Reflexões sobre o sujeito em Psicanálise

Meu objetivo com este texto é modesto. Pretendo apenas “pensar em voz alta” acerca do significado que o termo “sujeito” assume na teoria psicanalítica.

No senso comum acostumamo-nos a utilizar a palavra sujeito como sinônimo de pessoa ou indivíduo do sexo masculino, como quando dizemos: “Aquele sujeito é muito rabugento”. Ninguém se refere a uma mulher designando-a como um sujeito, dizendo, por exemplo: “Aquela sujeito é linda!”. As razões pelas quais essa divergência ocorre talvez sejam assaz interessantes de serem avaliadas, mas aqui não é o momento para tal. Quero enfatizar apenas que no linguajar ordinário a noção de sujeito se confunde com a de indivíduo ou pessoa do sexo masculino.

Não obstante, ela guarda certo parentesco com o sentido que o termo adquire no campo em que foi formulado como conceito, a saber: a Filosofia. De fato, não há sujeito – enquanto conceito – antes de Descartes. Foi ele o inventor do “eu” moderno, idéia tão banal para nós hoje que nem nos damos conta de que, em verdade, trata-se de uma invenção. Foi o filósofo francês quem, rompendo com o modo de pensar medieval, nos brindou com a tese revolucionária de que não somos apenas objeto da vontade divina e das contingências da realidade, mas que transcendemos a tais condicionamentos, isto é, temos autonomia, podemos ser tomados como causa de nossos próprios atos. Enfim, somos sujeitos de nossos predicados e não predicados do sujeito divino!

Essa idéia nos é tão familiar hoje em dia que temos dificuldade em imaginar um mundo em que ela não existia. Todavia, a Idade Média sobreviveu durante centenas de anos sem necessidade da noção de sujeito, assim como ainda hoje muitas culturas ditas “primitivas” funcionam da mesma forma, confirmando o fato de que a noção de sujeito não nos é dada pela natureza, mas requer um exercício intelectual demandado pelas condições de uma determinada organização sócio-histórica. No caso da era medieval, o conceito de sujeito era supérfluo: se Deus explicava tudo não havia porque supor no homem a existência de um eu irredutível, não-condicionado, transcendendo às vicissitudes da realidade.

Mas a Modernidade demandou a invenção desse conceito – e Descartes o fez. E é com base nessa noção que a Modernidade trabalhou, instituindo a ciência moderna, a categoria dos direitos universais do homem e valores como a liberdade, por exemplo, implausível sem o conceito de eu, de sujeito que, nesse sentido, como no senso comum, pode ser associado ao de pessoa e de indivíduo.

E do século XVII, quando Descartes enuncia a invenção do sujeito, até meados do século XVIII a humanidade sobreviveu crente na existência de um sujeito autônomo, livre e consciente dos seus atos. Mas a realidade social, em constante mudança, solicita novamente uma transformação conceitual. A idéia de um eu, de um sujeito, de um indivíduo, tão palatável no crepúsculo da Idade Média e tão esperançosa face ao teocentrismo até então reinante, passa a mostrar sinais de fragilidade. Tiramos Deus de cena e instituímos o homem como eixo do mundo – e nem por isso as coisas melhoraram. Será que a idéia de que somos sujeitos de nossos atos não é uma ilusão? É essa a pergunta-chave que começa a ser feita em meados do século XIX e cuja resposta se desdobrará no nosso momento atual que muitos denominam de pós-modernidade.

Freud foi um dos arautos dessa pergunta à humanidade. E a resposta que ele encontrou, na esteira de Nietzsche e Schopenhauer – os quais também colocaram o eu em xeque – foi afirmativa: sim, nos enganamos acreditando que éramos o centro de nós mesmos. Há um pensamento que ocorre nos nossos bastidores e condiciona o que acontece no palco da nossa vida. Nós estamos ali simultaneamente como meros atores e espectadores do desenrolar da cena – eis a tese capital de Freud.

