concern por Winnicott. Talvez a melhor tradução para o vocábulo fosse “responsabilidade”, pois o analista inglês usa o termo para descrever o sentimento saudável que temos quando magoamos uma pessoa que gostamos ou quando cometemos algum tipo de má ação. Não, Winnicott não está pensando aqui em culpa, pois culpa seria justamente a faceta doentia do concern. Esse se expressa numa capacidade de se importar com o que aconteceu à pessoa a quem magoamos ou nos sentirmos responsáveis pelo nosso erro. A culpa, por outro lado, impede que nos responsabilizemos, pois dá origem a um martírio que faz com que o sujeito não se sinta capaz de reparar o mal cometido. A culpa sequer gera arrependimento.

Pois bem. Winnicott pretende, com o artigo de 1963, investigar como se forma essa capacidade de se responsabilizar, de se importar com as pessoas. Quem está acostumado com as obras de Freud e Lacan provavelmente teria a resposta para o questionamento de Winnicott na ponta da língua: “ah, é óbvio que o que gera a capacidade de se importar com o outro é a Lei ou, em termos da segunda tópica de Freud, o superego”. Responderiam assim justamente por considerarem como sinônimos responsabilidade e culpa e conceberem um modelo de relacionamento social em que a base é o sentimento de culpa. Basta verem meu texto explicativo sobre o superego. Lá eu demonstro explicitamente como o superego está na raiz do sentimento de culpa.

Winnicott, destituído dessa visão essencialmente judaica da existência, não está interessado em investigar como nos tornamos doentiamente culpados, mas, sim, como desenvolvemos nossa capacidade saudável de se preocupar com o outro. Sua pesquisa levará à relação da criança com os dois aspectos da mãe. Para compreender o que será dito a seguir, é preciso abordar um pressuposto de Winnicott a respeito do aspecto pulsional da criança. Para o analista inglês, ao contrário do que pensava Freud e Melanie Klein, o bebê não vem ao mundo dotado de uma pulsão de morte que, dirigida para o mundo externo, resulta em comportamentos agressivos. Para Winnicott, chamar de “agressivo” o comportamento da criança para com a mãe é uma imposição de fora baseada em comparações com atos intencionalmente destrutivos. Na verdade, a criança não tem o desejo de destruir. Ela nasce com uma potência, uma força de viver que se expressa numa voracidade na utilização do objeto de satisfação. Obviamente que quando se age com voracidade corre-se o risco de destruir o objeto. É como um jovem que há meses não vê a namorada. Quando a vê, quer beijar-lhe tanto e com tamanha força que acaba por machucá-la. É isso o que acontece com a criança em relação à mãe que funciona para ela como objeto ou como portadora do objeto que lhe traz satisfação (seio): o bebê quer tanto que acaba devorando-a, destruindo-a. Por outro lado, ele experimenta outro tipo de relação com a mãe, a mãe-ambiente, que é a mãe que oferece proteção e cuidado e é lembrada nos momentos em que a criança está satisfeita.

Gradualmente, à medida que a criança vai se desenvolvendo, ela começa a perceber que não são duas mães, uma que ela destrói e outra que cuida dela. Ambas são a mesma. É nesse momento em que “cai a ficha” da criança é que brota esse sentimento terrível chamado culpa. Ela começa a perceber que machucou justamente a mesma pessoa que lhe sustentou e que cuidou dela. Mas é nesse momento que a mãe vai exercer um papel fundamental para que a criança possa se libertar do sentimento de culpa: é o que Winnicott vai chamar de “sobrevivência da mãe”, isto é, a capacidade da mãe de mesmo agredida e machucada pelo bebê, sobreviver a esses ataques não limitando, por causa deles, o cuidado à criança. Essa capacidade de sobreviver sinaliza para o infante que a mãe nunca irá abandoná-lo. E é justamente isso que dá força e confiança para que a criança possa fazer o que Winnicott chama de “reparação”, isto é, uma tentativa imaginária de consertar o estrago feito na mãe. É nesse momento que a culpa se transforma no concern, na responsabilidade, na capacidade da criança de reconhecer o erro e se arrepender dele.

