Questionando o “óbvio”: a falta é a causa do desejo? (parte 1)

Durante boa parte do período em que estava me graduando em psicologia ouvi da boca de vários professores e colegas a seguinte afirmação dita de modo mais ou menos sofisticado: “O ser humano só deseja porque nele há uma falta.”. Eu mesmo, durante muito tempo, reproduzi essa ideia, empregando termos teoricamente mais apropriados como, por exemplo, “furo” em vez de “falta”. Não o fazia apenas por ser essa tese um dos fundamentos da teoria de Jacques Lacan, mas também porque ela me parecia ser de uma obviedade tremenda.

De fato, qualquer desejo, por mais bobo que fosse, parecia encaixar-se perfeitamente naquela afirmativa! Exemplificando: por que desejo um salário melhor? Resposta aparentemente mais do que óbvia: por que não o tenho, ora bolas! Logo, seria essa falta do objeto de desejo (salário melhor) que me faria desejar, certo? Lacan parecia, portanto, estar apenas “chovendo no molhado”, isto é, dizendo aquilo que todo mundo intuitivamente já sabe sem precisar estudar psicanálise.

No decorrer deste artigo, contudo, demonstrar-lhes-ei que a ideia de que o desejo é produzido pela falta não se trata efetivamente de um “senso comum”, mas antes de um equívoco comum, legitimado na psicanálise pela doutrina lacaniana.

Antes, porém, sejamos justos com o nada ingênuo psicanalista francês.

É óbvio que ao elaborar sua teoria a respeito do desejo Lacan não tomara como objeto de reflexão meramente os desejos e vontades nossos de cada dia, como o desejo banal de comer bife no almoço. O que ele tinha em vista era naturalmente o desejo que de fato interessa ao psicanalista: o desejo inconsciente. De todo modo, Lacan acaba fornecendo um enquadramento teórico que serve tanto para o último quanto para os primeiros.

O desejo inconsciente, esse desejo radical que a clínica de Freud dizia ser o desejo edípico, desejo de consumar o incesto, seria fruto da existência prévia de uma falta. Para Freud, falta da mãe enquanto objeto sexual. Falta, por seu turno, instaurada pela interdição do incesto presente em toda e qualquer formação cultural.

Num primeiro momento, Lacan apenas repetiu essa tese de Freud com a ajuda de outros conceitos. Em vez da mãe, resgatou o conceito freudiano de Coisa (das Ding), objeto primordial de gozo cujo acesso seria barrado ao sujeito pelo registro simbólico (Lei) via Nome-do-Pai. A falta da Coisa faria com que o sujeito passasse a desejar. Desejar o quê? Objetos capazes de substituírem parcialmente a Coisa. O desejo, portanto, seria uma reação à perda do objeto primordial de gozo, uma busca no mundo de objetos capazes de tamponar a falta da Coisa.

A partir do seminário sobre a angústia Lacan modifica um pouco sua posição a respeito do tema. O desejo passa a não ser mais visto como fruto da interdição do incesto. Já não é a Lei que produz a emergência da falta. A perda da mãe como objeto sexual apenas reproduz uma perda atávica, fundamental, cuja gênese é desconhecida, só se sabe que existe. Perda relativa a que objeto? Não se sabe. Só se sabe que esse objeto foi perdido. Freud intuiu a existência dessa perda fundamental ao dizer que não há objeto adequado para a pulsão. Lacan aventurou-se a dar um nome a esse objeto inexistente: chamou-o de objeto a, um objeto que seria desde sempre perdido e que poderia ser ilustrado pelos vários objetos de gozo que vamos perdendo ao longo da vida: o útero, o seio, as fezes, etc.

Nota-se, portanto, que mesmo ao reformular suas ideias, retirando a centralidade do mito de Édipo e do tabu do incesto, ainda assim Lacan permanece defendendo uma concepção negativa do desejo, ou seja, do desejo como decorrente de uma falta. Num primeiro momento, falta do objeto materno interditado pela Lei. Num segundo, falta constitutiva, originária, estrutural, de um objeto adequado à pulsão.

Mais uma vez, procedamos com honestidade, a enunciação pura e simples das teses lacanianas parece conferir a elas um ar de total evidência! De fato, não há objeto adequado à pulsão. Como disse o próprio Lacan, “A relação sexual não existe”. A clínica do adoecimento neurótico e a experiência cotidiana das perversões comprovam de maneira categórica a ideia. A pulsão é extremamente plástica, pode se “enganchar” em qualquer coisa: de um par de sapatos vermelhos a uma pessoa morta. Aparentemente tudo pode se tornar capaz de levar um ser humano a sentir excitação sexual; a pulsão é acéfala nesse sentido.

Não obstante, quando nos propomos a ser um pouco mais rigorosos tanto filosófica quanto logicamente, nos damos conta da existência de uma sutil falha de raciocínio na concepção lacaniana do desejo como fruto de uma falta fundamental. É sobre isso que falaremos a seguir.