Entretanto, junto com essa tese que permitirá o desenvolvimento do método psicanalítico, surge um impasse: se a cena da nossa vida é condicionada pelo que ocorre nos bastidores e não por nós mesmos, quem é o diretor da cena? A saída de Freud, posteriormente formalizada por Lacan, foi genial: ele não atribuiu ao inconsciente o estatuto de sujeito, ou seja, não substantivou o inconsciente, como poderia se esperar que fizesse à moda de um Schopenhauer, que instituiu a Vontade cega da vida como sujeito fundamental. Não se esqueçam que Freud, antes de tudo, queria ser um cientista. E, por conta disso, ele teve que ser inventivo para não estraçalhar Descartes, o pilar da ciência moderna, com sua descoberta. Assim, em vez de prescindir do sujeito cartesiano, Freud o subverteu (para usar o termo lacaniano). Ou seja, o pai da psicanálise não delegou ao inconsciente a causa da intencionalidade, como o público leigo ainda hoje pensa. É justamente esse mal-entendido que fundamenta a já batida frase: “Freud explica”. Freud não explica nada. É a própria pessoa que se explica!

Freud, por seu turno, mantém o conceito de sujeito, mas o subverte, concebendo-o não mais como autoconsciente, mas sim como dividido. Assim, a “parte” consciente do sujeito se estabelece à custa de um desconhecimento da outra “parte” (inconsciente). Essa, por sua vez, comporta desejos que se manifestam à revelia daquela. É justamente por isso que a psicanálise não abdica da responsabilização do analisando por aquilo que faz. Muita gente pensa que pelo fato de a psicanálise trabalhar com a idéia de inconsciente isso significa que ela destitui da pessoa a responsabilidade dos seus atos atribuindo-a ao inconsciente. Nada mais falacioso. O inconsciente é apenas a qualidade psíquica de determinados pensamentos que possuem como ponto de partida, em última instância, o sujeito. São inconscientes precisamente por terem sido afastados da consciência pelo próprio sujeito.

A grande novidade de Freud foi ter proposto a idéia de que o sujeito não precisa ser necessariamente consciente de suas intencionalidades. Em outras palavras, para a psicanálise, sujeito não é aquele que sabe o que está fazendo, mas, pelo contrário, aquele que responde por aquilo que faz sem saber por quê.

18 comentários sobre “Reflexões sobre o sujeito em Psicanálise

  1. luana leao

    muito bom o texto, estou estudando Freud no meu curso de pedagogia , na disciplina psicologia, mas este sujeito pensado por Freud, me deixa ainda com muitas duvidas, mas este texto já me esclareceu muito!! parabéns!!

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  2. Lucas Nápoli

    Olá Luana! Fico muito feliz por saber que o texto te ajudou!
    Se tiver qualquer dúvida sobre algo relacionado a Psicanálise e eu puder ajudar, fique à vontade para perguntar.

    Um grande abraço e apareça sempre por aqui!

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  3. Olá Lucas

    Não sou da área de psicologia, mas já li os dois livros de Groddeck, “O Livro dIsso”, “O Homem e seu Isso”.
    O que entendo quando Groodeck aborda e utiliza o nome de “Isso” nada mais é do que o Espírito. Toda vontade, todo desejo vem do Espírito, o verdadeiro Ser.
    Nasamecu é im livro que tenho em mãos (em alemão) que ganhei de uma pessoa da Alemanha que que estou em fase de tradução.
    Considero-o muito sua profissionalização e a maneira que coloca os artigos, no entanto, creio que se enganou com a data de nascimento de Groddeck. Dê uma olhada na sua postagem com relação à esta data.
    Se você for um admirador de Groddeck, sugiro à você que leia 3 livros – “Quebrando o Espelho”, “Cartas à Uma Amiga” e “Um condomínio Chamado Família”, todos eles de Antônio Carlos Costardi-médico neurologista, psicoterapeuta e espiritualista. Se acredita em reencarnação… Costardi é o próprio Groddeck, o qual tive oportunidade de conhecê-lo e participar de vários encontros onde ele abordava estes conceitos, além do que… tenho experiência dentro da minha casa da minha mãe que ele foi o único médico que ajudou na cura, depois de passar por tantos e tanos médicos.
    Infelizmente Costardi já se foi deste plano e seus únicos 3 livros provavelmente você poderá encontrar em sebos ou estante virtual.
    Costardi nos deixou muitas informações, as quais estão em fase de trabalhos que ainda serão divulgados.
    O site já existe mas ainda há poucas informações do tanto que ele nos deixou.
    Se quiser é só acessar:

    http://neacc.com.br/

    Meu cumprimentos

    Vera

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  4. Lucas Nápoli

    Olá Vera! Muito obrigado pelos elogios e pelas indicações!