É impressionante a capacidade que Winnicott tem de descrever na relação do bebê com a mãe suficientemente boa a relação do homem com Deus. Vamos pensar por analogias. Como não se cansa de afirmar o apóstolo Paulo, para o cristão verdadeiro não há mais Lei, ou seja, não temos mais um tutor para nos dizer o que devemos e o que não devemos fazer. O amor de Deus que se desdobrou a ponto de morrer na Cruz em nosso lugar é suficiente para nos indicar como devemos agir no mundo. No entanto, toda essa liberdade, essa ausência de Lei, acaba sendo, para muitos, ocasião de sedução e é nesse momento em que aparece o abuso da graça de Deus. Já que não há mais Lei, “tudo me é permitido” como dizia o célebre ditado coríntio. Assim, o cristão vai e experimenta de tudo, confiando nessa falsa liberdade supostamente assegurada pela graça de Deus. Age, assim, como o bebê winnicottiano que, diante de um volumoso seio cheinho de leite, não consegue frear a vontade e acaba despedaçando-o, afinal o seio está ali só para ele, é a mãe quem o fornece – pensamento bastante parecido com aqueles que dizem que tudo é permitido, pois foi Deus quem fez…

Todavia, após algum tempo usando e abusando do mundo, assim como o bebê vorazmente destrói o seio, o cristão começa a se cansar do mundo e aí ele se volta para Deus, para o Deus “bonzinho” do Novo Testamento, que perdoa os pecados, que não se vinga, que estará conosco até o fim dos tempos. Assim também o bebê se conforta no colo da “outra” mãe, a mãe-ambiente que cuida e acolhe. E, assim como o bebê não percebe ainda que as duas mães são, de fato, apenas uma, o cristão não percebe que o uso e o abuso do mundo não prejudicam só a ele como indivíduo mas magoam a Deus pois aquela não é sua vontade.

Entretanto, assim como paulatinamente o bebê vai se dando conta de que machucou a mesma mãe que lhe conforta, o cristão começa a perceber que suas experimentações mundanas desagradam a Deus, ou seja, constituem pecado. A imagem mais ilustrativa desse momento de constatação é a do Rei Davi quando o profeta Natã, com uma história, lhe mostra seus pecados. Quando Davi se dá conta do quanto desagradou a Deus, desespera, se deprime, vai se sentar nas cinzas, usa pano de saco como roupa, ou seja, sente-se plenamente culpado, como o bebê que percebe que estava destruindo a mãe que lhe presta cuidado.

É nesse momento que a graça se mostra em toda a sua plenitude, pois, da mesma forma que a mãe sobrevive aos ataques do bebê, Deus não nos abandona, assim como não abandonou Davi fazendo com que de sua descendência viesse o próprio Jesus, assim como o pai do filho pródigo o acolhe com todo o amor, assim como Cristo não abandonou Pedro mesmo tendo esse o negado três vezes. E é justamente esse amor que sobrevive e não abandona que faz com que o cristão se arrependa e não queira mais pecar, da mesma forma que a criança se sente confiante pela sobrevivência da mãe para realizar um ato de reparação. O ato cristão de reparação é o arrependimento e a decisão de não querer mais pecar: é tudo o que podemos fazer e tudo o que Deus quer que façamos.

Winnicott ainda fornece um bom instrumento para identificarmos o cristão verdadeiro e o falso com sua distinção entre culpa e responsabilidade. Como vimos, a culpa antecede e, com a sobrevivência da mãe, se transforma em responsabilidade (concern). Essa transformação, porém, pode não ocorrer caso a mãe não sobreviva. Uma mãe insuficiente é assim: em vez de entender a voracidade da criança, ela reage, se vingando. Assim, a culpa permanece, pois a criança não se sente confiante para fazer o ato de reparação. O falso cristão, aquele que apenas usa essa alcunha, mas não nasceu de novo, não consegue ter fé na graça de Deus. Assim, permanece na culpa, pois julga que o arrependimento (reparação) é inútil, pois Deus não irá perdoá-lo. Como diria Kierkegaard, ele se acha singular a tal ponto que, com essa vaidade, não se atenta para o fato de que para Deus tudo é possível, ou seja, considera que seu pecado limita a potência de Deus – não há nada mais herético. O cristão verdadeiro, por outro lado, pela fé, confia na graça e na misericórdia de Deus e, por isso, se arrepende e decide romper com o pecado, justamente porque confia em um Deus que não o abandona. Conclusão: assim como a sobrevivência da mãe dá confiança para que o bebê faça o ato de reparação, assim também o amor de Deus constrange-nos ao arrependimento.