15 comentários sobre “Questionando o “óbvio”: a falta é a causa do desejo? (parte 1)

  1. carlos ferreira

    Lucas, mais uma vez muito preciso o teu artigo. Espero pelo próximo. Concordo com você com as obviedades lacanianas, não tão obvias. Lacan é extremamente sutil e contundente em suas proposições. Se Freud ergueu os pilares da Psicanalise sobre o complexo de Édipo, Lacan ao retomar Freud o faz brilhantemente criando o objeto a e o Nome do Pai. Outro fato marcante muito bem descrito por você é a pulsão acéfala, que a mim algumas vezes me parece uma função biruta( no sentido do instrumento que sinaliza a direção do vento), haja vista que ela pode se fixar em qualquer aspecto de um incs desejante. Tenho comigo que isto as vezes explica um pouco do que vemos nos dias de hoje com tamanha violência.. tenho a impressão que as pulsões estão a solta, loucas, desvairadas, devastando tudo e todos quando se instalam nos mais prosaicos objetos.
    Parabens…espero a continuação!

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  2. Lucas Nápoli

    Olá Carlos! Essa sua impressão de que esteja ocorrendo na contemporaneidade uma espécie de desatino da pulsão é, em certo sentido, compartilhada por muitos autores e articulada à tese de que atualmente há uma fragilização ou mesmo falência da figura paterna (o que Lacan chamou de pai imaginário).

    Acompanhe mesmo a continuação deste ensaio. Creio que estou realizando um exercício saudável de crítica do pensamento de um autor cujos discípulos, por vezes, acabam por torná-lo um tanto dogmático.

    Um forte abraço!

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  3. Lucas Nápoli

    As duas próximas partes já estão prontas, Zanatta, mas postá-las-ei gradativamente para dar tempo das pessoas lerem.

    Abração!

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  4. Alexandre Brito

    Estou trabalhando com uma vertente mais social dos modos de gozo em meu blog. Percebo que você também está se importando com isso, e não é a toa que essa importação acontece. Eis um tema atual e emergente.
    Sobre a falta, eu considero essa questão como um difícil exercício de pensamento e mesmo de tradição, pois cada um interpreta Lacan segundo velhos modelos. Pensa-se o seguinte: Faltou -> procurou!
    Isso é uma lógica do comportamento, inclusive veste como uma luva ao mundo animal. Fome -> comida, excitação -> sexo, sede -> água. Chega a ser absurdo as pessoas explicarem nosso mundo assim, sem se dar conta de que temos sede pelo indefinido e que comemos com os olhos, por exemplo. Este excesso chamamos de gozo, e ele não tem nada de bom e moral por essência. pelo contrário: conduz a mortes singulares.
    Acredito que a falta lacaniana seja de outra ordem: da ordem do imaginário, simbólico e do real. Por exemplo, é como se a palavra (simbólico) retirasse qualquer entendimento pelo instinto (certeza da fome -> comida certa). Mas trata-se de um negativo (não em um sentido moral, de ruim, assim como Lacan analisa a metonímia -parte pelo todo- em seu primeiro ensino) que produz as “infinitas” possibilidades de positivação do ser.
    Mas não somos só significantes ou só desejo, somos corpo, economia, política, silêncio…
    Aguardo o próximo texto com satisfação! Abração, parceiro!

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  5. Lucas Nápoli

    Olá Alexandre! Brigadão pelo comentário, mano!
    Nas próximas partes passearei um pouco pelas questões que você mencionou!
    De fato, trata-se de um exercício de pensamento e reflexão!
    Um forte abraço!

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  8. Cláudio

    Lucas, não se deseja os objetos que substituem a coisa, isso quem faz são os neuróticos que somos quase todos nós; os perversos também o fazem mas a sua maneira. Acompanhando Hegel, não é que o indivíduo não pode obter o quê busca , mas ele já o tem em forma de perda.

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  9. Lucas Nápoli

    Olá Cláudio. Aquilo que se tem “em forma de perda” é, a meu ver, o mesmo que “falta”.

    Critico no texto a tese lacaniana de que a falta é causa do desejo.

    Um forte abraço!

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  10. Cláudio

    Lucas, a falta seria do pondo de vista do símbólico, do ponto de vista do real não há falta alguma. Do ponto de vista do simbólico, tudo aquilo que não pode ser simbolizado (real) é visto como falta, ou seja, o real visto do símbolico se apresenta como se falta fosse, e como só podemos sentir, pensar, idealizar através do simbólico e do imaginário… a falta se restringe ao simbólico e ao imaginário, que é a nossa realidade, mas não há realidade em si, daí a conhecida expressão que a verdade só pode ser semi dita.

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  11. carlos

    Claudio, gostei muito de teu comentário em resposta ao artigo do LuCAN.
    Você topa escavar um pouquinho mais as questões relativas ao Real lacaniano?
    Grande abraço!

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  12. Cláudio

    Outro dia lendo um artigo budista, o autor falando a respeito do conceito de vazio disse que vazio é o nome que se dá para aquilo que não se pode nomear, ou seja, até para se compreender o quê está além da palavra ainda se usa uma palavra. A palavra teria uma dupla função significar as coisas significáves (simbólico e imaginário) e o não significável (o real) também. O diferencial é que os neuróticos, psicóticos, etc. ou seja, quase todos nós, não vemos o não significável e somente a parte significável da linguagem.

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