    Fico feliz que tenha gostado dos textos!

    Você está traduzindo Nasamecu? Que ótimo? Vai publicar a tradução?

    Um forte abraço!

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  5. Lucas Nápoli

    Olá Debora! Muito obrigado pela visita ao blog.

    Sua pergunta é muito ampla. Sugiro que reformule-a, de modo a torná-la mais específica.

    Forte abraço!

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  6. Viviane Braz

    Estou fazendo Mestrado em Psicanálise mas minha formação é na área de Administraçao. O que tem me deixado um tanto confusa por não estar familiarizada com os vocábulos e idéias da área da Psicologia. Mas, sinceramente, esse texto é de uma clareza fantástica. Me ajudou muito. Obrigada e parabéns.

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  7. Lucas Nápoli

    Olá Viviane! Seu comentário me deixou especialmente feliz e empolgado em continuar publicando posts como este.
    Espero que os demais conteúdos do blog também possam lhe ser úteis.
    Um forte abraço e apareça sempre!

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  8. Ana

    Estou estudando psicologia no curso de Pedagogia e seu texto esclareceu algumas dúvidas em relação ao sujeito na psicanálise. Obrigada!!!
    Gostaria de maiores esclarecimentos, ou seja um texto como este que expliquem melhor como a psicanálise vê a afetividade e a área cognitiva do sujeito? Como a constituição do sujeito pode interferir no desenvolviemnto cognitivo?
    Desde já agradeço!

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  9. Lucas Nápoli

    Olá Ana! Muito obrigado pelo comentário! Fico muito feliz de saber que pude te ajudar! De fato, o tema que você apontou é bastante complexo e é um bom assunto para um post aqui no blog! Sugestão anotada! Abração e apareça sempre!

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  10. Luciana

    Boa noite Lucas.
    Sou estudante de pedagogia e meu TCC é sobre as contribuições da Psicanálise na formação de Educadores. Tenho que destrinchar sobre Sujeito, Desejo, Transferência, Pulsão, Inconsciente e sobre Psicanálise. Confesso de apesar ser fascinada por Freud sou leiga e estou confusa com a definição dos termos desejo, pulsão e sujeito.
    Será que tem como me auxiliar? Li seu texto e continuo confusa, pois não bate com algumas definições. Meu TCC terá que ser entregue no início de junho!!!!
    Estou apavorada me auxilie.
    Att, Luciana

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  11. Lucas Nápoli

    Olá Luciana! Com o maior prazer poderia lhe ajudar. Realizo consultoria em teoria psicanalítica online através do Skype. Basta que você tenha uma internet com conexão estável e um microfone. O valor de cada sessão é negociado conforme suas possibilidades de pagamento.

    Você teria interesse em contratar esse serviço?

    Forte abraço e aguardo sua resposta.

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  12. Natália

    Olá Lucas! Seus textos são realmente maravilhosos. Sou mestranda em Letras, mas tenho um seminário para apresentar sobre o artigo de Freud “Além do princípio do prazer”. Preciso de ajuda para entender este texto e sua ideia central. Então, seria o sujeito da psicanálise e como este se constitui? Seria a questão das pulsões de morte e de vida? Seria o fort-da?
    Vc teria algum texto pra indicar? Pois estou confusa e não sei como devo apresentar este texto aos meus colegas.
    Desde já agradeço

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  13. Lucas Nápoli

    Olá Natália. Infelizmente, em função do grande volume de trabalho no fim do ano, só pude ler seu comentário hoje. Provavelmente você já deve ter apresentado o seminário. Espero que tenha se saído bem!

    Um grande abraço!

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  14. Natália

    Olá Lucas, apresentei sim. Mas agora tenho que entregar uma resenha crítica sobre o mesmo texto para que a nota geral seja atribuída. O que você sugere?

    Grata!
    Abraços

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  15. Andrezza Fernandes

    Olá Lucas. qual é a relação entre a afetividade e a cognição na teoria psicanalítica?

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  16. Lucas Nápoli

    Olá Natália! Fiquei muito tempo sem acessar o site em função de compromissos profissionais. Você conseguiu elaborar a resenha crítica?

    Grande abraço!

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