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Winnicott e o cristianismo IV – a mente e a teologia

A maior parte das considerações que farei na parte inicial deste post eu já a as fizera num texto anterior chamado “A mente em Winnicott” cujas duas partes podem ser acessadas nos arquivos do blog. Winnicott, ao contrário de toda uma tradição em que talvez Freud pudesse ser incluído, não concebe a mente como um espaço imaginário ou real que venha a ser preenchido com seus respectivos conteúdos, a saber: as idéias. Para Winnicott, a mente constitui-se como uma função, função intelectiva. Logo, sendo uma função, a mente não possui um estatuto ontológico, dado, como o corpo. Ela existe devido a necessidades advindas da relação do sujeito com o ambiente.

Também é preciso lembrar que Winnicott faz uma distinção entre mente e psique que, também na tradição psicológica, são tomados como sinônimos. Para o analista inglês, a psique consiste numa “elaboração imaginativa de partes e funções corporais”, ou seja, é um precipitado constituído de imagens derivadas da própria experiência do sujeito com o corpo. Na medida em que tal experiência se inicia primordialmente a partir de seu contato com a mãe, são justamente os cuidados maternos, concretizados em tarefas normais como o banho e a higiene do bebê que o auxiliam a entrar em contato com seu próprio corpo, conjugando a experiência sensório-motora com a realidade imagética dela proveniente.

Percebe-se, portanto, que a psique não está relacionada ao conhecimento no sentido estrito do termo. Em sentido lato, sim, pois se pode dizer que as imagens derivadas da experiência corporal constituem o próprio conhecimento imediato da realidade do corpo pelo bebê. Todavia, o conhecimento no sentido intelectual do termo compete à mente. A função mental, diferentemente da psique, não brota da vivência física, mas aparece, primariamente, em função da relação entre o bebê e o ambiente (mãe). Como vimos nos posts anteriores, em um primeiro momento, devido à satisfação plena das necessidades da criança pela mãe, o bebê não se percebe portando uma existência individual separada de um mundo externo. Naquele momento, tudo é sonho, todos os seus desejos são atendidos. Ora, num mundo como esse, que utilidade teria uma função mental que servisse ao bebê para conhecer e entender o mundo? Nós só buscamos conhecer e compreender a realidade quando ela não corresponde às nossas expectativas, justamente para que, compreendendo-a, possamos saber como agir para saciar nossas necessidades ou para que renunciemos de vez à esperança de fazê-lo. Portanto, num mundo em que todas as necessidades são satisfeitas, não há por que se esforçar por conhecer.

É exatamente por isso que a função mental nasce no momento em que a mãe começa a sair de seu estado de completa devoção ao bebê e esse começa a enfrentar pequenas – e necessárias – frustrações. Por conseguinte, é como se o bebê acordasse do sonho e tomasse contato com o real que ora é maleável ora não com suas expectativas. A saída encontrada pela criança é justamente a de tentar compreender por que o ambiente não mais lhe sacia exatamente na hora em que ela sente a necessidade. E essa compreensão passa pela identificação de possíveis comportamentos que podem fazer com que a mãe vem até ela, como o choro, por exemplo. Essa é a descrição de um uso saudável da função mental, ou seja, como um instrumento de compreensão do real.

Acontece que nem todos os bebês experimentam um ambiente suficientemente bom, regular o bastante para que ele consiga compreender seu fluxo e confiar na sua eficácia. Por exemplo, muitas mães são inábeis na identificação das necessidades da criança, não sabendo interpretar, por exemplo, quando a criança chora porque está sentindo cólica e quando chora porque está com fome. Assim, ao não se ajustar à necessidade da criança, a mãe torna-se invasiva e faz com que o infante não consiga compreender o ambiente. No entanto, ela (a criança) insiste em tentar entender e, como não consegue, faz uso de recurso bastante encontrado no meio universitário: inventa uma explicação. Sua tentativa de compreensão sai da imanência de sua relação com o ambiente e se converte numa forma de explicar o ambiente caótico gerado pelo comportamento imprevisível da mãe. O bebê, então, inventa razões. Talvez haja dias certos para chorar, dias em que a mãe ouve e dias em que a mãe não ouve – claro que essa é apenas uma hipótese, dada a impossibilidade de ter acesso ao pensamento da criança. Mas o importante a ser retido é que, reagindo ao ambiente desse modo, isto é, inventando explicações ao invés de compreendendo-o, a criança vai criando um padrão doentio de interação com o mundo, marcado por uma espécie de intelectualismo que, é claro, gerará excelentes ganhos secundários caso o sujeito se enverede pela carreira acadêmica. No entanto, para-além da academia, tal sujeito sofrerá imensamente, pois terá dificuldades para compreender sua interação com as outras pessoas e com a própria realidade, justamente por estar acostumado a uma vida teorizada e não vivida.

De que forma tudo isso está relacionado ao cristianismo? Vejamos: será que os fundamentos da fé cristã poderiam ser tomados como um ambiente suficientemente bom? Não entenderam? Vou explicar melhor: o ambiente suficientemente bom atende suficientemente bem as necessidades humanas de tal modo que permite ao bebê compreender quando e por que ele (o ambiente) falha. Sendo assim, será que poderíamos considerar a graça divina, o amor incondicional de Deus pelos homens, a morte de Deus na cruz para salvar o homem dos pecados como fatos facilmente palatáveis para o ser humano, ou seja, facilmente compreensíveis como o ambiente suficientemente bom?

É óbvio que não! Naturalmente tendemos a pensar Deus como um rei poderoso, onipotente, que não se curva a seus súditos, que, pelo contrário, exige que eles se curvem. Ora, como então poderíamos conceber facilmente que o rei, por amor a seus súditos, por querer fazê-los compartilhar de sua majestade, se transformasse por um tempo num deles e morresse da pior forma possível para salvá-los da perdição? É um paradoxo terrível, como dissera Kierkegaard. E, como também disse o pensador dinamarquês, o paradoxo aparece à razão como uma doença (pathos), como algo que deve ser extirpado.

É justamente nesse ponto que se inicia nossa analogia. Por que o bebê consegue compreender as falhas do ambiente? Será que é porque ele consegue descrever racionalmente para si mesmo o padrão de funcionamento das idas e vindas da mãe? Claro que não! O bebê compreende porque confia que a mãe não lhe desamparará. Trata-se, portanto, mais de fé do que de racionalidade. Da mesma forma, a único modo de o cristão compreender os paradoxos da relação do homem com o Deus e também da própria constituição divina (um único Deus que é pai, filho e espírito) só se dá mediante a fé – o que Kierkegaard também dizia.

O que acontece é que há uma classe especial de pessoas que se diz cristã ou pretende sê-lo e que, diante do paradoxo, não fazem uso da fé (pois não a tem), mas tentam utilizar a razão. Agindo assim, evidenciam que o paradoxo transformou-se para eles em escândalo. Todavia, ao contrário de outros que, escandalizados, abandonam de vez qualquer pretensão a compreender, essas pessoas, que vocês já devem ter percebido tratar-se dos teólogos, pretendem extirpar o escândalo, inventando explicações que não explicam. Por exemplo, por que simplesmente não crer que Jesus, o Pai e o Espírito Santo são um único e mesmo Deus, simples assim? Por que, em vez disso, postular que são três pessoas de uma substância que é a divindade e que, portanto, há uma homoousia (esse conceito arrogante) entre eles. Por que não considerar com simplicidade que, não obstante Deus seja onisciente, o homem possui liberdade para escolher e, em vez disso, perder tempo com querelas estéreis sobre determinismo e livre-arbítrio?

Poderíamos dar aqui inúmeros outros exemplos de “intelectualização” como forma de tentar apreender os paradoxos cristãos na teologia. Tomás de Aquino e todos os teólogos sistemáticos foram exemplares nesse quesito. Aquele, por exemplo, foi recorrer à filosofia aristotélica para explicar inexplicáveis, como a existência de Deus, a criação, etc. Ele próprio, no fim de sua vida, após uma experiência mística, reconheceu a inutilidade de suas teorias.

Portanto, assim como o bebê que diante de um ambiente insuficiente – que falha mais do que devia – inventa explicações que não explicam por uma dificuldade de compreender, assim também os teólogos que, como bem disse Lacan, junto com os psicóticos são os únicos verdadeiramente ateus, por não conseguirem, pela fé, ter acesso a um conhecimento imediato, intuitivo, não racionalizável, inventam teorias, sistemas e conceitos que não passam de masturbações intelectuais que agradam muitíssimo ao espírito, mas não explicam. E não explicam pelo simples fato de que não há explicação pela via da razão.

Vemos assim que Winnicott não só fornece um modelo de sujeito que comporta o cristão verdadeiro – o que não significa que tal modelo explique os paradoxos cristãos, mas que, como a função mental saudável, apenas ajuda a pensar sobre eles – mas possibilita pensar em questões periféricas ao cristianismo. Talvez não se trate de uma mera coincidência.

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